Na segunda vez que estive em Marte. Sim, por que esse olhar de calopsita desconfiada? Qual a estranheza? Estive em Marte incontáveis vezes, como também em outros planetas e em outras luas deste sistema e de tantos outros corpos que orbitam estrelas. Na nonagésima quarta vez em que lá estive, tropecei em um objeto enviado da Terra, que zanzava por sua superfície, fotografando paisagens desoladoras. Entristeci pelo que vi, devido à lembrança da sétima vez que estive em Marte. Que maravilha! Paisagem edênica, indescritível. Algo à semelhança da décima quinta vez que estive em Vênus, pois sequer tive vontade de retornar a este planeta – na última vez que o visitei, sua superfície apresentava temperatura média beirando 500 ºC. Aliás, atravessei suas nuvens delineadas por ácido sulfúrico, cujas gotas evaporavam antes de chegar ao solo.
Sugeri essa visão ao florentino Dante Alighieri, para que assim descrevesse o seu inferno. Intolerável. Como insuportável estava a Terra na octogésima vez que a visitei, encontrando-a quase desabitada: rios agonizantes sulcando sua face, árvores semi-petrificadas expostas ao vento acidulado. Encontrei um misto de desolação desértica marciana com brisa tóxica venusiana. Não foi difícil virem à tona Marte e Vênus, como amantes mitológicos decadentes, e a Terra orbitando entre os dois. Veja, a temperatura média da superfície terrestre estava, sei lá, entre 17 ºC e 20 ºC, o bastante para ter causado danos irreversíveis ao planeta, tais como a perda de geleiras no mar do Ártico e a redução do gelo do mar Antártico.
O que mais dói é saber que, na septuagésima nona vez que estive na Terra, a temperatura média de sua superfície acercava-se de 15 ºC. Bastou um aumento por volta de 7% do efeito estufa para provocar aquele panorama dantesco, em que observei a emissão desenfreada de gases oriundos da queima de combustíveis fósseis, tais como o dióxido de carbono, impactando a composição química da atmosfera e afetando o equilíbrio energético terrestre. As moléculas desses gases retransmitem o calor absorvido do sol para as camadas abaixo da troposfera até a superfície, potencializando o tal efeito estufa e, consequentemente, impactando a mudança climática planetária. Presenciei, também, a emissão de dióxido de enxofre tanto pela fúria dos vulcões quanto de fontes antropogênicas, resultantes, sobretudo e para variar, da queima de combustíveis fósseis.
Ao ser liberado na atmosfera, o dióxido de enxofre origina ácido sulfúrico que, à semelhança do que encontrei em Vênus, é responsável pela formação da chuva ácida, que provoca danos aos pulmões, câncer e morte prematura, bem como desmineralização dos solos e acidificação de lagos e cachoeiras. Sem contar a corrosão de materiais, afetando prédios, pontes, viadutos e esculturas. O ser humano é um bicho estranho. Busca eternizar-se em suas construções, então edifica pirâmides, obeliscos e monumentos.
Diz que o tempo destrói as coisas, erodindo-as por ação da água e do vento, quais castelos de areia. Caso não saiba, esculpi uma estátua em arenito em 1702. Pedi para alguém pô-la no portal do Castelo de Herten, na Alemanha. Transcorridos pouco mais de 200 anos, a ação do tempo sequer desalinhou a madeixas que talhei, todavia, em 1969, quando a vi novamente, a estátua estava disforme, ocultando o sorriso apático da história. A deformação não se deveu apenas às causas naturais, mas à ação humana, principalmente à contribuição da chuva ácida. Será que os seres humanos não se perceberam enquanto ameaças a aspectos fundamentais de seu desenvolvimento?
É inevitável não me recordar da quadragésima vez que estive na Terra, para trocar figurinhas com o francês Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet, a quem passei a chamar Lamarck. Essa intimidade decorreu do fato de eu lhe ter sussurrado a criação do termo biologia para definir o conjunto de ciências da vida. Não sei se a definição vingou ou se sua teoria da evolução desencadeou alguma discussão. Deixa pra lá. Mas o que o Lamarck revelou-me, agora em 1820, deixou-me pasmo: “O ser humano, por seu egoísmo tão clarividente em relação aos seus próprios interesses, por sua inclinação a explorar tudo o que está à sua disposição, parece trabalhar para o aniquilamento de seus meios de conservação e a destruição da própria espécie. Pode-se dizer que o ser humano está destinado a exterminar a si próprio, após tornar o globo inabitável”. Tais palavras, testemunhadas e traduzidas in loco por Luiz Marques, professor de certa Universidade Estadual de Campinas, ecoaram-me não mais premonitórias, contudo refletindo o cenário encontrado na octogésima vez em que estive na Terra. Quando Lamarck vislumbrou a Terra dois séculos antes de sua deterioração, a Revolução Industrial engatinhava, e as economias industriais passaram a emitir quantidades crescentes de gases oriundos da queima de petróleo, carvão e gás, resultando em fontes de problemas ambientais, tais como efeito estufa, poluição fotoquímica, destruição da camada de ozônio e a chuva ácida. Será que os seres humanos têm noção da real condição de seu meio ambiente?
Na septuagésima nona vez que estive na Terra, isso em novembro de 2025, fui a uma cidade de nome Belém, de um vasto país denominado Brasil. Participei da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. Onipresente, disfarcei-me de repórter, curioso e presidente. Ouvi discussões sobre a restauração de ecossistemas, a relevância da gestão sustentável, o crédito de carbono, a transição energética, a energia verde; das bravatas de uns e da fé de outros. Claro, resolvi discursar. Os olhos do planeta voltaram-se para o que falei, descrito, aqui, neste relato. Riram, óbvio. Outro lunático, disseram. Saí à sala contígua àquele palco e, no meu último ato da septuagésima nona vez que estive na Terra, transformei-me em favelada da Vila da Barca, que abriga inúmeras famílias, carentes de saneamento básico e de acesso à água potável. Caminhei altiva entre os poderosos, e ninguém me viu.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
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