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Cultura e Sociedade

Álbum revela trabalho de composição inédito de Damiano Cozzella

Arranjador reconhecido, músico foi professor do Instituto de Artes e teve acervo doado para a Universidade

A doação do acervo de Damiano Cozzella para o Centro de Integração, Documentação e Difusão Cultural (Ciddic) da Unicamp trouxe à tona uma faceta desconhecida de um músico versátil. Famoso dentro e fora do Brasil por seus arranjos, o paulistano trabalhou como maestro, instrumentista, professor e até mesmo jurado de festival. Contudo preferiu guardar para si as músicas que compôs. Parte desse legado inédito transformou-se em álbum, em um trabalho de resgate e edição de partituras que envolveu pesquisadores do Ciddic, docentes do Instituto de Artes (IA) e alunos de graduação e pós-graduação do Departamento de Música desse instituto.

A ideia de gravar Cozzella surgiu durante a análise do material encontrado em seu acervo, um trabalho vinculado ao projeto de edição de partituras conduzido no Ciddic com o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Disponível gratuitamente em versão digital, no YouTube e em plataformas de streaming, o registro reúne 33 peças para piano, trompete, violino e clarinete, interpretadas por 19 instrumentistas – entre professores e estudantes do IA. O lançamento aconteceu em novembro de 2024, durante o I Encontro Damiano Cozzella, que reuniu na Unicamp músicos, pesquisadores e ex-alunos para discutir a vida e o trabalho do músico paulistano.

Da análise do material encontrado em seu acervo surgiu a ideia da gravação
Da análise do material encontrado em seu acervo surgiu a ideia da gravação

Pesquisador-coordenador do Centro de Documentação de Música Contemporânea (CDMC) do Ciddic, o compositor Tadeu Taffarello tomou a frente da edição das partituras e foi responsável pela realização do álbum, ao lado do trompetista Paulo Ronqui (professor do Departamento de Música do IA) e do musicólogo Fernando Magre (pesquisador-colaborador do Ciddic). O lançamento do registro viu-se contemplado pelo Edital do Fundo de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão da Pró-Reitoria de Pesquisa (Edital Faepex PRP).

O álbum apresenta um autor com domínio técnico sobre a escrita musical e uma tendência de embaralhar erudito e popular. “É possível perceber a influência do jazz, do chá-chá-chá, do bolero. A música popular está enraizada nessas composições”, diz Taffarello. Já a importância do humor se revela logo no título do álbum, “Mais de 20 pekenas suaves melodias feitas em formato pop para serem tocadas com o sorriso do Ivon Cury e o vibrato do Monetário & Financeiro”. Magre, que pesquisa a vida e o legado de Cozzella para seu pós-doutorado, avisa que, apesar da graça da mensagem, a brincadeira não é gratuita. “Esse título carrega a ideia de misturar o que seria a alta e com a baixa cultura”, avalia.

Damiano Cozzella foi aluno e discípulo de Hans-Joachim Koellreutter
Damiano Cozzella foi aluno e discípulo de Hans-Joachim Koellreutter

Nas partituras originais, encontraram-se recados espirituosos – alguns acompanhados de desenhos – que Cozzella deixou para o futuro intérprete. Já na partitura da primeira peça do álbum, consta o seguinte aviso: “Senhor trompetista, nestas músicas, o senhor está se divertindo? Se não, não toca”. Segundo Magre, essa comunicação representa uma forma de questionar a existência de fronteiras musicais, além do próprio papel do artista. “Tem muita autoironia no seu trabalho de composição”, analisa o musicólogo.

Cozzella, um dos idealizadores do Departamento de Música da Unicamp, trabalhou nesse departamento como docente até quase se aposentar, nos anos 1990. Três décadas depois, alunos de graduação e pós-graduação do IA tiveram a oportunidade de conhecer seu trabalho como compositor em um projeto desenvolvido ao lado de seus professores. “Esses alunos puderam fazer parte de um resgate histórico de uma obra artística que ficará para a posteridade. Isso é fruto de um momento muito pujante que vivemos aqui na Unicamp, de pesquisa nas artes, na área de performance musical. Isso é um presente”, avalia Ronqui.

O professor do IA, que tocou trompete em dez faixas do álbum e que arregimentou os outros instrumentistas para a gravação, ressalta a complexidade técnica como um dos traços mais marcantes do autor. “Em uma composição, a fórmula de compasso pode ser bastante complicada de fazer e o resultado, divertido. Há uma genialidade, que era própria do Cozzella – ele escrevia muitos arranjos para música popular, embora fossem para orquestra sinfônica. Todas as obras têm uma certa sátira, mas também uma sofisticação sob essa graça. São peças incríveis”, afirma.

Pesquisador de trompete paulista, Ronqui integrou a Sinfônica de Campinas por 14 anos e se acostumou à presença de Cozzella durante os ensaios. Embora tivesse tocado muitos de seus arranjos na orquestra municipal, somente com o projeto do álbum veio a conhecer seu trabalho como compositor. “Embora haja mais de uma centena de composições para trompete feitas por compositores em São Paulo, ele é o autor brasileiro que, certamente, mais escreveu para trompete e piano, por exemplo”, diz. 

