




(Continuação)
Adriana Vilar de Menezes
Um mês antes de o Exército de Israel assassinar as irmãs Mayson, Rofida e Arwa Yaqoub El Ghalayini, na Faixa de Gaza, o médico Hazem Adel Ashmawi recebeu uma mensagem de Rofida, prima de sua mãe que tratava como tia. Ela perguntava, em árabe: “Kaifa el hal?” (como você está?). “Eu disse: ‘Que bom, tia, que você ligou, porque não estávamos conseguindo falar com ninguém. Espero que vocês estejam bem’”, lembra Ashmawi, que trabalha no Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp e que já sabia, em meados de 2024, sobre a fome na região. Suas tias relatavam ter dificuldade para conseguir alimentos. “Depois ela não me ligou mais.”
As três primas de Salwa Mohamed El Ghalayni, mãe de Ashmawi, com as quais ela conversava com frequência, quiseram permanecer em sua casa pois acreditavam que, como no passado, logo a violência das ações do Exército de Israel, iniciadas em outubro de 2023 em resposta a um ataque do Hamas que vitimou mais de 1.200 israelenses (outros cerca de 250 foram sequestrados), diminuiria, como já acontecera antes, especialmente desde 1948, quando ocorreu a Nakba (“catástrofe”, em árabe), a expulsão e o desterro dos palestinos logo após a invasão da Faixa de Gaza pelas Forças Armadas judaicas. As três não imaginavam, porém, que, além dos bombardeios e das invasões realizados por Israel, a população enfrentaria também o extermínio resultante da fome.

Adriana Vilar de Menezes
Um mês antes de o Exército de Israel assassinar as irmãs Mayson, Rofida e Arwa Yaqoub El Ghalayini, na Faixa de Gaza, o médico Hazem Adel Ashmawi recebeu uma mensagem de Rofida, prima de sua mãe que tratava como tia. Ela perguntava, em árabe: “Kaifa el hal?” (como você está?). “Eu disse: ‘Que bom, tia, que você ligou, porque não estávamos conseguindo falar com ninguém. Espero que vocês estejam bem’”, lembra Ashmawi, que trabalha no Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp e que já sabia, em meados de 2024, sobre a fome na região. Suas tias relatavam ter dificuldade para conseguir alimentos. “Depois ela não me ligou mais.”
As três primas de Salwa Mohamed El Ghalayni, mãe de Ashmawi, com as quais ela conversava com frequência, quiseram permanecer em sua casa pois acreditavam que, como no passado, logo a violência das ações do Exército de Israel, iniciadas em outubro de 2023 em resposta a um ataque do Hamas que vitimou mais de 1.200 israelenses (outros cerca de 250 foram sequestrados), diminuiria, como já acontecera antes, especialmente desde 1948, quando ocorreu a Nakba (“catástrofe”, em árabe), a expulsão e o desterro dos palestinos logo após a invasão da Faixa de Gaza pelas Forças Armadas judaicas. As três não imaginavam, porém, que, além dos bombardeios e das invasões realizados por Israel, a população enfrentaria também o extermínio resultante da fome.

Desnutrição aguda
No último dia 22 de agosto, um relatório produzido com apoio da Organização das Nações Unidas (ONU), com base na Classificação Integrada da Fase de Segurança Alimentar (IPC, na sigla em inglês), atestou uma situação de fome generalizada na Faixa de Gaza. Entre mulheres e crianças, cerca de 500 mil pessoas passam fome hoje na região. O relatório afirma que pelo menos 132 mil crianças com menos de cinco anos de idade correm risco de morrer por desnutrição aguda.
Israel, no entanto, acusa os órgãos responsáveis pelo relatório de distorcerem os dados. Ao mesmo tempo, o mundo acompanha, em tempo real, as imagens de crianças que imploram por alimento. Em meio a uma guerra de narrativas, o governo judaico divulgou, no início de agosto, as imagens de um refém israelense em estado de inanição, em contraposição às cenas da população palestina clamando por alimento. O vídeo com o refém havia sido enviado pelo próprio Hamas, que mantém cerca de 20 israelenses em cativeiro. O grupo palestino ainda manteria sob seu poder os corpos de 30 israelenses já mortos.
Segundo o subsecretário-geral da ONU para Assuntos Humanitários, Tom Fletcher, a fome resulta de uma “obstrução sistemática israelense” impedindo a entrada de ajuda na Faixa de Gaza. Fletcher disse ainda à imprensa que há toneladas de comida paradas na fronteira. “São necessários um cessar-fogo e a abertura das fronteiras. Deixem-nos entrar [na Faixa de Gaza]”, completou o subsecretário. Segundo o Ministério das Relações Exteriores de Israel, o relatório foi “inventado” como parte de uma campanha do Hamas. “Não há fome na Faixa de Gaza. IPC, pare de mentir”, publicou em uma rede social o órgão israelense. Ao mesmo tempo, Israel inicia uma operação de tomada da cidade de Gaza, ignorando os protestos de fatia importante da população israelense, que tem saído às ruas para pedir o fim da guerra.
“O que Israel faz na Faixa de Gaza não tem precedentes no século XXI”, disse o historiador israelo-americano Omer Bartov em entrevista à BBC News Mundo. Especialista em estudos sobre o Holocausto e genocídios, Bartov serviu como soldado de Israel na década de 1970 e hoje trabalha como professor na Brown University (EUA). Nascido em Israel, de uma família judia originária da Ucrânia, o docente estudou na Universidade de Tel Aviv (Israel) e na Universidade de Oxford (Reino Unido). “O que está acontecendo na Faixa de Gaza se encaixa na definição de genocídio”, disse, na entrevista. O termo foi criado pelo advogado polonês Raphael Lemkin, em 1944, para descrever o Holocausto, o extermínio sistemático de judeus que ocorria naquele momento.

