Meados de dezembro é quando tentamos não deixar para o ano seguinte as tarefas ainda pendentes. Ao mesmo tempo, neste mês, como acontece de quatro em quatro anos, as discussões sobre como será o futuro começam a tomar forma. São as apresentações das pré-campanhas, que disputam a próxima reitoria de nossa universidade. É a época em que ao mesmo tempo são expostos muitos dos tantos desafios que enfrentamos, a partir de distintos pontos de vista para suas soluções. Anunciado sempre é o melhor futuro coletivo para a Universidade, junto com os melhores futuros individuais daqueles que reivindicam algo para os candidatos e as candidatas. São anseios legítimos, mas que nem sempre estão livres de conflitos de prioridades, ou mesmo de interesses. Nesse caldeirão aparecem problemas urgentes e importantes. Alguns apenas urgentes, outros apenas importantes e, portanto, empurrados para um futuro distante. É possível também que existam questões urgentes e importantes invisíveis para a maioria. Como é fim de ano, tempo no qual me acostumei desde a infância a esperar pelas retrospectivas nos jornais, revistas e televisão, pensei em uma retrospectiva do que nos últimos anos pensei e escrevi sobre a Universidade, minha coletânea de questões, que acredito não poderem ser esquecidas, ainda que muitas vezes difíceis de serem consideradas nos nossos cada vez mais acelerados cotidianos.
Começo pelo começo, ou seja, o texto de estreia neste espaço, há mais de sete anos agora. Lembrei de um dos acessos ao campus[1], onde em um memorial é lembrado o que não devemos esquecer nunca. É uma frase de Florestam Fernandes em letras que esmaecem, mas cujo significado precisamos cuidar para que seja perene: “O objetivo da educação é inventar e reinventar a civilização sem barbárie”. Tanto da educação quanto das outras missões da universidade. Recentemente praticamos esse objetivo em um período obscuro, mas deveria ser a primeira ideia a vir à mente em tempos de paz também. No entanto o objetivo de inventar e reinventar a civilização precisa de invenções e reinvenções do lugar onde o objetivo precisa ocorrer.
É preciso talvez que reinventemos as nossas missões, pois ensino, pesquisa e extensão possivelmente não bastem mais. Podemos pensar em alçar ao status de missões uma quarta e uma quinta categoria de atividades. Uma dessas atividades, que deveriam virar missão, é, nas palavras de Ernest Boyer, a integração: para a missão da pesquisa a pergunta seria: “O que deve ser conhecido, o que falta descobrir?”. Para a integração a questão seria: “O que significam as descobertas?”[2]. O grande educador norte-americano, pouco antes de morrer, apressou-se em enunciar ainda uma quinta missão, a do engajamento público. Boyer tinha já nos anos 1990 a percepção de que o intelectual acadêmico passou a ser cada vez mais o recipiente de um cargo na universidade escrevendo em um determinado estilo voltado apenas aos seus pares, participando cada vez menos de um discurso público mais amplo. Com isso a contribuição da universidade estaria se afastando das grandes questões da sociedade. Isso voltou a me preocupar recentemente, sentindo falta dos acadêmicos públicos e seus textos[3], ainda que em outros formatos, como o vídeo, as manifestações sejam mais frequentes. Mas a importância disso é fundamental, pois, como colocado em um manifesto, “por meio desse envolvimento, contamos histórias das nossas disciplinas e das nossas instituições, tal como queremos que sejam contadas e não como as pessoas de fora da academia as contariam”. Não podemos esquecer que, se a pandemia acabou, o golpe fracassou e o governo mudou, o Brasil paralelo segue em frente.
Uma reinvenção essencial é a do nosso tempo. Não é de hoje que estamos afogados nele[4]. Chama a atenção uma pesquisa entre docentes da longínqua Universidade Estadual de Boise (Estados Unidos), provavelmente desconhecida por aqui, mas cuja universalidade dos resultados parece se insinuar. O antropólogo John Ziker constatou como seus pares usam seus dias e horas: 30% do tempo em atividades de administração não relacionadas ao ensino ou à pesquisa e 17% do horário comercial em reuniões. Isso lá em 2014[5]. Dez anos depois a coisa pode ter piorado com nossas ferramentas remotas, segundo editorial publicado na Nature, comentando o livro recente de Cal Newport: a comunicação entre pares (cientistas) sempre foi essencial para a ciência, mas as possibilidades digitais passaram a tomar em demasia um tempo precioso, que é subestimado: o tempo para pensar. O título de livro é Produtividade lenta[6]. Sim, precisamos nos reinventar para ter mais tempo para pensar. E conviver, reaprendendo a usar espaços que precisam voltar[7]. E como fazer isso? Poderíamos, por exemplo, reinventar, pelo menos parcialmente, a universidade como “anarquia organizada”[8], afinal a transição da anarquia organizada para um “sistema fortemente acoplado” do “novo gerencialismo” trouxe a classificação, a indexação, a avaliação e a contabilização das atividades que surgiam ou já eram feitas. Parece-me que, atualmente, antes de propor qualquer nova ideia, pergunta-se primeiro como ela será classificada, indexada, avaliada e contabilizada. E isso toma muito do nosso tempo para pensar na civilização. Para inventar e reinventar a civilização deveríamos também reinventar a nossa autonomia, pois boa parte do nosso tempo passou a ser usada para atender a demandas de lucro de agentes que pouco se importam com o real protagonismo e relevância da universidade. Paro por aqui. Teria mais o que “retrospectar”, mas este texto começa a parecer uma carta para o Papai Noel. Bom Natal para todas e todos.
O conteúdo deste texto não reflete, necessariamente, a posição oficial da Unicamp.
[1] https://unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/ao-passar-por-um-acesso-ao-campus/
[2] https://unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/quarta-e-quinta-missoes-da-universidade/
[3] https://jornal.unicamp.br/artigo/2024/08/12/peter-schulz/o-ocaso-do-academico-publico/
[4] https://unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/o-tempo-do-homo-academicus/
[5] Novo endereço do artigo citado na minha coluna: https://www.boisestate.edu/bluereview/faculty-time-allocation/
[6] https://www.nature.com/articles/d41586-024-02381-x.pdf
[7] https://unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/comunicacao-da-universidade-e-cantinas/
[8] https://jornal.unicamp.br/artigo/2024/05/22/peter-schulz/relembrando-a-anarquia-organizada/