À frente do trabalho de edição das partituras contidas no acervo, Taffarello conta que a escolha do material para o repertório do álbum resultou da condição de cada peça. Assim, foram selecionadas aquelas que pareciam mais completas e bem acabadas, sem necessidade de muitas intervenções. Detalhado, o processo editorial se estendeu até a gravação das músicas. O resultado está em um livro de partituras, lançado pela editora do Ciddic.

Da esquerda para a direita, o compositor Tadeu Taffarello, o musicólogo Fernando Magre e o docente do IA Paulo ronqui: partituras originais
Da esquerda para a direita, o compositor Tadeu Taffarello, o musicólogo Fernando Magre e o docente do IA Paulo Ronqui: partituras originais

Um artista político

Aluno e discípulo de Hans-Joachim Koellreutter, cujo papel foi fundamental para a música do Brasil no século 20, Cozzella trilhou uma carreira singular, afinal não se limitou a uma área específica, como é mais comum, observa Taffarello. Com Rogério Duprat, Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Oliveira, fundou no início dos anos 1960 o Grupo Música Nova, que revolucionou a música erudita do país com seu experimentalismo. Com o golpe cívico-militar de 1964, no entanto, sua carreira sofreu uma guinada. “Cozzella passou a priorizar o trabalho como arranjador e a se aproximar da música popular por acreditar que, dessa forma, conseguiria atingir as massas, fazer a música chegar a mais pessoas. Não é que deixou de compor. Ele escreveu muitas obras de cunho mais experimental, mas propositadamente manteve esse material para si, por ser contra a ideia de o artista ser visto como um gênio”, diz o pesquisador-coordenador do Ciddic.

Ainda na década de 1960, elaborou os arranjos de álbuns icônicos da MPB, sobretudo os discos tropicalistas de Caetano Veloso e Tom Zé, tornando-se famoso mundialmente. Ao lado do maestro Benito Juarez, na década seguinte Cozzella deu início a um trabalho pioneiro na Universidade de São Paulo (USP) e, posteriormente, na Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas e na Unicamp. Deixou centenas de partituras de arranjos de música popular, tanto para corais como para conjuntos orquestrais. “Nos anos 1980, chegou a fazer em torno de 300 arranjos, segundo informações do Arquivo Central do Sistema de Arquivos [SIARQ] da Unicamp. A orquestra de Campinas ficou conhecida como a Sinfônica das Diretas Já, porque participou de muitos comícios. Cozzella inclusive compôs uma música chamada ‘Diretas Já’, que estou procurando”, revela Magre

Ao se dedicar a adaptar obras de artistas populares do país para coro e orquestra, Magre vê Cozzella como peça fundamental na criação de uma nova forma de se fazer música coral, no Brasil. “Havia arranjos de música folclórica, por exemplo, de [Heitor] Villa-Lobos. Mas pegar uma música de Chico Buarque, no ano em que foi composta, e fazer um arranjo para coro era novidade. Mais ainda para orquestra, um corpo musical mais tradicional e mais difícil de se mexer”, avalia. Segundo o musicólogo, o arranjador revolucionou o canto coral com sua orquestração, por possibilitar o uso de uma técnica vocal peculiar. “Há uma técnica vocal apropriada para as composições tradicionais, já conhecida, que vinha do canto lírico. Mas nesses arranjos para música popular, a ideia era um canto um pouco mais próximo da fala, para o resultado não soar caricato.”

O lançamento do álbum, na visão de Taffarello, preenche uma lacuna artística deixada por Cozzella, morto em 2018. Não é certo, porém, que a homenagem contasse com a aprovação do artista. “Quando fizemos o Encontro Damiano Cozzella, a Mariana, sua filha, disse: ‘Eu tenho certeza de que, se meu pai estivesse aqui, não estaria apoiando esse evento e não nos deixaria fazê-lo, pois não gostava de chamar atenção para si’”.

Ficha Técnica

ÁlbumMais de 20 pekenas suaves melodias feitas em formato pop para serem tocadas com o sorriso do Ivon Cury e o vibrato do Monetário & Financeiro
CompositorDamiano Cozzella
TrompeteAdenilson Telles, Daniel Cavalcante, Fábio Cerqueira, Jefferson Anastácio e Paulo Ronqui
PianoBruna Mello, Bruno Filette, Gabriela Camargo, Henrique Villela, Isis Adum, Lucas Haruki Guinosa, Luiza Mathias, Mateus Santin, Nickollas Lopes, Nicolas Ferreira, Rosivania Alvarenga e Thiago Neri
ViolinoAdonhiran Reis
ClarineteVinícius Fraga
OrganizaçãoPaulo Adriano Ronqui, Tadeu Taffarello e Fernando Magre

Assista ao conteúdo do I Encontro Damiano Cozzella realizado em outubro de 2024:

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