Diversidade de cores, sons, histórias, culturas e conhecimentos. Assim é a programação do Abril Indígena 2024, em sua primeira edição, organizada na Unicamp e que segue até dia 30 de abril. A iniciativa, que remete ao Dia dos Povos Indígenas, 19 de abril, celebra a abertura da Universidade a um número crescente de estudantes indígenas e de outros povos, valorizando e reconhecendo os saberes provenientes de práticas culturais de diferentes etnias, incluindo africanas e afrodiaspóricas e outras.
“O evento está bem festivo neste ano, com a inauguração de dois espaços, e conta também com rodas de conversa, oficina, palestra, exposição e outras ações em Campinas e Limeira”, informou Alik Wunder, vice-presidente da Comissão Assessora para a Inclusão Acadêmica e Participação dos Povos Indígenas (Caiapi), vinculada à Diretoria Executiva de Direitos Humanos (DEDH) da Unicamp.
De acordo com Wunder, o Abril Indígena 2024 também dá visibilidade ao Vestibular Indígena da Unicamp, realizado desde 2018, com o primeiro ingresso de alunos em 2019. Atualmente, a Universidade conta com mais de 400 estudantes indígenas, de mais de 50 povos diferentes, distribuídos por todos os cursos. “Percebemos que, na região Sudeste, há um distanciamento muito grande da história indígena do nosso país e da questão indígena contemporânea. Temos pessoas cada vez mais sensibilizadas, conscientes de que precisamos de muito esforço institucional para realizar uma inclusão. Já caminhamos bastante. Daqui a uns anos teremos muitos doutores, mestres e professores indígenas fazendo essa transformação na Unicamp.”
Esse é também o propósito da Casa dos Saberes Ancestrais, localizada ao lado do Espaço Cultural Casa do Lago, e do Jardim dos Saberes Ancestrais, uma área montada em frente à Faculdade de Educação (FE), espaços inaugurados na sexta-feira, dia 12. Os espaços constituem pontos de referência para o encontro multiétnico da comunidade da Unicamp, enriquecendo o aprendizado universitário por meio de tradições orais e sensoriais.
“A arquitetura da sala de aula é hierárquica e já diz quem sabe e quem não sabe. Nesses espaços, temos uma outra forma de organização – em roda, em que já está dito que cada um tem sua importância. Trata-se de locais de experimentar outras linguagens e modos de expressão. Na Faculdade de Educação, temos o Jardim dos Saberes como uma sala de aula a céu aberto, utilizada por professores, e também um espaço de descanso, de encontros informais”, completou Wunder.
Saberes Ancestrais
Embaixo da sombra das árvores, o Jardim dos Saberes Ancestrais convida os visitantes a sentarem e admirarem pedaços de troncos que dão forma circular ao espaço. Eles receberam pinturas que remetem à história dos diversos povos integrantes hoje da comunidade da Universidade. Nesse espaço, no dia 12, reuniram-se autoridades, professores e estudantes para dar início à inauguração dos dois ambientes. Dali todos partiram em uma caminhada até a Casa dos Saberes Ancestrais para o encerramento da cerimônia.
Nalbert Barreto, originário de São Gabriel da Cachoeira (Amazonas), iniciou sua trajetória acadêmica na Unicamp após aprovação no Vestibular Indígena em 2022 e atualmente cursa licenciatura em História. Ele foi um dos alunos convidados a participar da pintura dos troncos que compõem o jardim. “Muita gente só vê a questão estética. Para nós, os grafismos são nossa simbologia de vida, são nossas histórias. São histórias vivas, e fincar isso no solo da Unicamp é muito significativo”, disse. Barreto colaborou com a pintura do Umbigo do Mundo, que representa a origem dos povos Baré e Baniwa. Em outro tronco, do povo Tukano, por exemplo, estão pintadas as escamas da Cobra Canoa, que carregou os indígenas por diversas partes do Brasil até os afluentes do Rio Amazonas. O Jardim do Saberes Ancestrais reúne narrativas de povos diversos, como Dessana, Iorubá, Bwa, Nasa, Aymara, Ainu (Japão), ciganos e muitos outros.
