Os estudos do psicanalista austríaco Sigmund Freud têm recebido bastante atenção na área de estudos clássicos ao passo que a teoria da psicologia analítica do psiquiatra e psicoterapeuta suíço Carl Gustav Jung ainda não conquistou tanto espaço, mesmo sendo este um autor que serve como porta de entrada para a antiguidade greco-romana, no caso de muitos leitores não especializados.
Esse questionamento impulsionou Fabiana Lopes da Silveira, pesquisadora Fapesp de pós-doutorado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, a realizar um estudo sobre como a literatura da antiguidade greco-romana, teve impacto na elaboração da psicologia analítica de um modo geral e na obra de Jung em particular.
Uma leitora atenta do psiquiatra suíço desde muito cedo, Silveira mantém um olhar interdisciplinar em seus estudos. Trabalhou tanto na iniciação científica quanto no mestrado com as epístolas de Sêneca e, depois, no doutorado, influenciada pela obra de Jung, estudou a alquimia greco-egípcia. Atualmente, estuda a obra junguiana em confluência com a filologia clássica.
“Basicamente a minha pesquisa investiga o papel que a filologia clássica, ou seja, os estudos dedicados à antiguidade greco-romana, teve na obra do Carl Gustav Jung, o fundador da psicologia analítica. Um dos objetivos que eu tenho com essa pesquisa é desafiar uma visão bastante comum, mas bastante simplista, de que Jung era meramente um ocultista”, explica a Silveira.
A pesquisadora esclarece que Jung sempre se interessou por estudar fenômenos sobrenaturais, mitologia e religião, em um momento histórico no qual havia um ímpeto muito grande em pesquisar tais assuntos de uma maneira mais rigorosa, a partir da perspectiva científica. Aí está a pertinência em demonstrar a maneira como a filologia clássica, que muitas vezes acaba sendo estigmatizada como uma disciplina irrelevante, foi incorporada em disciplinas inovadoras do século XX, como a psicologia.
“O complexo de Édipo e o inconsciente coletivo, por exemplo, são conceitos que o público em geral não necessariamente acessou diretamente nas obras da psicologia profunda, mas que certamente estão no ar quando a gente pensa em antiguidade. Isso não é por acaso, pois Jung recorreu tanto à literatura greco-romana quanto a estudos acadêmicos dedicados a essa área, na tentativa de comprovar a sua teoria”, completa Silveira.
Durante o estágio de pesquisa no exterior, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), a especialista frequentou o Instituto de Estudos Avançados da University College London (UCL), onde participava semanalmente de um seminário interdisciplinar. Nessa ocasião, também realizou duas visitas à C. G. Jung Papers CollectiondoInstituto Federal de Tecnologia de Zurique e uma visita à biblioteca pessoal do psiquiatra no Museum Haus C. G. Jung, na Suíça. Essas visitas deram à pesquisadora a oportunidade de conhecer a biblioteca de Jung e também a coleção de manuscritos, entre os quais cartas trocadas com o filólogo Károly Kerényi. Esses documentos ainda não estão publicados e serviram como uma importante fonte documental para a pesquisa, que investiga a colaboração entre estes dois autores, a partir de uma visão científica da mitologia e da teoria dos arquétipos.
“A oportunidade de ir à Suíça para olhar de perto esse acervo pessoal foi valiosíssima, porque ele era um anotador ávido. Muitos dos seus livros eram cheios de passagem sublinhadas, com anotações nas margens. Todos esses dados foram de muita importância para os artigos que eu escrevi até o momento, porque ali a gente vê não só os livros que Jung tinha e a produção de filólogos clássicos que o interessava, mas também como ele estava reagindo a esse material”, lembra a pesquisadora.
Essa experiência foi importante para a elucidação do objetivo da pesquisa, feita sob a supervisão da professora Isabella Tardin Cardoso: ressaltar que Jung não estava apenas lendo a literatura greco-romana, mas também se dedicava a esses estudos como uma fonte de informação para a criação da sua teoria da psicologia analítica.
A figura do personagem Filêmon, tornado conhecido na obra Metamorfoses, de Ovídio, foi um dos recortes relacionados com a mitologia clássica que a pesquisa evidenciou. A recepção desse mito está presente principalmente no Livro Vermelho, que é um importante registro literário realizado por Jung a partir da autoexperimentação, realizada entre os anos de 1913 e 1916. Trata-se de uma técnica que ele denominou mais tarde de “imaginação ativa”, uma experiência de estado de fantasia e de observação de imagens que emergem do inconsciente.
Uma dessas imagens inconscientes registradas por Jung foi justamente a de Filêmon, seu encontro com a figura do arquétipo do velho sábio. Para a pesquisadora, esse personagem mitológico funciona como uma chave de leitura para entender o impacto da literatura da antiguidade greco-romana sobre a obra de Jung. Referências às Metamorfoses fazem parte principalmente da obra Transformações e Símbolos da Libido, de 1912, mas também estão presentes nos trabalhos de sua teoria da psicologia, construída anos depois. O Livro Vermelho só foi publicado há pouco mais de dez anos, de modo que ainda há muito a ser explorado e entendido no processo de construção da obra de Jung, e é exatamente isso que a pesquisa procura fazer.
No trabalho realizado durante o estágio de pesquisa no exterior, e publicado no International Journal of the Classical Tradition, Silveira analisou como Jung refigurou o personagem Filêmon em relação às Metamorfoses de Ovídio e o Fausto de Goethe. A pesquisadora procurou relacionar essa construção com os escritos herméticos, gnósticos e alquímicos e investigou sua relação com a teoria dos arquétipos, em particular a do arquétipo do velho sábio.
A psicologia analítica é uma área do conhecimento muito prática, “eu muitas vezes ouvi desses terapeutas que os aspectos mais especializados da obra do Jung, voltados para a antiguidade e a alquimia, são muitas vezes difíceis de acompanhar e de entender. Então, meu trabalho também busca fazer essa ponte entre a psicologia e a filologia para o leitor não especializado”, enfatiza a pesquisadora. O estudo dos traços filológicos da obra de Jung faz justamente essa conexão entre as duas áreas, a psicologia e a filologia clássica, para que os profissionais que trabalham com a área de psicologia analítica, que não tiveram treinamentos em línguas antigas, mitologia e literatura greco-romana, possam acessar essas informações e relacioná-las com a teoria junguiana.
Lívia Mendes Pereira é discente no curso de Especialização em Jornalismo Científico da Unicamp, bolsista da Fapesp (Mídia Ciência) no Centro de Estudos Clássicos do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) e possui doutorado em Linguística.