O título desta coluna está entre aspas porque é emprestado de Sabine Hossenfelder, que pronuncia a frase em um vídeo recente em seu canal no YouTube. Aspas e crédito dados, vamos ao contexto. Hossenfelder é uma física alemã e, criadora de conteúdo, o termo mais erudito para youtuber, além de escritora. Como física ela se dedica, agora com bem menos intensidade, a um leque de temas complexos, da cosmologia à física de partículas, passando pelos fundamentos da mecânica quântica. Como escritora, publicou dois livros de divulgação científica, que são, ao mesmo tempo, uma crítica a algumas práticas na ciência[1]. Como criadora de conteúdo, tem o canal no YouTube, “Ciência com Sabine”[2], com 1,5 milhão e meio de inscritos e mais de 220 milhões de visualizações. Ou seja, é uma “influencer” da ciência.
O vídeo mais antigo é de 13 anos atrás, mas ela passou a se dedicar mais intensamente a essa sua agora principal atividade, a partir da pandemia de covid-19. Atualmente posta até cinco vídeos por semana. Hossenfelder tem um humor e sarcasmo únicos, tipicamente alemães com os quais me delicio. Como diz ela em seu canal de divulgação científica em uma chave provocativa: ”[Tento explicar da forma] mais simples possível, mas não mais simples do que isso, atualizações e resumos de ciência e tecnologia. Sem exageros, sem rodeios, sem ficar pisando em ovos sobre verdades inconvenientes”. Um vídeo dela com mais de três milhões de visualizações, é anunciado no canal como “Eu fracassei (porque a academia é uma droga)”, mas com um título um pouco mais contido: “Meu sonho morreu e agora estou aqui”[3]. Vale a pena assistir. Ela não pisa em ovos para falar sobre discriminação de gênero, as ilusões vendidas aos aspirantes à academia, surgimento de vícios nos mecanismos de financiamento de pesquisa, além de possíveis vieses nas agendas de pesquisa.
Quanto a esse último item, fala constantemente sobre as especulações “que não contradizem princípios vigentes da física”[4], mas para as quais não há nenhuma evidência e continuam agenciando comunidades de cientistas em sofisticados exercícios matemáticos como um fim em si mesmo, sem avanços reais por décadas em relação ao que pretendem demonstrar. Seja uma explicação alternativa para o universo, como a existência de vários universos e não só o nosso[5], seja uma teoria que explicasse tudo, a tal teoria das cordas[6], que necessita de dimensões extras do espaço tempo, em um total de 10 a 26 dimensões, dependendo da versão da teoria.
A comunidade científica em torno desses temas é significativa e continuamente financiada. Logo as críticas de Hossenfelder, que participa de várias mesas-redondas sobre as especulações teóricas e a falta de evidências despertam a ira de muitos. Como pano de fundo temos a questão desconfortável de como uma cientista pode criticar a ciência e a academia. Vamos, portanto, a outro canal do YouTube, “Professor Dave Explica”[7] com mais de 3 milhões de inscritos. O canal dedica-se à divulgação científica em geral e ao desmascaramento do negacionismo científico em particular. O professor Dave, postou um vídeo (data no link)[8], na categoria do tal desmascaramento, sobre Sabine Hossenfelder, reconhecendo suas qualidades como comunicadora da ciência, mas criticando sua postura “anti-establishment” e seu “pessimismo” frente às instituições e afirmando que, sendo assim, alguns de seus vídeos forneceriam munição aos negacionistas da ciência.
A resposta da física alemã veio rapidamente em seu canal[9], um vídeo que Hossenfelder apelidou de “mais um episódio da série ‘Sabine reclamando de alguma coisa’”. É nesse episódio que ela diz a frase que dá o título desta coluna. A pesquisadora resume suas críticas anteriores à academia (ou parte dela) e afirma que ignorar os problemas não os faz desaparecer e que os negacionistas científicos estão alertas sobre isso. Portanto, ela não é líder de torcida porque simplesmente gosta e respeita a ciência. A crítica à física alemã e a réplica dela estão quase empatadas, com mais de 600 mil visualizações e superando 12 mil comentários cada. Imagino que outros vídeos ainda virão. Trata-se de um debate que alcança repercussão (leiam os comentários em cada vídeo) em canais no YouTube e não no espaço acadêmico.
