
A hora e a vez do café canéfora
Pesquisador desenvolve e aplica métodos para identificar origem e caracterizar espécie menosprezada do fruto
A hora e a vez do café canéfora
Pesquisador desenvolve e aplica métodos para identificar origem e caracterizar espécie menosprezada do fruto

No Brasil e no mundo, 60% do café cultivado pertence à espécie arábica – tradicionalmente associada a frutos de maior qualidade. No entanto, a recente disparada no preço do grão, decorrente principalmente das secas e da crise climática, mostrou a urgência de buscar novas soluções para garantir o cafezinho futuro. Supostamente inferior, o café da espécie canéfora – conhecido no mercado por suas variedades botânicas, robusta e conilon – tem despertado a atenção de produtores e cientistas, devido à sua resistência a altas temperaturas, a doenças e a pragas, além de sua alta produtividade. No mercado, já é possível encontrar café canéfora especial – classificado com 80 pontos ou mais (em uma escala de 0 a 100) e dotado de aromas e sabores diferenciados. No entanto, a falta de informação tem impedido seu reconhecimento como fruto de qualidade, assim como o avanço de seu cultivo.
Em doutorado realizado na Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp, Michel Baqueta desenvolveu e aplicou um conjunto de métodos visando uma análise mais rápida e sustentável da espécie investigada. Seu objetivo foi caracterizar e comparar mais de 650 amostras de canéfora vindas das principais regiões produtoras do Brasil. Para tanto, foi criado um banco de dados com informações químicas sobre os constituintes orgânicos e inorgânicos dos cafés. O doutor em ciência de alimentos conduziu uma análise avançada dos dados, a partir de um conjunto de métodos estatísticos e matemáticos.
A pesquisa, vencedora do Prêmio Capes deste ano (na área Ciência de Alimentos), foi orientada pela professora Juliana Pallone. O estudo contou com parcerias nacionais e internacionais. No Brasil, com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa Rondônia; a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR); a Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB) e a Universidade Estadual de Maringá (UEM). Entre as parcerias internacionais, encontram-se a Universita’ Degli Studi Di Roma La Sapienza e Alma Mater Studiorum Università di Bologna, ambas localizadas na Itália, onde o pesquisador realizou um intercâmbio acadêmico financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), e a Université Paris-Saclay, na França.
Mistura
Baqueta lembra que, até pouco tempo, os cafés canéforas eram comercializados em misturas com o arábica, para baratear o preço, prática que levou à necessidade de identificar sua composição e determinar sua origem. Para o doutorado, o pesquisador trabalhou com amostras provenientes das principais regiões produtoras no Brasil – Espírito Santo, sul da Bahia e Rondônia (incluindo, aqui, exemplares cultivados por indígenas em sistema de agrofloresta, na região amazônica). “Cada método forneceu uma resposta, e muitos deles permitiram obter uma ‘impressão digital’ química dos cafés canéforas”, descreve.


Para obter a “impressão digital”, relacionada à singularidade e à origem de cada fruto, as principais abordagens fundamentaram-se em espectroscopia, espectrometria e ciência de dados baseada em quimiometria, o que envolveu o uso de um tipo específico de inteligência artificial. Porções de café torrado e moído, submetidas ao mínimo de intervenção, serviram de material para a maioria das análises. Buscando registrar as moléculas encontradas em cada exemplar, Baqueta utilizou espectrômetros – aparelhos que geram dados com base em estruturas e ligações químicas dos compostos presentes nas amostras, a partir de emissão, absorção ou reflectância de radiação eletromagnética. Após obter o espectro de cada café (sua “impressão digital”), o pesquisador utilizou a quimiometria para interpretar os resultados, que indicaram a importância dos componentes orgânicos e inorgânicos, quais eles eram e quais eram as relações entre eles e entre aspectos sensoriais dos cafés.
Seu trabalho permitiu analisar não apenas origem e composição, mas detectar adulterações nos grãos. Baqueta criou uma espécie de miniestúdio fotográfico, com uso de impressora 3D, que utilizou para fotografar amostras de café puras (autênticas) e adulteradas, em diferentes concentrações. As imagens, posteriormente, foram analisadas por um software que conseguiu identificar, com 100% de acurácia, qual o grau de alteração de cada exemplar.
A orientadora ressalta que a pesquisa, além de ser a primeira do gênero no Brasil a levantar dados dos frutos produzidos por indígenas da Amazônia, resultou na criação de bancos de dados que contêm informações sobre os aspectos orgânicos e inorgânicos de centenas de cafés, o que faz do trabalho pioneiro no país, sobretudo por disponibilizar dados completos sobre o café canéfora brasileiro de qualidade superior. A iniciativa de analisar diversas variáveis ao mesmo tempo é apontada como outro diferencial da tese. “Em uma das técnicas, temos 1.899 variáveis, representando as informações sobre os compostos orgânicos dentro das amostras. O mais comum é usar abordagem univariada, para analisar um único aspecto, como só a quantidade de carboidratos ou o só aroma de uma fruta. Nós usamos estratégias multivariadas, analisam todas as variáveis juntas”, compara Pallone.
Café de segunda classe?
De acordo com Baqueta, a má-fama do canéfora pode ser atribuída à falta de investimento em sua melhoria. Conhecida por ser mais amarga e encorpada e também por não possuir muito sabor ou aroma, a espécie ainda pode conter o dobro de cafeína do arábica. “A reputação negativa não está ligada a características inerentes à planta do canéfora, mas, sim, ao fato de que, sem os devidos cuidados, ela tende a produzir frutos defeituosos. Faltam melhores práticas de cultivo e de manejo pré e pós-colheita, como aguardar a maturação adequada dos frutos, selecionar os melhores grãos e, em muitos casos, aplicar técnicas de fermentação capazes de diversificar o perfil sensorial do café.”
Os processos utilizados no doutorado, para mapear o dados espectrais relacionados aos compostos orgânicos, geraram perfis abrangentes dos diferentes canéforas, e permitiram identificar moléculas de cafeína, sacarose e trigonelina (alcaloide com propriedades anti-inflamatórias). Minerais presentes em sua composição foram identificados e quantificados. Os resultados foram confrontados, posteriormente, com dados de análise sensorial, na qual provadores profissionais avaliaram a bebida após degustação.
Em relação à avaliação de minerais, a análise mostrou que os cafés robustas das terras indígenas de Rondônia apresentaram 20% mais cálcio do que o dos produtores convencionais do mesmo Estado. O achado, sugere Baqueta, pode explicar a diferença no gosto. “Para entender o perfil sensorial do café e explicar por que ele é mais amargo, uma forma é olhar para os minerais. Ver se possui mais potássio, mais cálcio ou mais magnésio, por exemplo. Vimos que, em todos os cafés canéforas, os teores de potássio e cálcio foram superiores aos do arábica. Nos canéforas, níveis altos de potássio resultam em gosto residual salobro, e níveis baixos, em gosto residual saboroso e aromas agradáveis.”