Nesta segunda-feira (4), um grupo de ex-presos políticos, vítimas da repressão do período da ditadura militar, participaram de uma visita ao Laboratório de Arqueologia Pública da Unicamp “Paulo Duarte” (LAP) para conhecerem os resultados preliminares das escavações arqueológicas realizadas no prédio do antigo Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), órgão ligado ao Exército, onde ocorreram torturas e mortes de opositores da ditadura militar (1964-1985). O grupo acompanhou explicações de como o trabalho foi realizado e conferiu itens recolhidos das escavações, os quais, agora, passam por uma série de análises que auxiliam na reconstituição do que ocorreu no local.
“Este momento é muito importante, pois nosso olhar sobre os artefatos é o de pesquisadores. Quando trazemos para cá pessoas que, infelizmente, têm suas memórias atreladas ao DOI-Codi, que vivenciaram essa rotina, conseguimos informações que não teríamos se apenas fizéssemos uma interpretação dos objetos”, explica Aline Carvalho, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Unicamp (Nepam) e coordenadora do LAP. Além da Unicamp, integram o Grupo de Trabalho Memorial DOI-Codi as Universidades Federais de São Paulo (Unifesp) e de Minas Gerais (UFMG), o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) e a Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico (UPPH) do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat).
Realizada entre os dias 2 e 14 de agosto de 2023, a escavação resultou na coleta de mais de 800 fragmentos, que compreendem cerca de 350 objetos identificados, sendo a maior parte deles fragmentos de vidros, azulejos, louças e cerâmicas. Os pesquisadores detalham que vários fragmentos podem compor um objeto, como os pedaços de uma antiga louça, o que explica a diferença entre o número de fragmentos e de objetos. A varredura também recolheu objetos considerados especiais, como um antigo tinteiro, um pente, um pedaço de sola de sapato e uma lata de cerveja. Entre eles, o que mais chama a atenção é um par de meias-calças, encontrado no antigo refeitório do local. “Cada um dos objetos conta uma história”, destaca Andrés Zarankin, arqueólogo da UFMG. A expectativa é que os itens componham o acervo de um futuro memorial, que seria instalado no antigo DOI-Codi. “São objetos que podem tocar quem visita o local e desconstruir narrativas reacionárias, baseadas em uma realidade paralela”, comenta.
Durante a visita, o grupo pôde conhecer as técnicas empregadas na análise dos objetos e entender como os relatos de quem passou pelo local auxiliam na reconstituição do passado. Eles também indagaram se já houve a identificação de marcas dos objetos de tortura instalados no DOI-Codi, como o pau-de-arara, e se é possível confirmar se vestígios presentes na meia-calça são de sangue ou de outro material. Os arqueólogos explicaram que ainda buscam alguns detalhes, enquanto outros são dificultados pelas limitações dos métodos de análise. “No antigo Dops de Minas Gerais, as análises mostraram de forma clara onde ficava o pau-de-arara”, aponta Cláudia Plens, da Unifesp. Já em relação ao possível sangue, o estudo é inconclusivo. “Não existem metodologias no mundo para um vestígio de sangue que seria tão antigo. É uma novidade até para a arqueologia forense a análise de locais com crimes que ocorreram há tanto tempo”.
“Gostaria muito que se encontrasse vestígios nas celas, que descobrissem inscrições ou anotações feitas no período”, conta Aton Filho (76), preso no Rio de Janeiro em dezembro de 1969 e transferido para o DOI-Codi em seguida. Ele conta que foi vítima da repressão do período ao longo de 10 anos e que vê a possibilidade de que o passado do local seja elucidado com certo ceticismo. “Sou bastante cético, talvez até por desconhecimento. No entanto, só temos a chance de descobrir coisas novas se o trabalho for realizado”, comentou.
Para Lucila Labaki (80), o encontro com os vestígios é algo muito pesado. A aposentada não chegou a ser presa no período, pois partiu antes para o exílio. Após a decretação do Ato Institucional Nº 5, em dezembro de 1968, ela partiu para a Bulgária, onde morou por dez anos, retornando ao país com a Lei da Anistia, em 1979. No entanto, seu irmão, Michel Labaki, foi preso e torturado no local. “Lembro que, na época em que meu irmão foi preso, fiquei sabendo por cartas escritas por minha mãe que ele tinha sido torturado. Ela relatava o quanto meu pai chorava e dizia: ‘Eu nunca bati em meu filho! Como eles fazem isso?'”, conta Labaki.
Coragem que entusiasma
Antes da visita ao LAP, o grupo acompanhou uma apresentação do Grupo de Trabalho Memorial DOI-Codi e de representantes das instituições envolvidas no projeto. A abertura contou com a presença de Antonio Meirelles, reitor da Unicamp; Silvia Santiago, diretora-executiva de Direitos Humanos da Unicamp; Cristiane Seixas, coordenadora do Nepam; Eduardo Valério e Reynaldo Mapelle Júnior, promotores de Justiça do MPSP, além dos pesquisadores que integram a equipe.
Silvia Santiago destacou que o trabalho de investigação no antigo DOI-Codi é corajoso e necessário para que o país discuta o passado e possa seguir adiante refletindo a respeito do quanto a violência ainda se reproduz, principalmente em comunidades periféricas. “É uma coragem que nos entusiasma e nos dá forças para olharmos o presente e desenharmos um futuro melhor”, exaltou.
Os promotores do MPSP destacaram a importância da pesquisa para a ação judicial, movida pelo órgão, para que o espaço seja convertido em memorial. Apesar de tombado pelo Patrimônio Histórico, as antigas instalações ainda são de posse da Secretaria de Segurança Pública do Estado. “O relatório final das investigações científicas terá uma importância muito grande na ação judicial. Vamos continuar trabalhando por um acordo, que pode ser facilitado por este trabalho arqueológico”, explica Mapelli Júnior. Segundo Valério, a iniciativa das universidades contribui para a defesa dos Direitos Humanos e para o exercício da cidadania. “Temos que falar sobre isso, ensinar e sensibilizar as futuras gerações de que, naquele espaço, há um conteúdo histórico e emocional, um lugar de memória”.
Para o reitor da Unicamp, a iniciativa vai ao encontro da tradição da Universidade em tomar parte na defesa da democracia e dos direitos humanos no país. Meirelles também celebrou o fato de o trabalho ser resultado de uma parceria entre três universidades públicas e outras instituições. “Hoje, as universidades cumprem um papel particular em refletir sobre o mundo e a sociedade. Parte dos desafios dessa tarefa é preservar a memória. Criamos um elo com o passado que ilumina nosso presente e futuro de forma diferente”.