
Um acervo, infinitas histórias
Coleção de bibliófilo abrigada no Centro de Memória da Unicamp revela a riqueza histórica de Campinas
Quem visita a reserva técnica do Centro de Memória da Unicamp (CMU) se surpreende ao encontrar um conjunto com mais de duas mil obras identificadas por apenas um nome, o de João Falchi Trinca. A coleção, que impressiona por sua variedade, é formada por livros e folhetos sobre assuntos tão diversos quanto geografia, história, literatura, religião, ciências puras e aplicadas, línguas, filosofia, artes e generalidades. Mas, por trás de toda essa diversidade, um tópico conecta as publicações: o município de Campinas.
Trinca não foi o autor das obras ali presentes, mas um bibliófilo que, desde os 16 anos, reuniu o que veio a se tornar o maior acervo particular sobre essa cidade do interior paulista, onde nasceu, em 1911, e morou até 1928. Em 1986, ele doou o material — junto com mapas, plantas arquitetônicas, partituras e 18 mil recortes e encadernados de jornal — produzido entre os anos de 1858 e 1986, para o recém-criado CMU, inaugurando a biblioteca do Centro.


“Trinca criou uma série de coleções interligadas. Ele tinha uma brasiliana e dentro dela havia a campiniana. Na campiniana havia a almeidiana, com livros ligados ao [escritor campineiro] Guilherme de Almeida”, afirma o historiador Munir Abboud Pompeo de Camargo, que produziu um doutorado sobre a coleção, defendido na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, e contribuiu, durante o processo de pesquisa, para a organização da coleção, que estava dispersa pelo CMU.
Além do acervo sobre Almeida, há na coleção documentos de e sobre personalidades como a escritora Amélia de Rezende Martins, filha de Barão Geraldo de Rezende, e o professor do Colégio Culto à Ciência Basílio Magalhães, que adquiriu o jornal Correio de Campinas. Relatórios da prefeitura e da Companhia de Águas e Esgoto, bem como folhetos de cinema e livros didáticos, ajudam a desvendar o cotidiano e as peculiaridades do município, como ter sido o primeiro do país a criar uma associação dedicada ao esperanto.
Um dos destaques da pesquisa, no entanto, foi a investigação das marcas de leitura deixadas nos exemplares estudados. Ao longo dos anos, Trinca fez uso extensivo de marginálias — anotações nas margens de uma obra e demais espaços em branco —, para localizar informações de interesse nos materiais. Trata-se de um aspecto que se diferencia do uso habitual desse recurso, voltado à organização do pensamento do leitor, demonstrando que suas anotações tinham o principal objetivo de expandir a coleção.
Trinca construiu uma marginália remissiva, com informações sobre onde era possível encontrar determinados assuntos. Nesse sentido, Camargo revela que um dos seus achados mais interessantes foi um caderno de marginálias sobre o livro Índice de Bibliografia Brasileira, de José Galante de Sousa. Ali, o bibliófilo criou um índice remissivo com as páginas onde era possível encontrar bibliografias ligadas a autores ou assuntos de Campinas. “E ele fez isso em uma listinha telefônica”, destaca.
Modernização em perspectiva
De acordo com a pesquisa, o material doado contribui para a compreensão da passagem da Campinas do século XIX, voltada à produção de café, para a do século XX, modernizada e industrializada. Embora já houvesse um ideal de progresso durante os anos 1800, com a presença de diversas escolas ligadas aos grupos mandatários, as sucessivas epidemias de febre amarela esvaziaram o município. Essa situação só foi revertida no século seguinte, quando a elite usou a noção de “cidade dos colégios” para incentivar uma vida intelectual intensa, que foi acompanhada por amplas reformas urbanas.
Tal movimento culminou na instalação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que veio a se tornar a Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas, e da própria Unicamp, que tiveram parte de seus quadros oriundos desses circuitos. Esse é o caso do historiador e professor do Departamento de História e fundador do CMU José Roberto do Amaral Lapa, que mediou a doação das obras de Trinca. Ele começou sua trajetória como docente do ensino secundário, atuou como professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e, mais tarde, foi convidado a participar do projeto de criação da Unicamp.
Os dois haviam se conhecido no Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA) da cidade, criado em 1901 por uma elite interessada em promover atividades científicas e artísticas na região. Ali, o bibliófilo, um contador da classe média, estabeleceu relações de sociabilidade com intelectuais consagrados, iniciando a amizade com Lapa quando este produziu as Primeiras notas para uma bibliografia da história de Campinas (1966). Trinca auxiliou o futuro professor da Unicamp com fontes para a pesquisa e este doou uma cópia autografada para o colecionador, que usou suas referências para ampliar a biblioteca.


Com a doação das obras, Lapa produziu uma ampla reflexão sobre o processo de modernização da cidade, relacionado problemas do cotidiano urbano aos efeitos da pobreza e da escravidão, em discussões relacionadas às tensões causadas pela abolição da escravatura, à inserção da população negra e imigrante e às formas de sobrevivência encontradas por elas. “Lapa vai pôr essa modernização em perspectiva, tanto naquilo que ela trouxe de avanços para a vida social e econômica, quanto para aquilo que ela trouxe de questões e problemas”, afirma o docente da FE André Luiz Paulilo, que orientou Camargo.
Esses estudos deram início, na Unicamp, a uma linha de pesquisa sobre a história de Campinas e do Oeste paulista. Nesse sentido, Paulilo comenta que a pesquisa de Camargo, apesar de ter como objetivo investigar a coleção, acabou contribuindo para a história da própria Unicamp ao mostrar como a Universidade constrói um campo de saber. “É bastante interessante de se olhar o trabalho do CMU hoje a partir da relação que ele tem com Campinas. O Centro de Memória é muito capaz de conversar com a cidade, com o cidadão e com os órgãos de cultura do município e eu considero que isso tem muito a ver com o projeto que o Lapa pensou”, finaliza.
Com a doação das obras, Lapa produziu uma ampla reflexão sobre o processo de modernização da cidade, relacionado problemas do cotidiano urbano aos efeitos da pobreza e da escravidão, em discussões relacionadas às tensões causadas pela abolição da escravatura, à inserção da população negra e imigrante e às formas de sobrevivência encontradas por elas. “Lapa vai pôr essa modernização em perspectiva, tanto naquilo que ela trouxe de avanços para a vida social e econômica, quanto para aquilo que ela trouxe de questões e problemas”, afirma o docente da FE André Luiz Paulilo, que orientou Camargo.
Esses estudos deram início, na Unicamp, a uma linha de pesquisa sobre a história de Campinas e do Oeste paulista. Nesse sentido, Paulilo comenta que a pesquisa de Camargo, apesar de ter como objetivo investigar a coleção, acabou contribuindo para a história da própria Unicamp ao mostrar como a Universidade constrói um campo de saber. “É bastante interessante de se olhar o trabalho do CMU hoje a partir da relação que ele tem com Campinas. O Centro de Memória é muito capaz de conversar com a cidade, com o cidadão e com os órgãos de cultura do município e eu considero que isso tem muito a ver com o projeto que o Lapa pensou”, finaliza.