Desnutrição aguda
No último dia 22 de agosto, um relatório produzido com apoio da Organização das Nações Unidas (ONU), com base na Classificação Integrada da Fase de Segurança Alimentar (IPC, na sigla em inglês), atestou uma situação de fome generalizada na Faixa de Gaza. Entre mulheres e crianças, cerca de 500 mil pessoas passam fome hoje na região. O relatório afirma que pelo menos 132 mil crianças com menos de cinco anos de idade correm risco de morrer por desnutrição aguda.
Israel, no entanto, acusa os órgãos responsáveis pelo relatório de distorcerem os dados. Ao mesmo tempo, o mundo acompanha, em tempo real, as imagens de crianças que imploram por alimento. Em meio a uma guerra de narrativas, o governo judaico divulgou, no início de agosto, as imagens de um refém israelense em estado de inanição, em contraposição às cenas da população palestina clamando por alimento. O vídeo com o refém havia sido enviado pelo próprio Hamas, que mantém cerca de 20 israelenses em cativeiro. O grupo palestino ainda manteria sob seu poder os corpos de 30 israelenses já mortos.
Segundo o subsecretário-geral da ONU para Assuntos Humanitários, Tom Fletcher, a fome resulta de uma “obstrução sistemática israelense” impedindo a entrada de ajuda na Faixa de Gaza. Fletcher disse ainda à imprensa que há toneladas de comida paradas na fronteira. “São necessários um cessar-fogo e a abertura das fronteiras. Deixem-nos entrar [na Faixa de Gaza]”, completou o subsecretário. Segundo o Ministério das Relações Exteriores de Israel, o relatório foi “inventado” como parte de uma campanha do Hamas. “Não há fome na Faixa de Gaza. IPC, pare de mentir”, publicou em uma rede social o órgão israelense. Ao mesmo tempo, Israel inicia uma operação de tomada da cidade de Gaza, ignorando os protestos de fatia importante da população israelense, que tem saído às ruas para pedir o fim da guerra.
“O que Israel faz na Faixa de Gaza não tem precedentes no século XXI”, disse o historiador israelo-americano Omer Bartov em entrevista à BBC News Mundo. Especialista em estudos sobre o Holocausto e genocídios, Bartov serviu como soldado de Israel na década de 1970 e hoje trabalha como professor na Brown University (EUA). Nascido em Israel, de uma família judia originária da Ucrânia, o docente estudou na Universidade de Tel Aviv (Israel) e na Universidade de Oxford (Reino Unido). “O que está acontecendo na Faixa de Gaza se encaixa na definição de genocídio”, disse, na entrevista. O termo foi criado pelo advogado polonês Raphael Lemkin, em 1944, para descrever o Holocausto, o extermínio sistemático de judeus que ocorria naquele momento.

Ataque à imprensa
“A comparação com o Holocausto deve ser feita. Ela não é incômoda só para Israel. É incômoda para todos nós”, escreveu a jornalista e escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho, que lançou simultaneamente no Brasil e em Portugal o livro Gaza Está em Toda Parte (2025, editora Bazar do Tempo). “A Europa está refém da culpa do Holocausto desde a Segunda Guerra Mundial, por isso não age contra os ataques de Israel à Palestina”, afirmou Coelho em uma palestra proferida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, durante o lançamento do livro.

