A pesquisadora da área de letras clássicas Camila Aline Zanon desenvolve pesquisa de pós-doutorado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp com o intuito de investigar o papel exercido pela deusa Gaia na narrativa grega da Teogonia, de Hesíodo. A partir de uma perspectiva diferente daquela da crítica literária corrente, a pesquisadora pretende extrapolar a leitura sobre o papel de Gaia no poema grego não apenas enfatizando seu atributo de fertilidade, mas destacando também seu papel fundamental enquanto divindade primordial, em um esforço interpretativo pautado principalmente pela sagacidade e pela capacidade de aconselhamento feminino da divindade.
![Retrato do poeta grego Hesíodo Foto: Georgios Kollidas /Shutterstock.com](https://jornal.unicamp.br/wp-content/uploads/sites/32/2025/02/Ju_20250210_Teogonia_Hesiodo-Interna-2.jpg)
“Quanto mais eu lia o poema, mais eu tinha uma percepção diferente do papel de Gaia. Ela opera mudanças na narrativa até que o cosmos se estabilize sob o poder de Zeus. Então, é como se ela estivesse por trás dessas mudanças. Eu ficava incomodada com as leituras correntes, em que Gaia é estudada somente em relação a sua fertilidade, sempre alinhada a uma questão da instabilidade”, explicou Zanon.
A pesquisadora enfatiza que, na verdade, a fertilidade de Gaia tem uma contraparte masculina, muitas vezes ignorada nas leituras críticas. Por isso, é importante reconhecer o protagonismo da divindade feminina no poema. Desde esse ponto de vista, o estudo procura demarcar as diversas vezes em que o conhecimento e o planejamento relativos às ações de Gaia aparecem no texto. Percebe-se, então, como Gaia se torna uma conselheira e como seus conselhos funcionam, e isso porque conseguem atingir determinados objetivos em prol dos governantes e da história do cosmos.
Destacamos aqui um exemplo, tirado dos versos 624 a 628, com os conselhos dados por Gaia a Zeus e seus irmãos, convencendo-os a libertarem os Centímanos – gigantes com 100 mãos e 50 cabeças –, que os ajudariam a vencer os Titãs.
Mas a eles [os Centímanos] o Cronida [Zeus] e outros deuses imortais, os que Reia bela-coma pariu em amor por Crono, graças aos conselhos de Terra [Gaia], levaram de volta à luz: ela tudo lhes contara, do início ao fim, como com aqueles vitória e triunfo radiante granjear.*
*A tradução é de Christian Werner na Teogonia, de Hesíodo (Hedra, 2013).
Na sequência da narrativa, exatamente devido ao conselho de Gaia, os deuses fazem de Zeus um rei e senhor que, ao engolir a deusa Astúcia, vira um soberano.
Partindo da análise do texto, a pesquisa aponta como Gaia desempenha um papel essencial no poema, não somente porque a personagem gera descendência, que constituirá grande parte do cosmos, mas porque suas ações revelam-se decisivas na configuração política daquela sociedade. A respeito dessas ações, a pesquisadora analisa aquilo que os estudiosos denominam de “agência” de Gaia, ou seja, sua atuação ao elaborar estratégias e aconselhamentos, com o intuito de transformar o futuro. A agência de Gaia resulta, em grande medida, da sua astuciosa capacidade de criar estratégias e de aconselhar outros agentes em suas ações, já que possui um particular conhecimento sobre o futuro.
“Gaia é uma divindade fundamental, no sentido mesmo de fundamento. Todos nós estamos vivendo sobre Gaia. Então, o que eu procuro fazer é, justamente, colocar Gaia sob os holofotes. Podemos pensar no aspecto dessa noção de Gaia, como Terra, que tem sido cada vez mais valorizada atualmente, diante das questões ambientais”, enfatizou Zanon.
Esse configura um dos aspectos importantes da pesquisa de pós-doutorado, desenvolvida a partir da perspectiva de uma mulher do Sul Global que não pertence a uma academia hegemônica europeia no mundo dos estudos clássicos. Estudos como esse, realizados em universidades públicas do Brasil, enfatizam uma cultura que conversa com as origens indígenas e de matrizes africanas da região, oferecendo uma perspectiva diferente, por exemplo, sobre o politeísmo, perspectiva essa descolada de uma leitura medievo-cristã.
Lívia Mendes Pereira é discente no curso de Especialização em Jornalismo Científico da Unicamp, bolsista da Fapesp (Mídia Ciência) no Centro de Estudos Clássicos do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) e possui doutorado em Linguística.
![https://www.culturaanimi.com.br/post/teogonia-de-hesiodo](https://jornal.unicamp.br/wp-content/uploads/sites/32/2025/02/Ju_20250210_Teogonia_Hesiodo-Capa-1.jpg)