Usado há quase meio século nas lavouras brasileiras de milho, soja e cana de açúcar, o herbicida Atrazina foi considerado cancerígeno por um grupo de 22 cientistas de 12 países, reunidos pela Agência Internacional de Pesquisas sobre Câncer (da sigla em inglês IARC), do qual participa a professora Cassiana Montagner, do Instituto de Química (IQ) da Unicamp.
A conclusão dos especialistas acaba de ser publicada em artigo da revista The Lancet Oncology – um dos periódicos mais prestigiados do mundo na área de oncologia – e deverá provocar alterações nos protocolos de uso no Brasil.
Braço da Organização Mundial da Saúde (OMS) que avalia questões ligadas à carcinogenicidade de substâncias químicas – seu potencial para causar câncer –, a IARC realiza, anualmente, a avaliação de compostos ou de classes de compostos para medir e qualificar evidências. Desta vez, o estudo avaliou os herbicidas atrazina e alaclor e o fungicida vinclozolin. Os três foram considerados danosos à saúde humana e animal.
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O painel de especialistas reunidos na sede da IARC em Lyon, na França, no início do mês, discutiu em detalhes as evidências publicadas na literatura internacional e classificou a atrazina e o alaclor como “prováveis carcinogênicos para humanos” (Grupo 2A), e o vinclozolin, como “possível carcinogênico para humanos” (Grupo 2B). “Ainda que tenhamos poucos estudos diretamente em humanos sobre o potencial carcinogênico destes agrotóxicos, o resultado se baseou também em evidências suficientemente fortes de carcinogenicidade em animais e no entendimento do mecanismo de ação destas substâncias no organismo”, disse Montagner. Os detalhes dessas avaliações foram publicados no Volume 140 das Monografias da IARC.
Segundo o último relatório de comercialização de agrotóxicos no Brasil, publicado em 2023 pelo Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), a atrazina é o sexto ingrediente ativo mais consumido no país, com mais de 26 mil toneladas/ano. Também é aplicado em lavouras nos Estados Unidos, mas já é proibido no Reino Unido, na União Europeia e alguns países da África.
Por impedir a fotossíntese da planta, a atrazina é usada em larga escala como agrotóxico pré-emergente, ou seja, para inibir o crescimento de ervas daninhas. Supostamente, a substância não atrapalha o desenvolvimento da lavoura. Segundo Montagner, porém, o agrotóxico acaba contaminando o meio ambiente, seja por meio de infiltração na terra, de escoamento para rios ou de dispersão na atmosfera, podendo inclusive chegar às torneiras das residências, por meio de mananciais contaminados. “Quando chove, o agrotóxico é carregado para os rios; por ser persistente, fica lá por um bom tempo até se dispersar para os outros compartimentos ambientais. Por isso, o encontramos no solo, no ar, na água da chuva e na água que bebemos”, explica.
Montagner conta que, no início de cada ano, a IARC seleciona cientistas, pesquisadores e especialistas para avaliarem a carcinogenicidade das substâncias de interesse. O processo, que dura praticamente o ano todo, divide-se em quatro frentes: análise das características de exposição, das evidências de carcinogenicidade em humanos, dos resultados dos estudos de carcinogenicidade em animais e dos “mecanismos de carcinogenicidade” – que são os processos bioquímicos pelos quais um agente cancerígeno interage com o corpo.
Montagner atuou na análise da exposição não intencional ou ambiental. Segundo a professora, esse recorte se difere da exposição ocupacional – aquela na qual o trabalhador está diretamente exposto ao produto. “Foram considerados os estudos que quantificaram a presença dos agrotóxicos na água de abastecimento público, nos rios, na água subterrânea, no ar, na água da chuva, no solo e em alimentos, ou seja, todas as fontes que, de forma direta ou indireta, acabamos consumindo sem ter ideia do risco”, explica.
O grupo de Montagner contou com 10 especialistas, que atuaram em várias outras frentes do tema “exposição”. “Nossa missão foi fazer a varredura de dados científicos mais completa possível sobre esses três agrotóxicos, a partir dessas quatro abordagens”, conta.
Depois de pesquisa na literatura científica, os especialistas dos quatro grupos se reuniram na sede da IARC para discutir as conclusões e firmar um parecer conjunto. “A classificação de uma substância na categoria 2A, ou seja, potencialmente cancerígeno, já é suficiente, por exemplo, para considerarmos a proibição do uso”, adverte a professora.

Legislação brasileira
De acordo com Montagner, a Resolução 357/2005 do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) em vigor no Brasil admite que concentrações de atrazina menores do que duas microgramas por litro (2ug/L) em águas superficiais não causam riscos aos animais, embora muitos estudos já tenham demonstrado efeitos adversos à saúde em diferentes organismos aquáticos em concentrações até mil vezes menores.
No que diz respeito à água de abastecimento público, a legislação nacional apresenta os mesmos 2 ug/L como Valor Máximo Permitido (VMP) para ingestão de água subterrânea, segundo a resolução Conama 296/2008. Já a Portaria do Ministério da Saúde que preza pela qualidade da água potável, na sua última revisão em 2021, adotou 2 ug/L para a somatória de atrazina e outros 3 sub-produtos como concentração segura para beber. O alaclor também está inserido na lista de parâmetros para a potabilidade no Brasil com concentrações seguras de até 20 ug/L. O vinclozolin não é legislado no Brasil.
“Temos insistido na importância das revisões dessas legislações à luz dos dados científicos mais recentes. A atrazina é uma substância persistente no ambiente. Temos estudado sua presença na água há mais de 15 anos, e arrisco dizer que ela está presente em praticamente 100% das amostras que a avaliamos”, afirma.
Montagner lembra que as estações de tratamento de água não são eficientes para remover contaminantes, como a atrazina, em concentrações da ordem de poucas partes por bilhão. “Se num rio for identificado 0,5 microgramas por litro de atrazina, a água potável oriunda deste rio também apresentará concentrações muito próximas a 0,5 ug/L. Publicamos dados semelhantes a esse exemplo em 2023. Essa água vai continuar sendo classificada como potável, porque está abaixo do VMP estabelecido no Brasil. Mas se analisarmos esse resultado à luz de legislações mais restritivas, como a da União Européia, interpretaríamos esse resultado como uma água imprópria para consumo humano”, explica a professora.
“O Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. Nossa legislação contempla menos de 15% do total de substâncias que são permitidas para uso agrícola e afins, outros 85% sequer são monitorados. E isso não quer dizer que são substâncias que não causam dados à nossa saúde. A carcinogenicidade é um parâmetro crítico na avaliação do perigo de uma substância. Não há concentração tolerável, ou seja, uma substância com potencial de causar câncer deve ter seu uso proibido. A legislação brasileira ainda apresenta muitas lacunas, por isso, um processo de revisão e atualização dinâmico é fundamental para garantir a proteção ambiental e, consequentemente, da saúde da população”, finaliza Montagner.
Segundo a pesquisadora, a expectativa é que as diretrizes atualizadas da Organização Mundial da Saúde promovam alterações nas legislações no Brasil e no restante do mundo.
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