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Vamos conversar sobre o futuro da sala de aula?

A pergunta que fica, e que proponho compartilhar com meus colegas e estudantes, é simples e incômoda: estamos preparados para jogar o novo jogo?

Ao longo dos meus 47 anos de docência, nunca me considerei um professor excelente. Sempre me vi como mediano, com aulas muito boas, outras aceitáveis e algumas – quero crer que a minoria – francamente chatas, para ser generoso comigo mesmo. Procurei seguir dois princípios norteadores: manter-me atualizado e respeitar os alunos, tratando-os como jovens letrados, com domínio básico da leitura e escrita. Por essa razão, minhas aulas nunca se limitaram a repetir didaticamente o que estava no livro-texto. Sempre procurei ir além do que os estudantes poderiam ler e aprender sozinhos, oferecendo-lhes sínteses de vários materiais, interpretações, conexões, provocações. Alguns gostavam disso, mas sei que muitos prefeririam receber a matéria bem mastigada.

No tempo dos diapositivos, talvez até porque fossem caros, usava-os com parcimônia, apenas como guia; mais tarde, com o PowerPoint, mantive a lógica de trabalhar com bullets curtos, sem cair na tentação de transformar o material em aula pronta. Mantive o estilo de tentar informar e transferir o máximo possível de conhecimento sobre a matéria. A despeito das limitações, em geral sentia-me satisfeito com meu próprio desempenho.

Isso mudou. Nos últimos anos – sobretudo durante e depois da pandemia – tenho tido a impressão de que minhas aulas envelheceram. Tenho refletido que o papel da sala de aula já não é o mesmo, mas que eu e meus alunos seguimos jogando o mesmo jogo. Talvez por comodidade, talvez porque ainda não saibamos como jogar diferente.

A sala de aula já vinha, há tempos, sendo desafiada por mudanças profundas no modo como o conhecimento circula e se torna acessível. A posição tradicional do professor como mediador exclusivo entre aluno e informação começava a se fragilizar, abrindo espaço para novas formas de aprender e ensinar.

Corro o risco de generalizar minha própria experiência, mas tenho a impressão de que muitos docentes não se atualizaram para esse novo contexto. A maioria de nós, professores, permaneceu confortável no velho formato – seja por conveniência, seja por falta de preparo para explorar os novos recursos. E não foram apenas os docentes: grande parte dos estudantes também continua repetindo práticas de estudo que já não dialogam com o ambiente em que vivem.

Da sala de aula tradicional ao ensino digital

Durante séculos, a sala de aula tradicional foi concebida como o espaço privilegiado da transmissão de conhecimento. O professor ocupava o centro da cena, no papel de detentor do saber. Cabia a ele selecionar o que ensinar, organizar a sequência, explicar os conceitos e resolver as dúvidas. Os estudantes, por sua vez, eram receptores – não raramente passivos – cuja tarefa principal era ouvir, anotar e, depois, reproduzir. O livro-texto era o eixo dessa engrenagem: trazia o conteúdo autorizado, que o professor explicava e complementava. Esse modelo fazia sentido em um contexto de escassez relativa de informação. O acesso ao conhecimento estava limitado pelos acervos das bibliotecas – preciosos, mas restritos – e pelo repertório do professor.

É preciso reconhecer que esse modelo tinha suas virtudes. Ele estruturava o aprendizado em bases disciplinares, cultivava a lógica cumulativa do conhecimento e reforçava a importância do esforço intelectual. Muitos de nós fomos formados nesse ambiente, e dele herdamos a capacidade de pensar de modo sistemático. Portanto, não se trata, aqui, de demonizar o passado, mas de reconhecer os limites de um formato que cumpriu seu papel em determinado contexto histórico.

A partir do fim do século XX, esse arranjo começou a ser corroído pela cultura digital. A internet abriu fronteiras de acesso à informação, digitalizou acervos, colocou bases científicas à distância de um clique e multiplicou os recursos disponíveis para estudo. As bibliotecas físicas deixaram de ser o único repositório confiável; plataformas online, repositórios de artigos e vídeos didáticos começaram a competir com o livro-texto e com o professor. O celular consolidou essa mudança: a informação passou a caber na palma da mão do estudante. Mas essa abundância trouxe também efeitos ambíguos: em vez de estimular leitura profunda, consolidou-se muitas vezes uma cultura de atalhos – resumos prontos, videoaulas simplificadas, respostas rápidas –, que expandiu para o ensino superior a lógica dos cursinhos preparatórios, transformando o estudo em treino para provas, em vez de um caminho de formação crítica e aprofundada.

