Na eterna discussão sobre o que é ciência, existe pelo menos um ponto em comum entre todas as comunidades científicas das diferentes áreas do conhecimento: os membros de cada comunidade se comunicam entre si de uma forma que, em esmagadora maioria, só eles mesmo entendem. Essa forma pode variar um tanto entre as comunidades, mas as variações têm em comum esse caráter de exclusividade. Foi assim que a ciência se desenvolveu enormemente nos últimos poucos séculos, e talvez não pudesse ser diferente, mas, nesse período, nem sempre os cientistas ou acadêmicos (em geral docentes nas universidades) se limitaram a se comunicar apenas consigo mesmos. E, assim, atravessando a fronteira entre a academia e o público, acabaram por sugerir uma nova missão para as universidades, a missão do engajamento, definida por Ernest Boyer nos idos dos anos 1990. Já escrevi sobre isso[i], bem como sobre uma das importantes travessias de fronteira, a divulgação científica, e como a formação no mundo acadêmico é ainda para falar apenas para nós mesmos[ii]. No entanto, é necessário voltar ao tema, ampliando as travessias de fronteiras, já que a divulgação científica, como mencionado, é apenas uma delas.
Essa questão é continuamente discutida, tanto em blogs, livros e artigos para um público amplo, como em artigos e livros acadêmicos, duas das formas para cientistas se comunicarem entre si. O “acadêmico público” do título acima é uma idiossincrasia deste autor, visto que a expressão corrente é “intelectual público”, o que não deixa de ser um pleonasmo: a palavra intelectual referia-se originalmente ao acadêmico (ou escritor ou artista) que se manifestava sobre questões sociais e de interesse público geral. Com o tempo, no entanto, “intelectual” passou a se referir ao acadêmico, em geral dentro das universidades, e a expressão intelectual público passou a ser necessária[iii]. Deixando de lado a disputa dos termos, a discussão é sobre o papel do acadêmico público, que, segundo o historiador francês Pierre Rosanvallon, “é quem vincula um trabalho de análise a uma preocupação cidadã. Do contrário, é um especialista”. A importância desse acadêmico que não se limita a ser especialista pudemos ver durante a pandemia de covid-19, crise que levou vários cientistas a atravessarem as fronteiras com o público, desempenhando um papel crucial no combate à desinformação tão nociva à sociedade[iv].
A percepção da relevância dessa atuação é, por outro lado, algo intangível, não tão simples de ser mensurado como a comunicação entre cientistas, que é facilmente contabilizada para fins de contratações, promoções e financiamentos de pesquisadores. Como avaliar o impacto da comunicação com o público? Sem respostas fáceis, as recompensas para os acadêmicos são direcionadas aos que comunicam entre si, e não com os outros. Esta seria uma das razões para a sensação do declínio dos intelectuais públicos nas universidades. A percepção desse declínio é compartilhada por diferentes frentes desde o manifesto de Ernest Boyer pela missão do engajamento, frentes que também reforçam sua crescente necessidade, como escrevem Nicholas Behm, Sherry Rankins-Robertson e Duane Roen, no artigo “Em defesa dos acadêmicos como intelectuais públicos”, publicado pelo portal da Associação Americana de Professores Universitários[v]:
“Embora o trabalho dos intelectuais públicos possa não ser fácil, é crucial. Ao interagir com o público, os acadêmicos podem fortalecer a democracia e reforçar a posição do ensino superior numa sociedade democrática. Através deste envolvimento, contamos histórias das nossas disciplinas e das nossas instituições, tal como queremos que sejam contadas, e não como as pessoas de fora da academia as contariam. Como intelectuais públicos, temos a oportunidade de ajudar a moldar o futuro do ensino superior e de causar impacto nas comunidades em que vivemos”.
O rigor da academia não pode abandonar o intelectual que se torna público, como observa precisamente o sociólogo Pierre Bourdieu, sobre os
“pensadores apressados […] propensos a valorizar o sucesso comercial e suas regras, em detrimento das regras do campo acadêmico, transformando o mercado em ‘instância legítima de legitimação’ de suas ideias. […] esses intelectuais mediáticos acabam prejudicando – ou ao menos ocultando – o trabalho dos verdadeiros pensadores, […] dificultando a ação pública de quem tem realmente algo interessante a dizer“.
Ou seja, existe sempre o risco de que, sendo “público” demais, o acadêmico passa a ser “intelectual” de menos. Há pelo menos um estudo acadêmico com dados empíricos sobre isso. Trata-se de um delicioso capítulo de livro do sociólogo sueco Olof Hallonsten, intitulado “Inovacionismo e os novos intelectuais públicos”[vi], cujo resumo faz coro ao que dizia Bourdieu:
“Os intelectuais públicos já foram acadêmicos honestos e bem informados, que se engajam em debates críticos para trazer credibilidade ao poder, mas que hoje se parecem mais com celebridades que ganham muito dinheiro, vendendo uma mensagem simplificada demais aos decisores políticos e ao público”.