Cláudio Ferreira, diretor-adjunto de Cultura da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (Proec), destacou que o jardim é um “espaço bem pensado de respeito à diversidade e à memória”. O diretor da FE, Renê Silveira, reiterou que se trata de um ambiente para convivência, permanência e aprendizado. “Não basta chegar até a universidade, é preciso permanecer, participar, dialogar, aprender, ensinar e curtir a vida universitária. Esse é o objetivo: promover apoio institucional para o acolhimento e a sensação de pertencimento. Esse é um ato de reparação histórica para construir uma universidade cada vez mais diversa, sábia e democrática.”
A diretora-executiva da DEDH, Silvia Maria Santiago, falou sobre a importância do olhar atento às necessidades das pessoas e da natureza. “As cotas étnico-raciais deram a oportunidade de termos diferentes povos convivendo na Universidade. Precisamos aprender a olhar o que não víamos antes, comungar com outros pensamentos”, afirmou. A estudante de História da Unicamp Vera Lúcia, da etnia Tukano, e a estudante de Educação Rayan Gabriel Rodrigues da Silva representaram os discentes na inauguração, com cantos e mensagens de povos indígenas e da cultura africana. Também realizaram manifestações culturais e artísticas a mestra Japira Pataxó e a griota (mulher griô) Nil Sena.
Para Vera Lúcia, o jardim promove o diálogo e compartilhamento dos saberes indígenas. “Por meio das pinturas, queremos mostrar que estamos aqui para que todos também vivenciem isso e busquem informações sobre as artes pintadas e a cultura indígena.” De acordo com Silva, “esse espaço mostra que a nossa chegada à Universidade é real. Na qualidade de estudante negra de periferia e cotista, isso é muito significativo”. O Jardim dos Saberes Ancestrais foi pensado e executado coletivamente na FE e financiado pelo Edital de Premiação de Projetos de Arte e Cultura DCult – 2023.
Na Casa dos Saberes Ancestrais, quatro indígenas do povo Kiriri do Rio Verde, responsáveis pela construção do espaço, fizeram o ritual de “defumada” e entoaram cantos para proteção do local. Convidados pela sua expertise em construção, eles também foram responsáveis pela instalação dos troncos no jardim. “Temos as ocas nas aldeias que geralmente são fabricadas com palha. Aqui, nós fizemos uma adaptação no trançado do telhado para finalizar com telha normal”, afirmou Alberto Procópio da Silva, um dos construtores.
Inicialmente chamado de Projeto Oca, a Casa dos Saberes Ancestrais, segundo Malu Arruda, da coordenação da Caiapi, começou a brotar, na forma de sonho, em 2017, com a então diretora de Cultura da Proec, Verônica Fabrini. A ideia era criar um “espaço multiétnico dentro da Unicamp para podermos fazer trocas de saberes de forma horizontal, ao contrário da forma hierarquizada que se vê em sala de aula. Com as cotas étnico-raciais, isso se fez ainda mais importante. Esse sonho foi agregando pessoas, órgãos e unidades, e convidamos para isso os indígenas Kiriri, que fazem esse tipo de construção, de entrelaçamento do telhado, em casas de Minas Gerais”. Na concepção dela, o local, sem paredes e portas, convida as pessoas a ativarem o espaço, que será moldado de acordo com o uso feito pelas pessoas.
Ervas do Mato
Barreto acredita que eventos como o Abril Indígena 2024 propagam a cultura indígena para além de apenas um espetáculo, propagam-na como forma de conhecimento e campo de estudo, a exemplo da Oficina de Ervas do Mato, ministrada pela mestra Japira Pataxó, no dia 11 de abril. “A maioria das pessoas aqui nunca teve contato com essa cultura. Isso quebra vários tabus de que o indígena é um sujeito do passado que não existe mais. Isso faz com que as pessoas voltem os olhos para o Brasil da região Norte e para a cultura linda da América do Sul, para uma ciência indígena para além da ciência ocidental tradicional.”