Da digitalização à Inteligência Artificial

É nesse cenário que a Inteligência Artificial se insere. Não é uma novidade absoluta – pesquisas e aplicações da IA existem há décadas –, masa combinação de avanços técnicos recentes com a popularização dos chamados Modelos de Linguagem de Grande Escala (LLMs, na sigla em inglês) transformou a paisagem. O lançamento do ChatGPT, no fim de 2022, simboliza essa virada: de repente, milhões de pessoas passaram a ter acesso cotidiano a uma ferramenta capaz de produzir textos, resumos, análises, códigos e até argumentos acadêmicos em segundos.

Os LLMs – como explicará minha colega Ivete Luna, aqui mesmo no JU, em sua coluna Entre Dados e Fatos – representam um salto qualitativo no modo como interagimos com a informação. Eles não apenas armazenam ou recuperam conteúdos, mas são capazes de gerar linguagem natural em resposta a perguntas, organizando, reinterpretando e, até certo ponto, criando conhecimento. É essa mudança que massificou a IA e trouxe para dentro da sala de aula um ator novo, inevitável e transformador, cuja presença e participação é impossível ignorar.

A pergunta que me tenho feito é a seguinte: se o conhecimento está em toda parte, acessível facilmente para quem quiser acessar, e a IA se torna uma parceira do ensino e do aprendizado, qual é a função da sala de aula? Se o professor se limitar a repetir conteúdos disponíveis em livros-textos e em qualquer site ou a reproduzir explicações que a IA faz melhor, mais rápido e de forma personalizada, a sala de aula – a aula – tal como a conhecemos perde sentido. Se o professor se limitar ao papel tradicional de transmitir conhecimento, será facilmente substituível.

O novo papel possível é outro: ser mediador, curador, provocador de perguntas, crítico das respostas fáceis. O professor deixa de ser o guardião do conhecimento e passa a ser o orientador do processo de construção, ajudando os estudantes a navegar em meio ao excesso de informações, a avaliar a confiabilidade das fontes e a cultivar a capacidade crítica. O problema é que ainda não sabemos muito bem como desempenhar esse papel.

O estudante, por sua vez, precisa assumir o protagonismo do aprendizado. Não basta mais decorar, copiar ou reproduzir. É preciso perguntar, desconfiar, elaborar. E este talvez seja o ponto mais desafiador: nem sempre os estudantes estão preparados para esse papel, e muitas vezes o professor não sabe como orientá-los nesse caminho.

A sala de aula como hub de habilidades do século XXI

Nesse novo cenário, a sala de aula deixa de ser apenas um local para a transmissão de conteúdo. Ela se transforma em um espaço de formação e troca, voltado ao desenvolvimento de competências intelectuais, sociais e éticas – pensamento crítico, comunicação, colaboração e responsabilidade – necessárias para crescer intelectualmente e enfrentar os desafios de um mundo novo. É o espaço onde o conhecimento, hoje acessível em qualquer lugar e a qualquer momento via IA, se converte em sabedoria. O professor, em vez de simplesmente expor a teoria, propõe desafios e projetos que os alunos precisam resolver usando a IA como ferramenta. O tempo em sala de aula, antes dedicado à exposição, passa a ser gasto em debates, apresentações de projetos e discussões de casos de estudo, onde a interação humana e a colaboração são o foco principal.

Isso nos leva a uma questão ainda mais profunda: o que é possível ensinar na sala de aula que a IA não possa fazer? A resposta não está na informação em si, mas nas habilidades humanas essenciais. A sala de aula se torna o espaço para desenvolver a empatia, a capacidade de trabalhar em equipe em problemas complexos, a criatividade e a comunicação eficaz. O professor, agora, é o mediador não apenas do conhecimento, mas também das relações interpessoais, do desenvolvimento de caráter e do senso ético — competências que a IA, por mais avançada que seja, não pode replicar.

A presença da IA também exige uma revolução nos métodos de avaliação. Se antes a prova era o meio de verificar a memorização do conteúdo, hoje essa abordagem se torna obsoleta. A IA pode responder a perguntas de prova em segundos. O novo jogo exige uma avaliação que vá além da simples reprodução. É preciso criar atividades que exijam a aplicação do conhecimento, a análise de situações-problema e a produção de algo original — um projeto, uma análise crítica, um debate oral — em que a IA seja usada como ferramenta, e não como resultado. A verdadeira avaliação passa a ser a capacidade do aluno de utilizar a IA de forma inteligente para demonstrar sua própria compreensão e criatividade.

A sala de aula não acabou e não vai acabar. Mas, para seguir relevante, precisa se reinventar radicalmente — não só no plano tecnológico, mas sobretudo no cultural e pedagógico.

A pergunta que fica, e que proponho compartilhar com meus colegas e estudantes, é simples e incômoda: estamos preparados para jogar o novo jogo? E, mais do que isso: estamos dispostos a redefinir o que a sala de aula significa e qual é o nosso papel dentro dela?

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.


Foto de capa:

A sala de aula já vinha, há tempos, sendo desafiada por mudanças profundas no modo como o conhecimento circula e se torna acessível
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