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Em busca das memórias da repressão da ditadura militar brasileira (1964-1985), as equipes de arqueologia da Unicamp, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) realizaram, entre os dias 27 de outubro e 8 de novembro, a segunda etapa das atividades arqueológicas no antigo DOI-Codi/SP. Os objetos encontrados tanto na primeira etapa quanto na segunda, além de documentos inéditos, serão apresentados em uma exposição que será aberta durante a Calourada 2026 da Unicamp.

O DOI-Codi, cuja sigla remete ao Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna, ficava na Rua Tutóia, 921, atual sede da 36ª Delegacia de Polícia Civil da capital paulista. O local se tornou, entre 1969 e 1983, um dos principais centros de tortura e repressão do regime militar.

A coordenadora do LAP, Aline Vieira de Carvalho: áreas próximas da primeira escavação
A coordenadora do LAP, Aline Vieira de Carvalho: áreas próximas da primeira escavação

A primeira escavação foi realizada em 2023 e, nesta segunda etapa, conta a professora Aline Carvalho, coordenadora do Laboratório de Arqueologia Pública “Paulo Duarte” (LAP), vinculado ao  Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Unicamp, novas áreas do pátio foram investigadas. “São áreas próximas da primeira escavação, mas que não tínhamos conseguido abarcar na etapa inicial.”

Objetos como uma prótese dentária, um frasco de colírio ainda com o conta-gotas, um conjunto de botões e uma moeda com o rosto de Getúlio Vargas estão entre os itens encontrados. “São materiais do cotidiano, como louças, cinzeiros, peças médicas, mas são itens emblemáticos, que virão para o Laboratório de Arqueologia da Unicamp. Nosso objetivo é construir um acervo arqueológico para um futuro espaço de memória voltado às discussões sobre estado de direito e da própria democracia”, conta Carvalho.

Estes materiais são oriundos da escavação no espaço chamado de trincheira, na entrada do edifício, onde ocorriam grande parte dos interrogatórios e torturas e onde foi feita a foto que simula o suicídio de Vladimir Herzog, até o momento única imagem interna do edifício durante o funcionamento do DOI-Codi, onde quase 7 mil pessoas foram interrogadas e torturadas.

A pesquisadora adianta que a exposição que o LAP está organizando na Unicamp será montada no início do ano letivo na Biblioteca de Obras Raras “Fausto Castilho” (Bora). “A Unicamp tem sido uma defensora muito aguerrida dos trabalhos relacionados ao tema. Tanto a equipe de pesquisadores como a equipe administrativa da Universidade entendem que os saberes se constroem de forma dialogada, ativa com a sociedade, e a Unicamp tem mostrado capacidade de estar presente”, define Carvalho, que lembra que, em abril deste ano, durante a 190ª reunião do Conselho Universitário (Consu), foi aprovada a proposta de tornar a Universidade a responsável pela gestão de um memorial a ser instalado nas dependências do DOI-Codi, a partir de um acordo com o Ministério Público de São Paulo.

No sentido horário, objetos encontrados nas escavações: prótese dentária, botões, moeda e colírio
No sentido horário, objetos encontrados nas escavações: prótese dentária, botões, moeda e colírio

História e memória
Em um “conjunto de ações de valorização do tema”, a pesquisadora destaca que a mostra da Calourada 2026 vai expor objetos encontrados nas escavações e documentações inéditas, provenientes dos arquivos da Faculdade de Medicina (FCM) e do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL). “A ideia é pensar no papel que a Unicamp exerceu durante a ditadura, na figura dúbia do Zeferino Vaz [primeiro reitor da Unicamp], que, por um lado, negociava com os militares, mas, por outro lado, protegia a Universidade da repressão e ajudou professores e estudantes perseguidos”, conta.

Carvalho ressalta que a parceria com a Bora, inclusive, já começou, com a exposição “Ausências Brasil”, aberta dia 7 de novembro e que fica em cartaz até 10 de janeiro. A mostra apresenta o trabalho do fotógrafo argentino Gustavo Germano sobre os desaparecimentos forçados durante a ditadura em imagens que revelam dor, saudade e, principalmente, injustiça. O projeto “Ausências” começou na Argentina, motivado pelo desaparecimento do irmão do fotógrafo, detido pela ditadura argentina em 1976, e cujos restos mortais foram identificados somente em 2014. O projeto se expandiu para outros países latinos alvos da Operação Condor [campanha de repressão e terrorismo de Estado orquestrada pelas ditaduras no Cone Sul, com o apoio dos Estados Unidos] e chegou ao Brasil com o resgate de 12 histórias de desaparecidos.

“Nesta relação entre passado, presente e futuro, nosso objetivo é não deixar a memória se perder. O passado é o que aconteceu, no presente temos as ações, que servem de exemplo para aqueles que veem algo de positivo na ditadura, que dizem que não houve violência. E, na relação com o futuro, que é muito delicada, está o desejo de tempos melhores”, ressalta a pesquisadora.

Fachada do prédio do antigo DOI-CODI, em São Paulo
Fachada do prédio do antigo DOI-CODI, em São Paulo

Degrau por degrau
Novas escavações no local estão planejadas para até agosto de 2026. “Em um mundo ideal, precisaríamos de três a seis meses para levantar todas as áreas, mas esse projeto é custoso, então, por isso, estamos fazendo em etapas mais curtas, como se fossem degraus”, explica. A segunda etapa, aliás, só foi possível graças ao financiamento via emenda impositiva (n° 2025.274.71731) do deputado estadual Guilherme Cortez (PSOL) e à parceria com o Sesc Vila Mariana.

“A equipe tem um núcleo comum, mas está sempre abrindo vagas para novos pesquisadores. A ideia é de que mais pessoas tenham a experiência de campo em um tema tão difícil”, destaca Carvalho, que ressalta o “pioneirismo” do trabalho que vem sendo realizado. Na segunda etapa, a Unicamp contou com graduandos do curso de História.

Participam da coordenação da equipe os professores Andrés Zarankin (UFMG) e Cláudia Plens (Unifesp). Nesta segunda etapa, a equipe de Arqueologia Forense ampliou as análises no segundo andar do edifício, com o objetivo de identificar possíveis vestígios orgânicos humanos, como a presença de sangue, por meio da aplicação de técnicas forenses  que incluem  o uso de luminol, reagente químico que, em contato com o ferro da hemoglobina, emite uma luz azulada. Também foi iniciado um levantamento arquitetônico coordenado pelo arquiteto Alessandro Sbampato (Rebrapesc) em colaboração com Deborah Neves (Unifesp).

Carvalho, junto com a professora Fernanda Lima (UFMG), atua na promoção de visitas mediadas ao espaço. O local também tem recebido ex-presos políticos que passaram pelo DOI-Codi e familiares de sobreviventes, fortalecendo o compromisso do projeto com a escuta, o reconhecimento e a reconstrução da memória coletiva.

Foto de capa:

Técnicos realizam a primeira etapa das escavações no prédio do DOI-CODI
Técnicos realizam a primeira etapa das escavações no prédio do DOI-CODI

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Assista ao documentário:

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