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Cultura e Sociedade

A linguista Margarida Salomão e o desafio da comunicação política

Prefeita reeleita de Juiz de Fora, a professora analisa o jogo de poder e a sociedade pela perspectiva da linguística e da cognição

“A discussão social neste momento é uma discussão cognitiva.” Essa proposição partiu da linguista Margarida Salomão, prefeita recém-reeleita em Juiz de Fora (MG), no primeiro turno, pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Pioneira nos estudos da linguística cognitiva, Salomão proferiu a palestra intitulada “A política como campo de provas da cognição social – Metáforas em disputa na cena política do Brasil”, no auditório do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, no dia 6 de novembro, durante o V Colóquio Linguagem e Cognição em Interação: A Constituição da Cognição Social e os Estudos Linguísticos. Para ela, ao contrário da visão generalizada de que as questões da linguagem “são como uma sobremesa, algo que vem depois”, o tema da cognição diz respeito à vida social. “Não dá para segmentar, não há como fazer recortes disciplinares rígidos.”

Salomão identifica, para além dessa discussão específica, que a cognição representa um elemento estrutural da vida social, por implicar a capacidade de raciocínio, a percepção, a linguagem e outros aspectos fundamentais de cada indivíduo. “Na verdade, o que estrutura a vida social é o conhecimento que as pessoas têm a respeito do seu próprio papel, da sua pertinência de classe, do seu gênero, da sua faixa etária, das suas aspirações. Trata-se de um autoconhecimento que necessariamente é um conhecimento cultural”, disse a estudiosa em entrevista ao Jornal da Unicamp, logo após o evento.

A linguista Margarida Salomão: a cognição representa um elemento estrutural da vida social
A linguista Margarida Salomão: a cognição representa um elemento estrutural da vida social

Desafios e urgências na era digital

Em sua palestra, Salomão fez observações sobre a linguagem a partir de sua prática política. “Minha paixão da vida inteira é a linguagem, como sistema complexo e como capacidade social e política”, afirmou a linguista, que considera o atual cenário político desafiador, no Brasil e no mundo. “Nós acordamos esta semana com a vitória de Donald Trump nos Estados Unidos. Não dá para simplesmente apagar esse contexto.”

A democracia está em risco em todo o mundo, disse Salomão, que vê urgência no fortalecimento dessa instituição. “Acho que o grande desafio da sociedade brasileira é fortalecer e aprofundar a democracia, que vive uma crise mundial. Fortalecer porque no mundo inteiro ela é um bem em risco. E aprofundá-la porque ela ainda é incapaz de agregar setores absolutamente decisivos para que nós tenhamos uma vivência mais inclusiva, mais rica e mais transformadora”, avalia. A pesquisadora identifica nas plataformas digitais uma das causas do enfraquecimento da democracia. “Essas são as atuais ágoras, multidimensionadas e superfragmentadas, em que há uma indução de posição por meio dos algoritmos. Temos uma nova sociedade da comunicação e da informação. Faz-se necessário reconstruirmos a confiança, uma tarefa árdua, para a qual não tenho a receita.”

Margarida Salomão (à direita) participou do V Colóquio Linguagem e Cognição em Interação: A Constituição da Cognição Social e os Estudos Linguísticos organizado pela professora Edwiges Maria Morato (à esquerda)
Margarida Salomão (à direita) participou do V Colóquio Linguagem e Cognição em Interação: A Constituição da Cognição Social e os Estudos Linguísticos organizado pela professora Edwiges Maria Morato (à esquerda)

Benefício da Linguística

Identificando-se hoje como “uma prefeita com o benefício de ter se formado como linguista”, Salomão se encantou, ainda jovem, na década de 1970, com a linguística. Nessa época, a grande discussão da área girava em torno de saber se havia condições de tratar cientificamente o sentido, a semântica. Inicialmente, quando se falava em linguagem, só se pensava em gramática e léxico. Apenas a partir do final do século XX, a questão do sentido e do significado tomou dimensão social: “Essas construções não são subjetivas, mas são da sociedade ou da vivência em sociedade”.

Graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutora em linguística pela Universidade da Califórnia em Berkeley (Estados Unidos), a atual prefeita lembra não ter sido politicamente engajada antes da vida universitária. “Cheguei à política pela minha militância dentro da universidade, que acabou extravasando para disputas no parlamento, pelo viés da cidade.” No início de sua vida acadêmica, como professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), deu aula de literatura brasileira. “Naquela altura, a linguística era uma ciência fascinante, um conhecimento eminentemente multidisciplinar que prometia nos dar as respostas que os estudos da literatura não nos ofereciam. Cheguei à linguística por esse caminho.”

Colóquio Linguagem e Cognição em Interação aconteceu na quarta-feira, dia 6/11, no Instituto de Estudos da Linguagem
Colóquio Linguagem e Cognição em Interação aconteceu na quarta-feira, dia 6/11, no Instituto de Estudos da Linguagem

Êxito político

Salomão ocupou o cargo de reitora da UFJF por duas vezes, eleita em 1998 e em 2002. Em sua trajetória na política pública, foi deputada federal pelo PT de Minas Gerais, de 2013 a 2020, e agora reeleita prefeita de Juiz de Fora, pelo mesmo partido, com 150.848 votos, 53,96% dos votos válidos.  “A vitória política consiste em ter êxito na proposição de uma perspectiva. Isso eu descobri na prática”, afirma a linguista, que agradeceu o convite da professora Edwiges Maria Morato para proferir a palestra no IEL. “Eu me sinto honrada pelo convite a esta altura da minha vida, em que tenho outras agendas concorrentes. O colóquio abraça desafios epistemológicos consideráveis”, disse a prefeita, que também analisou, em sua apresentação, as metáforas em disputa na cena política do Brasil. Segundo afirmou, “todas as metáforas relevantes radiam-se na experiência” e a metáfora é reconhecida como recurso retórico no discurso político.

Para Salomão, a Nova República (iniciada depois da ditadura militar) ruiu e novas agendas emergiram “descosturadas entre si”, predominantemente relacionadas ao sucesso pessoal e ao reconhecimento como indivíduo. A linguista lembra que houve um momento na história do Brasil no qual as questões da equidade, da distribuição dos recursos e do acesso aos direitos representavam agendas determinantes. “A disputa política se dava dentro de alguns consensos e ninguém discutia o resultado da eleição e seu papel democrático. Era consenso a necessidade de tornar a sociedade brasileira mais equitativa, por exemplo. Não havia consenso sobre a forma de se alcançar isso, porque havia escolhas e agendas políticas diferentes. O PSDB [Partido da Social Democracia Brasileira] já tinha algumas ideias ligadas ao neoliberalismo, como a necessidade de redução do Estado e de privatização, enquanto o PT persistia achando que, em uma sociedade tão desigual quanto a brasileira, o Estado tem um papel muito relevante a desempenhar. Mas, apesar das divergências, travávamos disputas pela via da política democrática.”

Em seu entendimento, não existe nenhum grande avanço na história da humanidade que não tenha resultado de lutas por parte de quem buscava algum direito ou algum tipo de reconhecimento. Salomão analisa, sob a perspectiva da cognição social, a cena democrática como uma disputa no discurso. Para tanto, a estudiosa relaciona metáfora, cognição e retórica, avaliando o que as metáforas podem nos ensinar. A linguista cita também o questionamento sobre a existência de universais da cognição humana e discorre sobre o papel central do orçamento público – um assunto completamente ignorado pela sociedade – na agenda política brasileira.

Inteligência artificial e colonização

“Há um risco hoje de reduzirem a cognição a muito menos do que ela é”, alerta Salomão, que considera fundamental incluir linguistas no debate das políticas públicas nacionais sobre inteligência artificial (IA). “Isso tudo é linguagem”, defende. “Como é que a linguística brasileira vai se ausentar da formulação daqueles que devem ser os grandes eixos da política pública científica brasileira nesse campo? Se formos discutir IA sem os linguistas, nós vamos ficar mais uma vez colonizados, porque os linguistas de outros países participam desse processo. Aqui, estamos excluídos. Penso que a linguística brasileira não pode ficar de fora.”

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