Deixando os novos intelectuais de lado, volto aos acadêmicos honestos. A memória afetiva lembra o predileto da minha adolescência, o filósofo e matemático britânico Bertrand Russell (1872-1970), com seus ensaios populares. Lembro em especial o ensaio “Elogio do Lazer” (aliás, discuti-o em aula recentemente), que antecipa em décadas o que virou moda nos últimos tempos como ócio criativo e a sociedade do cansaço. Russell influenciou Noam Chomsky, que talvez seja o grande exemplo do que é um intelectual público.
Se ainda existem ou não acadêmicos públicos e quantos eles seriam nas universidades é também objeto de pesquisa, como o recente artigo (2022) de Christopher Marsicano e colegas sobre se há ou não diminuição do número de intelectuais públicos nas instituições de ensino superior nos Estados Unidos[vii]. Na introdução, os autores lembram definições e escopos desses intelectuais públicos e as maneiras como se comunicam. Os dados sugerem que, em universidades intensivas de pesquisa, esses intelectuais seriam apenas 0,8% dos docentes. Se fosse possível transferir esse dado para a Unicamp, por exemplo, teríamos apenas 15 docentes que se encaixariam na atividade. Em outras categorias de instituições de ensino superior nos Estados Unidos, podem chegar a 6%, e, na média geral, pouco menos de 3%.
Nesta discussão toda, é bom lembrar que o intelectual público é o acadêmico que se dedica regularmente a essa atividade, como de resto se dedica continuamente ao ensino e a escrever seus artigos científicos e capítulos de livro. Se forem consideradas também participações eventuais em mesas redondas e entrevistas, as porcentagens acima devem ser maiores, lá e aqui também.
Para um docente universitário se dirigir a um público mais amplo, para além de sua especialidade, o colunismo em portais, jornais e revistas das universidades revela-se uma estratégia interessante, que pode ser também prazerosa. Tornou-se, por exemplo, uma atividade que realizo com muito carinho. É justamente o espaço onde este texto aparece. É o espaço que já contou com a participação de intelectuais públicos por excelência, como Roberto Romano[viii] e Reginaldo de Moraes[ix]. Não é por acaso que um livro de coletânea dos textos de Moraes, em grande medida publicados no Jornal da Unicamp, intitula-se “Palavra Engajada”.
Eu sou mero aprendiz desses mestres, mas sigo militando no colunismo. O prazer da atividade é a primeira recompensa, mas a insistência que me foi oferecida começou a trazer outras, que se sobrepõem aos indicadores pelos quais nós, os acadêmicos, batalhamos: convites para palestras, mesas redondas, citações em artigos e livros, uso em bibliografias de cursos em outras universidades, reprodução dos textos em outros veículos de comunicação. Vários colegas ensaiaram esse prazer, mas acabaram desistindo depois de algumas colunas. Perguntados pela razão, a falta de tempo era a resposta mais frequente.
A busca das recompensas, que regem a vida acadêmica como ela é, parece tomar todo o tempo disponível de todos na academia. Curiosamente, a falta de tempo parece ter sido diagnosticada de modo mais abrangente. Um editorial da revista Nature, publicado há pouco (julho de 2024), começa comentando o livro mais recente do cientista de computação Cal Newport: “Produtividade lenta”. A comunicação entre pares (cientistas) sempre foi essencial para a ciência, mas as possibilidades digitais passaram a tomar em demasia um tempo precioso, que é subestimado: o tempo para pensar. O título do editorial é exatamente “cientistas precisam de mais tempo para pensar”[x]. Uma coisa eu sei: para se comunicar com os outros é preciso pensar bastante, e nem sempre funciona.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
[i] https://unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/quarta-e-quinta-missoes-da-universidade/
[ii] https://unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/para-quem-os-cientistas-escrevemos/
[iii] A wikipédia resume a evolução desses usos.
[iv] O exemplo mais notável é provavelmente Luiz Carlos Dias, que relata sua intensa atividade no livro “Não há mundo seguro sem ciência”, da editora Paraquedas.
[v] https://www.aaup.org/article/case-academics-public-intellectuals
[vi] https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-3-031-49196-2_5
[vii] https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/he.20464
[viii] https://unicamp.br/unicamp/noticias/2021/07/22/brasil-perde-lucidez-de-roberto-romano/
[ix] https://unicamp.br/unicamp/noticias/2019/08/26/unicamp-lamenta-perda-de-reginaldo-de-moraes/