Na oficina, cravo-da-índia, guiné e preto-velho – plantas que muitos desconhecem – misturam-se para criar um banho contra mau-olhado. A preparação é compartilhada pelos presentes, que também aprendem com o conhecimento ancestral repassado pela mestra Japira Pataxó, pajé da aldeia Novos Guerreiros (Bahia). Um aprendizado herdado de seus antepassados, responsáveis pela cura das pessoas. “A gente sai da nossa aldeia, que é muito distante, e traz o conhecimento da floresta, da nossa terra mãe”, relatou.
Graziele de Lapedra é estudante de Fonoaudiologia e participou da oficina. Até então, apesar de ter um colega de curso indígena, ela não tinha tido contato com essa cultura. “Nunca tinha pensado que teria acesso a esse tipo de conhecimento aqui no campus. Os indígenas têm muito conhecimento sobre a natureza. Estou adorando descobrir isso tudo e quero conhecer mais.”
Assista ao vídeo produzido sobre a inauguração dos dois ambientes:
Unicamp no Amazonas
Para aprimorar ainda mais o acolhimento aos indígenas ingressantes, pela primeira vez, em fevereiro, uma equipe da Diretoria Executiva de Apoio e Permanência Estudantil (Deape) da Unicamp esteve em São Gabriel da Cachoeira para orientar sobre a matrícula na Universidade e repassar informações sobre a instituição. O município foi escolhido por ser origem do maior número de inscritos no Vestibular Indígena e de indígenas matriculados na Unicamp. Cibele Papa Palmeira, coordenadora do Serviço Social da Deape, explicou a importância dessa iniciativa, destacando que, “embora tenhamos experiência com o atendimento aos estudantes desde 2019, era fundamental conhecer de perto a realidade, a cultura e os locais de moradia desses estudantes. Nossa presença permitiu a participação dos pais nas palestras de orientação, o que lhes deu mais segurança quando se tratou de autorizarem a vinda dos jovens para a Unicamp”.
Segundo ela, em contato com a realidade local, a equipe percebeu a necessidade de reelaborar a burocracia envolvida no ingresso na Universidade: “Alguns documentos exigidos em processos como matrícula ou obtenção dos auxílios de permanência não de acesso fácil para os povos originários, como a certidão de óbito, e isso devido às práticas culturais locais. Também há dificuldade quanto a documentos que, para sua obtenção, demandam acesso a aplicativos e à internet. Reconhecemos a importância de respeitar e entender tais particularidades”. Palmeira destaca que as bolsas e as modalidades de auxílio concedidas pela Unicamp são essenciais para a permanência dos estudantes indígenas, que vêm de locais distantes e que, muitas vezes, trazem a família. “A Universidade vem aprimorando o Percurso Formativo Indígena, criado para ajudar os estudantes a se adaptarem à cultura da Unicamp e a venceram os desafios de ordem acadêmica.”
Vanilda Santos, assistente social do Deape que também acompanhou a comitiva, considera que “a presença da equipe em São Gabriel da Cachoeira foi significativa para fortalecer o trabalho de acolhimento realizado pela Universidade. As palestras que ministramos visaram explicar de forma mais detalhada os tipos de auxílio disponíveis para os alunos. A cada ano, chegam mais estudantes indígenas. Temos que avançar em projetos para a permanência deles na Unicamp”. Em 2024, ingressaram 85 novos calouros indígenas na Universidade.
Em São Gabriel da Cachoeira, a comitiva visitou a Comunidade Ilha de Camanaus, à qual chegou de barco. Os membros da Unicamp também estiveram na residência de uma estudante de pós-graduação em Manaus, onde conheceram o trabalho de educação escolar indígena desenvolvido no Espaço Cultural Indígena. A equipe ainda buscou estabelecer contato com órgãos locais para possíveis parcerias, como o Conselho Tutelar e toda a rede socioassistencial. De acordo com Palmeira e Santos, esse foi o pontapé inicial de um projeto promissor que, com esforço contínuo e apoio institucional, pode se fortalecer e prosperar nos próximos anos, alinhado com as iniciativas da Universidade no sentido de fortalecer o sistema de garantia de direitos dos povos indígenas.