“A Faixa de Gaza já foi um campo de concentração, em um tempo remoto. Agora é um campo de extermínio nas nossas telas.” No livro, a autora menciona o presidente Luiz Inácio Lula da Silva como um dos primeiros líderes democráticos a comparar o que está acontecendo no território palestino com o Holocausto. Em janeiro de 2024, o governo de Israel declarou o presidente persona non grata. Em agosto de 2025, Israel rebaixou o status das relações diplomáticas com o Brasil. No momento, nenhum dos dois países conta com diplomatas em suas respectivas embaixadas.
“Os líderes ocidentais foram incapazes de pressionar Israel para que as fronteiras fossem abertas à imprensa”, diz Coelho, autora de 15 livros. Em sua primeira obra, Oriente Próximo (2007), a autora já tratava da questão palestina. A jornalista cobriu por mais de 20 anos a situação na região e já morou no Brasil, de 2010 a 2014. Coelho voltou aos territórios palestinos depois de outubro de 2023, mas não teve acesso à Faixa de Gaza, tendo conseguido entrar somente na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental.
“Eu considero essa a maior derrota da história do jornalismo. A partir de 7 de outubro de 2023, nenhum repórter do mundo entrou livremente na Faixa de Gaza. Entram alguns repórteres inseridos nas tropas de Israel trabalhando sob censura e sem liberdade plena de transitar pelo território. Nenhum repórter do mundo pode fazer o seu trabalho, ao mesmo tempo que mais de 220 repórteres palestinos foram assassinados”, disse Coelho, mencionando números que cresceram nos últimos meses.
No dia 10 de agosto, o Exército de Israel atirou contra uma tenda da imprensa próxima ao Hospital Al-Shifa, em Gaza. Seis jornalistas da rede de televisão Al Jazeera morreram, entre os quais o repórter Anas Al-Shariff, de 28 anos, que havia publicado dias antes uma matéria sobre o intenso bombardeio contra a cidade. Israel afirma que o jornalista teria ligação com o Hamas. No dia 25 de agosto, cinco jornalistas morreram quando um míssil disparado por Israel atingiu o Hospital Nasser, o único ainda em operação no sul de Gaza, matando um total de 20 pessoas. Desde 2023, cerca de 250 profissionais da imprensa já morreram no conflito.
“Esse é o maior colapso da história do jornalismo”, reitera Coelho. O trabalho da imprensa na Faixa de Gaza está restrito aos jornalistas locais, palestinos que já viviam na região e que trabalhavam como correspondentes de redes internacionais de imprensa. Esses profissionais têm sido alvo de ataques aparentemente sistemáticos. “O esforço dos repórteres palestinos é heroico, mas precisamos de muito mais jornalismo. As redes sociais têm sido a possibilidade de dar voz aos palestinos”, diz a escritora.
Também pelas redes sociais Ashmawi se mantém informado sobre o que acontece na Faixa de Gaza. “Eu sigo uma conta no Instagram por meio da qual faço doações em dinheiro. Muitos seguidores me pedem ajuda e me contam que chegam a vender por US$ 200 ou US$ 300 um pacote de farinha de trigo. São gangues que roubam as doações humanitárias, e os israelenses dizem que é o Hamas”, conta o médico e professor da Unicamp.
‘Ouça a jornalista e escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho ‘

Ataque à imprensa
“A comparação com o Holocausto deve ser feita. Ela não é incômoda só para Israel. É incômoda para todos nós”, escreveu a jornalista e escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho, que lançou simultaneamente no Brasil e em Portugal o livro Gaza Está em Toda Parte (2025, editora Bazar do Tempo). “A Europa está refém da culpa do Holocausto desde a Segunda Guerra Mundial, por isso não age contra os ataques de Israel à Palestina”, afirmou Coelho em uma palestra proferida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, durante o lançamento do livro.


