Conteúdo principal Menu principal Rodapé
Selo

Nas memórias do cárcere, a busca por solidariedade

Presas em saída temporária
Mulheres deixam o Carandiru em saída temporária: entre deslocamentos e encarceramentos, os ecos desiguais nas estruturas sociais e políticas 

Estudo investiga como experiências de mulheres migrantes no sistema prisional evidenciam desigualdades e fomentam redes de apoio

Logo mês da mulher

Natália Corazza Padovani – antropóloga, professora e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero (Pagu) da Unicamp, que passou temporada recente de pós-doutorado na Universidade de Bolonha (Itália) – conheceu a sul-africana Natasha Adelaide Anyanwu devido ao seu trabalho com mulheres migrantes com passagem pelo sistema prisional. As experiências de migração, temporária ou permanente, das duas mulheres provenientes do “Sul Global” abriram os olhos de ambas para as assimetrias de poder a que estão submetidas, atravessadas por questões múltiplas como nacionalidade, gênero, raça, sexualidade e classe social. 

No artigo “Among Us – ‘Third World Women’, Trauma, Colonialism and Political Organization” (“Entre nós – ‘mulheres do Terceiro Mundo’, trauma, colonialismo e organização política”, em tradução livre), publicado no livro Migrant Women and Autobiographical Rewriting (mulheres migrantes e a reescrita autobiográfica), pela Universidade Ca’Foscari de Veneza (Itália), Padovani e Anyanwu escrevem a quatro mãos e relatam, em primeira pessoa, o reconhecimento dos traumas que moldaram não somente as duas mulheres individualmente, mas a organização dos Estados nacionais e, consequentemente, a geopolítica atual. 

Natália e Natasha.
A pesquisadora Natália Corazza Padovani (à esq.) e a migrante Natasha Adelaide Anyanwu (à dir.): experiências de sofrimento se entrelaçam à configuração da geopolítica contemporânea
Natália e Natasha.
A pesquisadora Natália Corazza Padovani (à esq.) e a migrante Natasha Adelaide Anyanwu (à dir.): experiências de sofrimento se entrelaçam à configuração da geopolítica contemporânea

Para Padovani, porém, o trauma também pode funcionar como impulsionador para a organização política e a criação de redes de solidariedade, como ocorreu com a fundação do coletivo feminino Por Nós, em novembro de 2020, formado para prestar apoio a brasileiras e estrangeiras sobreviventes do cárcere. A organização configurou-se em um espaço de troca, cujas integrantes concluíram que “nenhuma prisão é maior do que a outra”, de modo a não ser possível hierarquizar escalas de sofrimento. “Trata-se de justamente reconhecer que precisamos elaborar alianças nas nossas diferenças para nos fortalecermos e seguirmos juntas”, ressalta. 

A antropóloga fala, portanto, do surgimento de um sujeito político decorrente da vivência no cárcere e de outras situações de violência, sujeitos não necessariamente reconhecidos enquanto vítimas. Para tratar disso, Padovani utiliza no artigo o conceito de politics of trauma (políticas do trauma), que deriva principalmente de pesquisas feitas junto à Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul, atuante no período pós-Apartheid, e junto a comissões da verdade de vários países da América do Sul, no pós-ditaduras militares, como é o caso do Brasil, do Chile e da Argentina. “Esse conceito vem sendo elaborado por pensadores como a sul-africana Fiona Ross para demonstrar como apenas determinados sujeitos são enquadrados como vítimas do trauma desses períodos sócio-históricos tão relevantes para a elaboração de ideias de Estado Nacional.”

Exemplo disso: a diferença de tratamento entre as mulheres sul-africanas vítimas de violência sexual à época do Apartheid e aquelas que relataram outros tipos de violência cometida pelo Estado, mas não reconhecidos como tal, tais quais a separação familiar baseada em critérios racistas e a morte de parentes. Algo que impacta, inclusive, a formulação de políticas de reparação e restituição e o ideário do cidadão que forma uma nação.

