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Considerada uma epidemia global, a obesidade é comumente entendida como resultado de uma combinação de fatores genéticos e ambientais. Há várias hipóteses científicas sobre as origens evolutivas dessa comorbidade, tais como as condições econômicas ou o ambiente climático em que uma população vive. Nesse contexto, os pesquisadores da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp Mario Saad e Andrey Santos apresentam a metainflamação como uma nova teoria capaz de explicar o surgimento da doença. O artigo intitulado “The Microbiota and Evolution of Obesity” veio a público em dezembro na revista Endocrine Reviews, uma publicação da Endocrine Society.

Segundo Saad, o artigo visa provocar o debate, pois é raro usar a teoria da evolução das espécies, proposta por Charles Darwin, nas pesquisas médicas sobre o mecanismo das doenças, muito embora os achados científicos ao longo do tempo corroborem os postulados apresentados pelo naturalista e geólogo britânico. Compreender a obesidade a partir da seleção gênica pode contribuir para entender melhor o aumento exponencial de casos da doença no mundo todo, nos últimos 40 anos.

“Sem desprezar os fatores ambientais, que se mostram determinantes, nós queremos entender melhor por que o componente genético da obesidade – que ficou ‘adormecido’ durante um longo período da história da humanidade – é ativado na presença de um ambiente obesogênico, de falta de exercício e excesso de alimentação, entre outros fatores. Nossa hipótese é que os genes responsáveis pela obesidade ofereceram alguma vantagem evolutiva na história da humanidade”, explica.

Os docentes da FCM Andrey Santos e Mario Saad: há mais de 30 anos estudam os fatores de origem da obesidade
Os docentes da FCM Andrey Santos (à esquerda) e Mario Saad: há mais de 30 anos estudam os fatores de origem da obesidade
(Foto: Divulgação FCM)

A teoria da metainflamação

Estudando há mais de 30 anos a obesidade, Saad e Santos explicam que, nessa comorbidade, as vias inflamatórias estão ativadas, mas, ao contrário do que muitos acreditam, nem sempre é a doença a responsável por tais inflamações. Os cientistas afirmam que, muitas vezes, a obesidade surge antes dos processos inflamatórios. “Começamos a observar que modelos animais com maiores chances de desenvolver processos inflamatórios engordavam mais. Ao investigar a inflamação metabólica sob a ótica evolucionista, tivemos o insight de que grandes epidemias poderiam ter sido decisivas no processo de seleção natural da humanidade. A peste negra, na Europa, exterminou dois terços da população. A colonização da América foi uma história de extermínio populacional. Em cem anos, 90% das populações do México e do Peru foram dizimadas por doenças infecciosas decorrentes do contato com os colonizadores europeus”, contam.

Os pesquisadores da FCM sugerem que todas as populações ancestrais vítimas de grandes epidemias selecionaram genes com mais chances de favorecer a obesidade. Saad e Santos observaram, por exemplo, uma maior prevalência da comorbidade nas ilhas do Pacífico cujas populações sobreviveram a grandes epidemias durante o século 19. Os dois identificaram um padrão semelhante no caso de grupos populacionais ancestrais, nativos americanos ou afrodescendentes expostos a doenças infecciosas.

“A nossa teoria é que no passado, durante uma epidemia, os indivíduos sobreviventes provavelmente apresentavam um sistema imune com respostas mais robustas e transmitiram esses genes mais resistentes aos seus descendentes, contribuindo para um maior estoque de energia e favorecendo o desenvolvimento da obesidade. Já sabemos que existe uma relação entre o sistema imune e a obesidade. Se você tem um sistema imune mais resistente, maiores são as chances de engordar”, explica Saad.

Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) mostram que cerca de 15 milhões de pessoas morreram durante a recente pandemia de covid-19. A tragédia poderia gerar um planeta mais obeso no futuro? Saad pondera que as pandemias da atualidade diferem das que ocorreram em séculos passados. Hoje, graças ao avanço da ciência, a quantidade de pessoas que morrem em decorrência dessas crises mostra-se muito menor, afirmou Saad. No entanto, segundo o cientista, pessoas que sofreram da modalidade mais longa da covid têm apresentando mais chances de engordar. Agora os cientistas discutem se isso tem a ver com a inflamação metabólica causada pelo coronavírus, agente da doença.

Resumo gráfico da teoria do avanço da doença
Resumo gráfico da teoria do avanço da doença (Foto: Divulgação FCM)

O papel da microbiota intestinal

Considerando que, para acontecer uma mutação gênica com vantagem evolutiva a ser transmitida a descendentes, é necessário um intervalo de tempo de 50 mil a 100 mil anos, os pesquisadores começaram a investigar a influência das variações genéticas da microbiota intestinal na complexa estrutura genética da obesidade, vendo-a de uma forma mais poligênica.

