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Natal em Salvador

"...fico no aguardo da chamada do voo para Salvador, onde proferirei a minha derradeira palestra, para um evento da Universidade Federal da Bahia (UFBA)"

Jesuíno do Amor Divino. Este o meu nome. Tenho setenta e quatro anos e, no próximo mês, serei aposentado compulsoriamente. Há algum tempo somo licenças numa espécie de pré-aposentadoria. Encerrei orientações, transferi responsabilidades e, vez e outra, leciono disciplinas eletivas e participo de comissões para preencher vazios com pareceres. Posso dizer que construí uma profissão sólida de professor universitário: conduzi disciplinas e orientações nos diversos níveis de formação, ocupei cargos de chefia, estabeleci parcerias nacionais e internacionais, desenvolvi projetos vultosos com empresas privadas e com o poder público, gerei processos e produtos, mantive regularidade em publicações em congressos, revistas, livros, palestras et al.

E, hoje, no aeroporto Viracopos, em Campinas, após me deliciar com a esteira rolante, que me fez retornar à sala de aula, em que ilustrava a contribuição advectiva de transporte por ação do movimento do meio, fico no aguardo da chamada do voo para Salvador, onde proferirei a minha derradeira palestra, para um evento da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Disseram-me que seria em um lugar especial no Pelourinho. Vai saber, coisas boas de baiano na véspera de natal. Topei e eis-me aqui. Antes de embarcar, outro cochilo. A minha geriátrica tranquilizou-me, pois era assim mesmo a tal síndrome da fragilidade, que me leva à redução de energia, transformada em sono bobo. Sou tocado por um comissário, dizendo para eu embarcar. Viro de lado e tomo o laço de Moebius, a lemniscata matemática que imprime o infinito de meu cansaço ao pescoço, feito uma gravata que condiz com o paletó azul marinho, especialmente cortado para a UFBA. No sono, o silêncio. Tempo o bastante para escutar a horda que toma e canta o canto escuro da alma. — Sejam bem-vindos ao Aeroporto Internacional de Salvador. Não se esqueçam de apanhar os seus pertences. Passageiros em trânsito, dirijam-se ao Portão X. Sigo ao portão Y. Alguém sorri. Vejo que é Miguel, professor da UFBA. Cumprimenta-me e apresenta-me Lúcio, colega da Universidade, todavia de outro departamento.

Miguel, zeloso, toma o meu braço. Lúcio, falante, diz que me levará ao Pelourinho. — Professor, põe-se Lúcio a falar, Miguel contou-me sobre a sua compulsória. Posso imaginar: o senhor ganhará um relógio, mas não saberá o que fazer com o presente. Qual a utilidade de uma inutilidade? Será que um anjo abanará as asas de melancolia para o lembrar do que foi um dia? Terá saudade do tempo ido, de ter sido pouco mais e menos inteiro? Quando a noite chegar, implorará à lua para mantê-lo embriagado de estrelas para pensar que a madrugada é recheada de eternidade, e não ver o amanhecer sem planejar o horário do almoço? Permita-me levá-lo a um lugar aprazível, em que preocupações dessa natureza deixam de existir.

— Lúcio, não comece, Miguel o repreendeu veementemente. Esse Miguel e sua espada flamejante que me censura a todo o momento. Só falta querer levá-lo ao Nosso Senhor do Bonfim. Boa ideia. Vamos, Jesuíno? Assenti, pois o evento no Pelourinho seria no final da tarde. As linhas neoclássicas com fachada rococó despontam no alto da sagrada colina. Desço do carro e logo sou acolhido por duas mulheres com trajes característicos da Bahia. Oferecem-me fitinhas coloridas e um passe espiritual. Digo que receberei o passe após conhecer a igreja. Entro. Sigo para a sala dos milagres. Os ex-votos fazem-me recordar um e-mail que recebi de um transplantado, agradecendo-me pelos resultados de uma de minhas pesquisas. Sou eu quem agradece dessa vez, como também agradeci pelos passes recebidos de Rafaela e Gabriela, estes os nomes das baianas, como também da fitinha verde que enlacei em meu punho.

Seguimos para o Pelourinho, e Lúcio insistindo em me levar a inferninhos, enquanto Miguel mantinha o foco. — Pelourinho, Lúcio. E agora, Miguel, quer levá-lo à igreja de São Francisco? Por que não? Detenho-me diante da grandiosidade daquela construção barroca. Antes de eu entrar, uma senhora abeira-se. Fita-me profundamente, feito perscrutadora de almas. Quer-me vender fitinhas. Aponto o punho, mas ainda assim compro mais um punhado. Ela sorri e pergunta se Miguel e Lúcio são meus filhos. Respondo que não, e ela conta-me sobre seu filho. Uma história um tanto utópica. Atrevida, quis saber de mim. Respondi sobre a minha aposentadoria de neutrino. Foi quando ela retrucou: — Sim, todos o olharão atravessado na incrível invisibilidade do ser humano. Nunca mais será o mesmo.

O passado em que me fiz me fará ser o outro que nem imagino existir. Perguntei seu nome, e tive Maria por resposta. Peço a Miguel e Lúcio que me deixem só. Ando. Os paralelepípedos revelam o sofrimento da miséria, a começar por um corpo envolto por jornais velhos. Sinto úmidos os olhos, que atribuo ao suor, fruto do calor extremado de Salvador. Na esquina do Largo do Pelourinho com a Baixa dos Sapateiros, sou abordado por uma pessoa, cuja cor, sexo e idade não sei definir. Percebo-a maltrapilha, descabelada e tomada por feridas. Fico sem reação e ouço: — Não sou diferente. Nasci diferente. Você construiu casas e castelos. Pensou escolas e histórias. Fez o mundo à sua própria semelhança. Mas sua imagem não reflete a minha, pois sou a fagulha de luz na sombra que o sol não iluminou. Você cria acesso e o denomina acessibilidade, mas não testemunha o olhar peculiar da existência. Sou, simplesmente, a cor que não se vislumbra no arco-íris ou o som que é audível somente a golfinhos ou a sonar de morcegos. Escalo escadas por rodas. Leio na sensibilidade do indicador ou nas ondas que me ligam a um computador e escuto, em frêmito quântico, uma voz. Escrevo em linhas tortas o que apenas Deus é capaz de entender. A pessoa aproxima-se e toca-me. Acordo. É o comissário de voo, com a cara de Lúcio, insistindo para eu embarcar. Enquanto isso, em algum bar da Rua do Paraíso, Miguel, Rafaela, Gabriela e Maria encontram-se. — Que tenha um voo tranquilo e fique em paz, diz a pessoa maltrapilha de quem tomei emprestado o nome Jesuíno.

Foto de capa:

Cenário do Largo do Pelourinho, em Salvador
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