
O alto nível de digitalização da China é resultado de três décadas de planejamento e investimentos para engajar sociedade, governo e empresas na busca de aplicações tecnológicas que permitam a inclusão e o acesso amplo, melhorando a vida da população nas áreas urbanas e rurais. O sociólogo Qiu Zeqi, professor da Universidade de Pequim (PKU, na sigla em inglês), apresentou na quarta-feira (19), no Instituto de Economia (IE) da Unicamp, uma série de dados sobre esse processo, que transcorreu desde os anos 1990, e sobre como os chineses estão se colocando na vanguarda de áreas como a inteligência artificial e a disseminação das novas gerações de redes de internet móvel.
Segundo o docente chinês, atual convidado do Programa “Cesar Lattes” do Cientista Residente do Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp, a digitalização da China é amparada, principalmente, no tripé disponibilidade de infraestrutura, difusão das aplicações tecnológicas e resultados eficientes. Traçando uma linha do tempo desde que o país se conectou à internet, em 1994, Qiu revelou como o governo chinês criou políticas públicas para fomentar o desenvolvimento do setor digital. Uma delas foi a criação de um grupo para tratar da informatização, dentro do Conselho de Estado, em 1996. Qiu integrou esse comitê pioneiro, acompanhando todo o processo de coordenação nacional de informatização do país.
Em 2023, a economia digital representava 42% do Produto Interno Bruto (PIB) da China, um movimento crescente com impactos em todas as esferas da sociedade, abrangendo o produtor agrícola, o usuário doméstico, as empresas, os governos e a internet das coisas, afirmou o palestrante. Como consequência, grandes empresas do setor tecnológico nasceram no país, na criação e no desenvolvimento de produtos, na prestação de serviços, no comércio eletrônico e em redes de telecomunicações, entre outros. Atualmente, 100% das cidades chinesas têm cobertura da rede 5G, alcançando 71% dos cidadãos chineses, enquanto apenas 51% da população mundial está conectada a essa tecnologia de redes móveis.
“O 5G se tornou a principal infraestrutura de serviço de conexão na China. A cobertura total com alta velocidade e custo acessível é a principal política do governo chinês. É por isso que a inclusão é a base da política da digitalização da China”, declarou o sociólogo. De acordo com Qiu, esse acesso é garantido mesmo em localidades montanhosas e remotas, como nas regiões do Tibete e de Xinjiang.