Como alguns indivíduos podem apresentar bactérias do intestino que favorecem o armazenamento de energia, Saad e Santos começaram a pensar na teoria do genótipo econômico não a partir de genes humanos, mas dos genes das bactérias, que podem ter transmissão familiar. Os cientistas também levaram em conta o fato de a microbiota intestinal contribuir para a adaptação ao clima frio, quando há um gasto energético maior, e para a defesa contra agentes infecciosos. Os genes das bactérias, assim como os dos vírus, sofrem mutações muito mais rapidamente do que os genes humanos.

“Incluindo os genes de bactérias que podem ser transmitidos por gerações, podemos revisitar as hipóteses do genótipo econômico e do genótipo termogênico, sem excluir a terceira hipótese. Mais importante: nossa hipótese da metainflamação, além de encontrar respaldo em alterações poligênicas em genes do sistema imune em obesos, também pode ser reforçada por uma microbiota que nos ajude na defesa contra infecções. Resumindo: ao incluir os genes de bactérias da microbiota no arcabouço genético da obesidade, não precisamos excluir nenhuma teoria anterior e reforçamos a nossa, da metainflamação”, explica Saad.

Em conclusão, os autores afirmam que, para descobrir as origens evolutivas da obesidade, são necessárias abordagens multifacetadas, considerando a complexidade da história humana, as diferentes pressões evolutivas sobre a mesma tais quais o frio, a fome e as doenças infecciosas, a composição genética de diferentes populações e a influência da microbiota intestinal na genética do hospedeiro humano, algo denominado “genótipo estendido”. “Nesse sentido, provavelmente a obesidade é mais poligênica do que quando se pensa unicamente no genoma humano”, finaliza o pesquisador e docente da FCM.

Estudo buscou entender melhor porque o componente genético da obesidade é ativado na falta de exercício e excesso de alimentação, entre outros fatores
Estudo buscou entender melhor porque o componente genético da obesidade é ativado na falta de exercício e excesso de alimentação, entre outros fatores (Foto: Divulgação Pixabay)

Discussão sobre outras abordagens

No artigo de revisão, os autores apresentam contribuições e fragilidades de teorias anteriores desse campo de investigação. A primeira delas, a teoria do genótipo econômico, proposta pelo geneticista inglês James Neel, sugere que, antes do surgimento da agricultura, quando submetidos a longos períodos de carência alimentar, os indivíduos com mais capacidade genética de estocar energia tiveram mais chances de sobreviver, transmitindo às gerações futuras genes favoráveis ao armazenamento de alimentos. Esses indivíduos , quando expostos ao ambiente obesogênico, possuem uma maior propensão a desenvolver a doença.

Para Saad e Santos, essa teoria revela-se muito fácil de contestar, uma vez que a prevalência da obesidade é diferente nas diversas populações do planeta, ainda que todas elas apresentassem no passado condições similares de escassez de alimentos. Estudos genéticos recentes, de acordo com os pesquisadores, também mostram que os defeitos em vias de armazenamento são raros nas populações descendentes.

A segunda teoria científica apresentada e discutida no artigo diz respeito à migração do Homo sapiens para regiões mais frias do planeta. Para suportar as baixas temperaturas, a espécie humana, segundo propõem os cientistas, teria desenvolvido genes para facilitar o gasto de energia, dificultando o desenvolvimento da obesidade. Aqueles que ficaram em regiões mais quentes não precisaram desenvolver mecanismos para aumentar o gasto energético, estando então mais predispostos à obesidade. Essa seria a hipótese termogênica. Embora os pesquisadores da FCM considerem a teoria interessante, afirmam não haver dados genéticos atualizados que a corroborem.

Uma terceira teoria investiga o passado ainda mais remoto da humanidade, há cerca de 1 milhão de anos, quando a vantagem evolutiva coube àqueles indivíduos que conseguiram escapar dos predadores. Os genes selecionados então contribuiriam para evitar a obesidade. Com a diminuição da pressão seletiva, no entanto, a partir da descoberta do fogo, teriam começado as primeiras mutações gênicas facilitando a comorbidade. Nesse caso, a falta de pressão evolutiva poderia favorecer a seleção de genes que predispusessem à doença. Entretanto, como a obesidade revela-se muito prevalente hoje, o mais provável é que os genes predisponentes à doença acabaram selecionados por pressão evolutiva e não pela falta dessa pressão.

Matéria publicada originalmente no site da FCM.

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