Reunião do grupo de mulheres "Entre nós"
Reunião do coletivo Por Nós: mulheres migrantes e sobreviventes do cárcere fortalecem alianças políticas e apoio mútuo diante das experiências compartilhadas 
Reunião do grupo de mulheres "Entre nós"
Reunião do coletivo Por nós: mulheres migrantes e sobreviventes do cárcere fortalecem alianças políticas e apoio mútuo diante das experiências compartilhadas 

Fronteiras (in)visíveis

No artigo, Padovani descreve como opressor o barulho de seus passos em meio ao silêncio de museus e igrejas europeus, remetendo esse sentimento ao silenciamento de determinados sofrimentos. A visita a obras como o conjunto de esculturas “Lamentação sobre o Cristo Morto” (Niccolò dell’Arca, 1463) provocou nela reflexões que evidenciam dois tipos de trauma: o religioso e o colonial. De acordo com a pesquisadora, o primeiro – oriundo da morte de Jesus Cristo e da tristeza das mulheres velando seu corpo – é utilizado como narrativa produtora da própria noção do que constitui a nação italiana. “No mesmo período histórico em que essas estátuas eram esculpidas, torturas estavam sendo praticadas nos territórios coloniais. Ou seja, as ‘Marias’ de Cristo eram reconhecidas enquanto vítimas de trauma na política do Estado-nação, enquanto as mulheres indígenas e negras do território colonial, não”, argumenta. 

Ao se enxergar como “pesquisadora do Terceiro Mundo na Itália”, Padovani ganhou uma nova perspectiva a respeito das fronteiras territoriais e sociais. Segundo a pesquisadora, essa é uma questão central para o chamado feminismo transnacional, corrente de pensamento que nasceu na década de 1980 e que leva em consideração as diferenças raciais, de classe e outras que se modificam a partir da mobilidade dos indivíduos. “A Natasha, por exemplo, era classificada enquanto uma colored woman [mulher de cor] na África do Sul – ou seja, nem preta, nem branca. Quando chega ao Brasil, essa classificação é completamente ressignificada”, explica.

Isso leva ao entendimento de que classificações amplas como “mulher” ou até mesmo “mulher do Sul Global” não dão conta de todas as assimetrias de poder presentes na sociedade, algo presente entre as próprias participantes do Por Nós. Aproveitando a proximidade com o dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, Padovani lembra que a data, apesar de derivada da luta de classes, por vezes celebra somente a “mulher-mãe” ou a mulher como “cuidadora”. “São questões que ajudam toda essa política do trauma a nos localizar em uma caixinha muito específica que nos impede de produzir alianças, e as lógicas dos feminismos deveriam ser justamente lutar contra diversas formas de opressão e desigualdade”, defende.

Nesse contexto, a pesquisadora busca desmistificar certos preconceitos que permeiam também os estudos de gênero e as teorias feministas, as quais “não falam somente sobre mulheres, mas sobre como as diferenças de gênero são fundamentais para compreendermos as decisões políticas”. Trata-se de um olhar diferente para a história e as relações internacionais, afirma. A antropóloga acredita que as redes de solidariedade originadas desses traumas – que atuam como revoluções silenciosas fora dos espaços entendidos como públicos – conseguem provocar mudanças políticas rumo a uma sociedade mais igualitária: “Esse é um trabalho cotidiano, miúdo, de longo prazo”.

A obra “Lamentação sobre o Cristo Morto” (Niccolò dell’Arca, 1463) levou Padovani a refletir sobre o contraste entre o luto sacralizado e os traumas silenciados do colonialismo

Nem preta, nem branca 

Padovani identificou o trauma colonial durante sua viagem à Europa. Já para Anyanwu, vencer a distância entre a África do Sul e o Brasil e a prisão vinculada a essa migração não constituem o maior trauma da sua vida. Para a sul-africana, essa jornada libertou-a da opressão em seu país natal, conforme relata à equipe do Repórter Unicamp no vídeo a seguir. “Sofri muito na escola. Acho que por isso escolhi o ‘caminho errado’ [do crime], porque eu não me identifico com essa comunidade na qual cresci”, compartilha Anyanwu em seu depoimento.

Presa no Brasil em 2009, Anyanwu cumpriu pena até 2012. “A experiência com as prisioneiras em si não foi ruim. Ruim era o prédio [a estrutura da prisão], a falta de saúde, a comida”, afirma. Para a sul-africana, a forma de atuação da Justiça não resolve o problema e nem reabilita o detento. “Se alguém fez algo de errado, precisa de ajuda, terapia, educação… A resposta não é tratá-lo como um cachorro, como menos do que um cidadão, sem documento nenhum. É preciso descobrir por que essa pessoa pensou que essa seria uma boa ideia.” 

Ao dividir com outras pessoas sua história, a imigrante espera chamar atenção para a discriminação social: “Temos que evoluir e superar isso. Precisamos aceitar que todos somos únicos, que ninguém é igual”. 

Confira, a seguir, a seleção de reportagens da TV Unicamp sobre as lutas e experiências das mulheres.

Ir para o topo