No âmbito governamental, mais de um bilhão de cidadãos chineses são usuários das plataformas digitais do governo, que disponibiliza mais de 10 mil serviços online, dados que evidenciam a abrangência da digitalização na sociedade. Apesar dos números impressionantes, ainda são necessárias melhorias, já que, segundo Qiu, as Províncias do leste da China estão mais à frente nesse processo de digitalização em relação às do oeste, o que impõe desafios às políticas governamentais.
Em sua apresentação, o sociólogo mostrou, ainda, que os setores de educação e saúde são bons exemplos de como o governo tem empregado a infraestrutura e a tecnologia para ampliar o acesso da população aos serviços públicos. Em vilas remotas, em que os estudantes teriam que fazer longos deslocamentos para frequentarem o ensino fundamental em escolas, o governo está disponibilizando terminais de computadores e conexões de alta velocidade para as crianças estudarem. Outra aplicação é no uso das cirurgias remotas, feitas a partir de grandes centros urbanos com apoio de equipes médicas locais para operar pacientes por meio da internet, reduzindo custos e tornando os avanços tecnológicos da medicina mais acessíveis.
Quebra de paradigma
Em janeiro, a China anunciou o lançamento da plataforma de inteligência artificial (IA) DeepSeek, causando um enorme impacto no setor da tecnologia mundial devido a seu reduzido custo de investimento em comparação com os demais concorrentes do Ocidente e a seu código de fonte aberta. “Há 20 anos, começamos a planejar nossa inteligência artificial. O DeepSeek não surgiu de uma hora para outra, mas sim de um planejamento feito há 20 anos”, explicou Qiu, referindo-se à série de políticas, entre elas o plano de ação para IA lançado em 2016, para implementar essa tecnologia em diversos setores e fortalecer sua posição no cenário global.
O professor da PKU destacou que, atualmente, há iniciativas na China empregando a IA para integrar as diversas formas de medicina tradicional chinesa com a medicina moderna e para melhorias no transporte inteligente, com veículos autônomos e gestão do tráfego para redução de acidentes e aumento da eficiência, proporcionando contribuições significativas para as cidades inteligentes.
“Temos um caminho claramente traçado com políticas que tornar as tecnologias mais eficientes para promoverem um crescimento econômico saudável. Esta é a estratégia nacional”, disse Qiu, ressaltando ainda os fatores de inclusão social que a norteiam. O sociólogo defendeu que há muitas possibilidades de parcerias entre o Brasil e a China neste setor, explorando suas forças com apoio mútuo para promover avanços. Até 2049, quando a República Popular da China completará seu centenário, a China pretende ser um dos países a liderar a economia digital no mundo.
Em entrevista ao Jornal da Unicamp, o professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCH) da Unicamp Tom Dwyer, membro do Grupo de Estudos Brasil-China (GEBC), destacou a importância da palestra para ampliar o conhecimento que alunos e pesquisadores brasileiros têm sobre a China e para compreender como os chineses se colocam nos debates e nas negociações em âmbito global. “A sociologia da China tem a missão de servir ao povo e à estabilidade social, e o conhecimento na China está ligado a isso, inclusive a ciência”, explicou o sociólogo do IFCH. Para Dwyer, há um total desconhecimento entre os cientistas sociais do Brasil sobre o funcionamento da sociedade chinesa, motivo pelo qual temos que buscar cada vez mais a construção de diálogos científicos.

O professor do GEBC lembrou que Qiu Zeqi foi um dos últimos alunos do cientista Fei Xiaotong (1910-2005), o pai da sociologia chinesa, tendo construído uma importante trajetória acadêmica como cientista social que não limita sua produção a monografias, mas também abarca as pesquisas de campo e a atuação em vários conselhos governamentais como uma forma de observação participante em meio a atores-chave. Na quarta-feira (26), às 17h, o professor da PKU dará a palestra “Sociologia na China”, no IFCH, no Auditório Marielle Franco, evento sob a organização de Dwyer.
Para o professor Celio Hiratuka, diretor do IE e um dos organizadores do evento, foi um privilégio assistir a uma palestra de um dos mais famosos cientistas sociais da China na Unicamp. “No IE, ainda acreditamos que não será possível avançar na compreensão da economia e da sociedade sem um diálogo muito intenso entre diferentes áreas das ciências humanas. Então, ter alguém tão destacado, com sua visão ampla, é muito importante para nós.”
Graduado pela Huazhong Agricultural University (HZAU), em 1981, Qiu Zeqi formou-se mestre pela Graduate School of Chinese Academy of Agricultural Sciences (GSCAAS) em 1986 e doutor em sociologia pela PKU em 1994. Suas principais publicações são na área da sociologia, abordando suas relações com temáticas da tecnologia digital. Entre seus livros, estão “Rebuilding Relationship of Individuals and Society with Digital Media” (Peking University Press, 2024) e “Technology and Organization Change” (Economic Management Press, 2008).

Ele é o 8º convidado do Programa “Cesar Lattes” do Cientista Residente, que recebe pesquisadores envolvidos em pesquisas inter e multidisciplinares. Já fizeram parte da iniciativa do IdEA o físico Francesco Vissani (2019, física e astrofísica de neutrinos), o físico e historiador Olival Freire Junior (2020, história das ciências), o físico Rogério Rosenfeld (2020, cosmologia), o engenheiro Mario Veiga (2022, planejamento energético), o classicista David Konstan (2023, estudos clássicos), a geóloga planetária Rosaly Lopes (2024, astronomia e geologia planetária) e o educador Jorge Bento (2024, lusofonia e esporte).
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