“A Faixa de Gaza já foi um campo de concentração, em um tempo remoto. Agora é um campo de extermínio nas nossas telas.” No livro, a autora menciona o presidente Luiz Inácio Lula da Silva como um dos primeiros líderes democráticos a comparar o que está acontecendo no território palestino com o Holocausto. Em janeiro de 2024, o governo de Israel declarou o presidente persona non grata. Em agosto de 2025, Israel rebaixou o status das relações diplomáticas com o Brasil. No momento, nenhum dos dois países conta com diplomatas em suas respectivas embaixadas.
“Os líderes ocidentais foram incapazes de pressionar Israel para que as fronteiras fossem abertas à imprensa”, diz Coelho, autora de 15 livros. Em sua primeira obra, Oriente Próximo (2007), a autora já tratava da questão palestina. A jornalista cobriu por mais de 20 anos a situação na região e já morou no Brasil, de 2010 a 2014. Coelho voltou aos territórios palestinos depois de outubro de 2023, mas não teve acesso à Faixa de Gaza, tendo conseguido entrar somente na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental.
“Eu considero essa a maior derrota da história do jornalismo. A partir de 7 de outubro de 2023, nenhum repórter do mundo entrou livremente na Faixa de Gaza. Entram alguns repórteres inseridos nas tropas de Israel trabalhando sob censura e sem liberdade plena de transitar pelo território. Nenhum repórter do mundo pode fazer o seu trabalho, ao mesmo tempo que mais de 220 repórteres palestinos foram assassinados”, disse Coelho, mencionando números que cresceram nos últimos meses.
No dia 10 de agosto, o Exército de Israel atirou contra uma tenda da imprensa próxima ao Hospital Al-Shifa, em Gaza. Seis jornalistas da rede de televisão Al Jazeera morreram, entre os quais o repórter Anas Al-Shariff, de 28 anos, que havia publicado dias antes uma matéria sobre o intenso bombardeio contra a cidade. Israel afirma que o jornalista teria ligação com o Hamas. No dia 25 de agosto, cinco jornalistas morreram quando um míssil disparado por Israel atingiu o Hospital Nasser, o único ainda em operação no sul de Gaza, matando um total de 20 pessoas. Desde 2023, cerca de 250 profissionais da imprensa já morreram no conflito.
“Esse é o maior colapso da história do jornalismo”, reitera Coelho. O trabalho da imprensa na Faixa de Gaza está restrito aos jornalistas locais, palestinos que já viviam na região e que trabalhavam como correspondentes de redes internacionais de imprensa. Esses profissionais têm sido alvo de ataques aparentemente sistemáticos. “O esforço dos repórteres palestinos é heroico, mas precisamos de muito mais jornalismo. As redes sociais têm sido a possibilidade de dar voz aos palestinos”, diz a escritora.
Também pelas redes sociais Ashmawi se mantém informado sobre o que acontece na Faixa de Gaza. “Eu sigo uma conta no Instagram por meio da qual faço doações em dinheiro. Muitos seguidores me pedem ajuda e me contam que chegam a vender por US$ 200 ou US$ 300 um pacote de farinha de trigo. São gangues que roubam as doações humanitárias, e os israelenses dizem que é o Hamas”, conta o médico e professor da Unicamp.
‘Ouça a jornalista e escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho ‘
Há cinco séculos a família de Salwa Mohamed El Ghalayni habitava a região de Gaza, da qual teve que sair, em 1948, em razão da Nakba (“catástrofe”, em árabe), nome dado ao processo de expulsão e desterramento dos palestinos. Salwa lembra que tinha 12 anos quando seus pais migraram com oito filhos para o Egito. Em 1960, ela se casou com o egípcio Adel Mohamed Ashmawi, que foi transferido pela empresa para o Brasil.

Conexão com a família
Desde a morte das três tias, Ashmawi passou a conversar — pelas redes sociais — com mais frequência com Khadijeh, de 75 anos, outra irmã das três executadas, que mora nos Emirados Árabes Unidos. “A minha tia Khadijeh ainda chora quando lembra o que aconteceu com as irmãs. Fala que foram mártires. Mas até hoje ela não se recuperou. Ficou deprimida”, conta Ashmawi. “Minha mãe [Salwa] hoje está mais tranquila. Ela tem esquecido de algumas coisas, mas quando entra no Facebook fica sabendo o que está acontecendo e comenta comigo o que viu. Ela fica triste, mas o bom é que ela esquece”, diz o médico, referindo-se à ocasional perda de memória por parte da mãe.
Salwa mora ao lado do filho Ashmawi, enquanto sua filha, Randa Adel Ashmawi, vive em Londres com o marido e os filhos. À distância, espalhados por diversos países, os familiares mantêm contato: sobrinhos, primos, irmãos, netos. “Isso aconteceu com todas as famílias. Tenho dois irmãos vivos e uma irmã na Jordânia. Tem gente nos Estados Unidos, na Europa, na África, nos Emirados Árabes. Muitos saíram achando que voltariam. Outros ficaram para esperar passar [os ataques mais violentos].”
Cinco séculos atrás, a família de Salwa chegou à região da qual teve que sair há 77 anos, depois da Nakba de 1948. “Quando fomos para o Egito, pensamos que iríamos só por algum tempo, algo provisório, mas ficamos para sempre, não voltamos para a Palestina. Tínhamos terra, casa, parentes, família, tudo. Era para voltar. Eu pensava que iríamos só passear no Egito”, ainda se lembra Salwa, que tinha cerca de 12 anos em 1948.
Ghalayni: “Joguei tudo
fora e comecei
a ser brasileira”