Como se dá a controvérsia nos tradicionais espaços do campo científico? Por exemplo, algumas pesquisas começam a questionar se o continuamente crescente número de artigos publicados não seria prejudicial à própria ciência: a enxurrada de artigos afogaria avanços realmente importantes. Atualizando uma coluna escrita há três anos[10], encontro um artigo científico um pouco mais recente, intitulado “Artigos e patentes vêm se tornando menos disruptivos com o passar do tempo”[11].
Nas conclusões os autores do artigos sugerem a renúncia do mantra “publique ou pereça”, licenças sabáticas mais longas para os pesquisadores e mudanças no foco do financiamento da pesquisa. No entanto, aqui também se instala o debate nesse espaço tradicional da academia: os artigos científicos. Basta vasculhar as mais de 500 citações, de acordo com o Google acadêmico. Os problemas da ciência como objeto de estudo da ciência, mas sem levar a ações para as mudanças anunciadas como necessárias.
O artigo na Nature mencionado, vai ao encontro da série “Sabine reclamando de alguma coisa”. Essas reclamações se correlacionam com uma pergunta, que também sofre resistências na centralidade das esferas acadêmicas tradicionais, apesar da multiplicação de depoimentos, comentários e estudos localizados: o ambiente acadêmico é tóxico? Essa toxicidade é provavelmente uma das responsáveis pela diminuição do interesse na carreira acadêmica (para além do valor das bolsas e salários), a piora da saúde mental dos que estão nesse ambiente e as consequências sobre os próprios resultados obtidos, como aludido no parágrafo anterior. Uma busca representativa, mas obviamente não exaustiva, traz títulos na literatura acadêmica, do tipo “A academia doente precisa de uma mudança cultural”[12], “Uma crise de saúde mental está arrebatando a ciência – a cultura tóxica é responsável”[13] ou na imprensa geral, “Universidades precisam revisar a cultura de trabalho tóxica para os pesquisadores acadêmicos”[14].
A palavra mágica é mudança cultural. Os textos, porém, ainda são vagos a respeito do que fazer realmente no sentido de mudar essa cultura. Por outro lado, a “Insider Higher Education” sugere um plano de “dez pontos para acabar com o local de trabalho tóxico na educação superior”[15]. Alguns desses pontos (promover a diversidade, equidade e inclusão) apresentam progressos significativos em relação aos estudantes de graduação, mas no caso de outras esferas, nem tanto. Uma das dicas é combater um mantra que muitos professam: “fazer mais com menos”. É preciso o óbvio, fazer menos com menos. Apesar dos comentários, depoimentos e pesquisas sobre o tema, a movimentação por mudanças ainda é tímida e envergonhada.
Líderes de torcida muitas vezes se limitam a xingar os adversários, culpar o juiz, o morrinho artilheiro, o centroavante que erra o gol. Está valendo, afinal sou torcedor, ainda que desorganizado. Mas como torcedores sabemos que às vezes é necessário mesmo repensar o próprio clube, desde a relação com a torcida e os sócios, até às ações e diretrizes dos dirigentes, passando pelos times em si…para evitar o rebaixamento.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
[1] O mais recente foi traduzido por mim e publicado aqui: “A ciência tem todas as respostas?”, editora Contexto.
[2] https://www.youtube.com/@SabineHossenfelder/featured
[3] https://www.youtube.com/watch?v=LKiBlGDfRU8
[4] Fase que ela repete para vários casos no seu livro “A ciência tem todas as respostas?”
[5] https://www.nationalgeographicbrasil.com/ciencia/2022/05/o-que-e-o-multiverso-e-ha-alguma-evidencia-de-sua-existencia
[6] https://pt.wikipedia.org/wiki/Teoria_das_cordas
[7] https://www.youtube.com/@ProfessorDaveExplains/featured
[8] https://www.youtube.com/watch?v=70vYj1KPyT4
[9] The crisis in physics is real: Science is failing – YouTube
[10] https://unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/ciencia-um-crescente-mal-estar-e-necessidade-das-mudancas/
[11] https://www.nature.com/articles/s41586-022-05543-x
[12] https://www.science.org/doi/10.1126/science.345.6199.885-b
[13] https://www.nature.com/articles/d41586-023-01708-4
[14] Universities must overhaul the toxic working culture for academic researchers | Anton Muscatelli | The Guardian
[15] Advice for how colleges can avoid or end toxic work cultures (opinion)