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Boniteza

"A preservação da vida passa, necessariamente, pela dignidade, a começar pelo direito à saúde, afiançada pela Constituição Federal"

Febre alta. Calafrios. Dor de cabeça. Fraqueza. — Vontade de ficar deitada, doutor. O suor desce pelo corpo, feito as águas do riacho, ali embaixo. Não sei o que é mais amargo: o chá de boldo ou a minha boca. Essa maleita que não passa e me desespera. O que mais faço? Me ajuda. Fecho os olhos e aporto em qualquer outro canto de nosso país. Alguém me recebe com um pano envolvendo o rosto, e outros nas pernas e nos braços. Nota-se o castanho do olhar, e um sorriso quase forçado em retribuição ao meu sem brilho. — Essa ferida braba me tirou a boniteza, doutor. Passei alecrim-pimenta aqui no braço, ó, mas não sei se adianta. Me ajuda. Fecho os olhos, tomo o barco instalado no curso das lágrimas e aporto na infância. — Lazarento! Nunca, mas nunca mais trate alguém assim — repreendeu-o. Foi ele quem começou e xingou a senhora. A mãe retrucou que o pior da vida é ser apartada dela, e ninguém merece o esquecimento. Completou, dizendo-lhe que o adjetivo originara-se de Lázaro, o personagem bíblico coberto por chagas. As pessoas acometidas pela doença eram conduzidas para locais de completo isolamento, devido à sua natureza infecciosa, cujo tempo beirava a eternidade. Essa eternidade, percebida como ausência do tempo, faz-me, novamente, fechar os olhos. Os sussurros que ouço são aqueles oriundos da dor e do desprezo, como se o preço para sobreviver devesse ser pago por eleitos a mostrar a face da sociedade que não quer ser revelada.

Agora navego em águas desconhecidas, buscando pescar a boniteza encontrada em Paulo Freire, enquanto tradução de bondade, de respeito, de ética, de coerência, de tolerância e de compartilhamento. A malária ou maleita está concentrada na região amazônica, partes do Tocantins, Mato Grosso e Maranhão. A leishmaniose, identificada há pouco em sua manifestação em ferida brava, é endêmica no Brasil, e caracterizada como doença negligenciada; da mesma maneira a hanseníase, denominada lepra no passado, estigmatizando as pessoas, deixando-as reféns da invisibilidade. Existe uma população negligenciada tão perto. Tão tênue.

A preservação da vida passa, necessariamente, pela dignidade, a começar pelo direito à saúde, afiançada pela Constituição Federal, que menciona: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido por meio de políticas sociais e econômicas voltadas para a redução do risco de doenças e outros agravos e do acesso universal e igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação.” Como abonar esse direito à população negligenciada, guardando a sinonímia de vê-la abandonada, descuidada, desprezada e até mesmo ignorada? Para a população negligenciada, há sempre uma doença negligenciada. O próprio Ministério da Saúde reconhece que doenças negligenciadas são as que prevalecem em condições de pobreza, sendo o Brasil o país com mais doenças negligenciadas do planeta, um enorme problema de saúde pública.

E, aqui, recordamos o primeiro artigo da Declaração dos Direitos Humanos da ONU, criada em 1942, em que se lê que as pessoas nascem livres e iguais em sua plenitude de dignidade e de direitos. Sob este aspecto, a saúde é reconhecida enquanto direito humano pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que a conceitua como bem-estar físico, mental e social e não apenas ausência de doença. Cumpre sublinhar que a erradicação da pobreza e a preservação da saúde estão entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), propostos pela ONU em 2015. Ao se atentar às questões da pobreza e da saúde, entre tantas demandas seminais que merecem nossa atenção, torna-se essencial pautar o debate e mobilizar pessoas que podem influenciar e monitorar políticas públicas. A problemática ultrapassa o universo técnico-acadêmico da medicina, da enfermagem, da psicologia, da química, da biologia, do direito, da economia, da arte, da engenharia etc. As diversas áreas do conhecimento são conclamadas para discutir a pobreza e a saúde numa dimensão transdisciplinar, além das fronteiras, e, cada qual com a sua expertise, promover a existência minimamente digna.

Aqueles que atuam no ramo de ciências da saúde e biológicas, além de essenciais no contato direto com o paciente, devem continuar firmes nas pesquisas sobre monitoramento das doenças que atingem populações negligenciadas e avaliar seu impacto na saúde mental das pessoas. As ciências humanas e sociais são imprescindíveis, pois oferecem subsídios às administrações pública e privada para o enfrentamento das crises econômica e sanitária, além de nos mostrarem que a estatística não se resume a números, explicitando que a existência do ser humano é dotada tanto de história individual quanto de história coletiva. Que as ciências exatas não meçam esforços para aprimorar nosso entendimento a respeito de estruturas moleculares de fármacos, desenvolvendo modelos matemáticos e objetivando o planejamento de medidas de controle. Que a engenharia forneça suporte tecnológico e logístico para a aplicação da ciência, favorecendo o diálogo com os outros saberes e incluindo a demanda social, não só os elementos técnicos e econômicos, como força motriz de um processamento tecnológico. Que a arte, em suas diversas matizes, mostre o que há de mais sublime no ser humano, de modo a trazer esperança. Sim, esperança, e dizer, para aqueles que não têm voz, “contem conosco”.

A pandemia no início de 2020 fez com que despontasse o protagonismo das universidades diante do obscurantismo, trazendo luz para a produção do conhecimento, cujos resultados transpuseram e transpõem os muros da academia em comunhão com a sociedade. Aprendi com a minha mãe, dona Maria, além da lição sobre Lázaro, que a vida se finda quando se deixa de sonhar. Tomo a liberdade de acrescentar: também quando se deixa de ter esperança e um tanto de boniteza.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp

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