Conexão com a família
Desde a morte das três tias, Ashmawi passou a conversar — pelas redes sociais — com mais frequência com Khadijeh, de 75 anos, outra irmã das três executadas, que mora nos Emirados Árabes Unidos. “A minha tia Khadijeh ainda chora quando lembra o que aconteceu com as irmãs. Fala que foram mártires. Mas até hoje ela não se recuperou. Ficou deprimida”, conta Ashmawi. “Minha mãe [Salwa] hoje está mais tranquila. Ela tem esquecido de algumas coisas, mas quando entra no Facebook fica sabendo o que está acontecendo e comenta comigo o que viu. Ela fica triste, mas o bom é que ela esquece”, diz o médico, referindo-se à ocasional perda de memória por parte da mãe.
Salwa mora ao lado do filho Ashmawi, enquanto sua filha, Randa Adel Ashmawi, vive em Londres com o marido e os filhos. À distância, espalhados por diversos países, os familiares mantêm contato: sobrinhos, primos, irmãos, netos. “Isso aconteceu com todas as famílias. Tenho dois irmãos vivos e uma irmã na Jordânia. Tem gente nos Estados Unidos, na Europa, na África, nos Emirados Árabes. Muitos saíram achando que voltariam. Outros ficaram para esperar passar [os ataques mais violentos].”
Cinco séculos atrás, a família de Salwa chegou à região da qual teve que sair há 77 anos, depois da Nakba de 1948. “Quando fomos para o Egito, pensamos que iríamos só por algum tempo, algo provisório, mas ficamos para sempre, não voltamos para a Palestina. Tínhamos terra, casa, parentes, família, tudo. Era para voltar. Eu pensava que iríamos só passear no Egito”, ainda se lembra Salwa, que tinha cerca de 12 anos em 1948.
Ghalayni: “Joguei tudo
fora e comecei
a ser brasileira”

Uma nova terra
No Egito, ela tornou-se professora de línguas e casou-se com o engenheiro egípcio Adel Mohamed Ashmawi, que trabalhava em uma multinacional suíça. Transferidos para o Brasil em 1962, Salwa e o marido chegaram de navio com a filha de dois meses, Randa. O segundo filho, Hazem Adel Ashmawi, nasceu no Brasil, em 1964. Salwa diz que aqui se sentiu acolhida e que não quis mais retornar.

A família do historiador palestino-americano Rashid Khalidi, autor do livro Palestina — Um Século de Guerra e Resistência (1917-2017) (2024, Todavia), também precisou encontrar uma nova terra para viver. O seu avô perdeu a casa da família em Jafa durante a Nakba. Na época, seu pai, que concluía os estudos, morava em Nova York com sua mulher. Impedidos de voltar para a Faixa de Gaza, ficaram nos Estados Unidos, onde o autor nasceu.
Khalidi é professor aposentado da Universidade Columbia, onde ocorreu o primeiro movimento de protesto estudantil norte-americano contra as ações de Israel na Faixa de Gaza após o ataque do Hamas, em 7 de outubro de 2023. Em um dado momento, a polícia dispersou o acampamento dos manifestantes. No dia seguinte, Khalidi fez um discurso com um megafone para apoiar os estudantes.
“Os Estados Unidos dão sinal verde a Israel. Israel é parte na guerra contra a Palestina. É isso que me motiva como americano. Não estou nisso apenas porque sou palestino. É porque sou americano. Porque somos responsáveis”, disse o professor aposentado, que em seu novo livro falará da Irlanda, considerada por ele “um laboratório para a Palestina”.
[Continua]
Edição: Álvaro Kassab
Reportagem: Adriana Vilar de Menezes
Edição de arte: Luis Paulo Silva
Vídeos: Aguinaldo Matos
Edição de vídeo: Aguinaldo Matos, Hebe Rios
Fotos: Antoninho Perri e Antonio Scarpinetti
Edição de imagem: Luis Paulo Silva
Revisão: Rodrigo Castro
Edição de áudio: Octávio Augusto Bueno Fonseca da Silva
Design web: Renan Barreto
Trilha sonora: Matheus Mota
Coordenação geral: Álvaro Kassab, Laura Freitas Rodrigues
Créditos das imagens
Capa – UN News, UNRWA, UNICEF, WHO
Galerias – UN News, UNRWA, UNICEF, WHO, UNRWA – Hussein Owda, UNICEF – Alaa Badameh, Eyad Baba, Abed Zagout e Mohammed Nateel.