Conteúdo principal Menu principal Rodapé
Uma impressão digital cinza com linhas curvas e espirais, em um fundo branco.

Tecnoautoritarismo amplifica a repressão digital

Pesquisa destaca o uso de tecnologias de monitoramento nas mãos de governos comandados por uma direita radicalizada

A silhueta de um homem é vista em frente a uma tela com linhas horizontais de código ou dados em tons de azul e branco. O homem está de lado, com o rosto virado para a direita.
Tendência global de limitações das liberdades civis é disfarçada sob o discurso da segurança

Cada vez mais onipresentes, as câmeras de segurança espalhadas pelas ruas das cidades e na entrada de prédios residenciais, prédios comerciais e locais de lazer, com sistemas de monitoramento e dispositivos de reconhecimento facial baseados em inteligência artificial (IA), vendem a ideia de que estamos todos seguros. “Uma sociedade que acaba governada pelas coisas é uma sociedade que geralmente não questiona porque raramente tem a percepção de que os aparatos tecnológicos reproduzem a política e a sociedade em si”, alerta o professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp Alcides Eduardo dos Reis Peron, um dos autores do artigo “Beyond digital repression: techno-authoritarianism in radical right governments”, que apresenta o conceito de tecnoautoritarismo e amplifica o conceito anterior de repressão digital.

“Geralmente, atribui-se a esses objetos uma noção de progresso, uma noção de eficiência que transcende as paixões humanas”, continua Peron, que assina o artigo, publicado em julho na revista acadêmica Cogent Social Sciences, com David Almstadter Mattar de Magalhães, professor de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e Gabriel Fernandes Caetano, professor de relações internacionais da Universidade Federal do Tocantins (UFT). “O grande objetivo do nosso artigo é combater o pensar tecnoautoritário.”

“Não atacamos o uso da tecnologia, mas o modo como se pensa em segurança e na maneira de utilizar esses aparatos”, afirma o professor, que começou a estudar sistemas de vigilância e tecnologias baseadas em coletas de dados aplicados à guerra e expandiu sua pesquisa para a questão de seu uso na área de segurança pública. O artigo, destaca, “aborda criticamente o uso das tecnologias de vigilância e monitoramento em países que vivem sob estresse político”.

Um homem com barba escura e olhos claros, fala e gesticula. Ele veste uma camisa social azul clara e está em frente a uma parede branca com grafites em spray vermelho e laranja.
O professor Alcides Eduardo Peron, um dos autores da pesquisa: é importante resgatar o pensar criativo, massacrado pelos aparatos tecnológicos

Na conta dos algoritmos

Um homem com barba escura e olhos claros, fala e gesticula. Ele veste uma camisa social azul clara e está em frente a uma parede branca com grafites em spray vermelho e laranja.
O professor Alcides Eduardo Peron, um dos autores da pesquisa: é importante resgatar o pensar criativo, massacrado pelos aparatos tecnológicos

No seu pós-doutorado, realizado na Universidade de São Paulo (USP), Peron se debruçou sobre os sistemas de monitoramento que se espraiaram pelas cidades brasileiras, muitos catalogados como IA e a maioria baseada em reconhecimento facial. “Esses são sistemas que dependem de aprendizado, de identificação dos algoritmos, mas que vêm do policiamento preditivo para determinar se, a partir da conduta de um indivíduo ou da leitura de uma imagem, trata-se de alguém suspeito ou não”, explica.

Segundo o docente, o estudo avançou quando observou que esses sistemas estavam presentes em muitos países e, ao contrário do que se apregoava, iam além daqueles governos conhecidos como tradicionalmente autoritários. “Na China, Arábia Saudita, Coreia do Norte, Síria e Rússia, por exemplo, sabemos que as instituições são fracas, que o sistema é autoritário e que essas tecnologias, no limite, são intrusivas e viabilizam políticas autoritárias. Porém, ao fazer um levantamento prévio, antes mesmo de convidar meus coautores, comecei a perceber que os mesmos sistemas usados nesses países também estavam presentes em países governados por uma direita radicalizada. E não estamos falando de países não ocidentais”, continua. “Na bibliografia de referência, os autores chamavam essa política de repressão digital, que nada mais é do que a presença de mecanismos de censura no ambiente da internet, o controle de dados, o uso de sistemas para perseguir pessoas, tudo centrado na web.”

Ao identificar a tendência, que aponta para um movimento global de limitação das liberdades civis sob o disfarce de segurança e modernização, o conceito se expandiu. “No conceito de repressão digital, somente o Estado autoritário é o indutor. Contudo, no tecnoautoritarismo, a gente propõe um conceito que não centra foco no Estado e, sim, na cooperação entre o Estado e as empresas na divulgação, no uso e na promoção dessas tecnologias”, destaca.

“As próprias empresas mostram aos governos que você precisa daquele sistema. Não se trata de vender somente a tecnologia, mas, sim, de vender o problema. Com um discurso de que a segurança pública é afetada pela falta de monitoramento, aparece a solução: ‘Por acaso tenho isso aqui’. Trata-se da normalização da utilização dessas tecnologias por forças policiais e outras autarquias, inclusive privadas, para a coerção de agrupamentos diversos. Esse é um autoritarismo que não se manifesta só como um uso, uma ação, mas também como uma imanência política.”

Peron enfatiza que o conceito está longe de ser abstrato. “Essas não são tecnologias viabilizadas de maneira escusa. São tecnologias que se expandem no universo físico, mobilizadas pela própria percepção do autoritarismo. No conceito de repressão digital, o autoritarismo é físico, manifestando-se em uma política repressiva e em um conjunto de associações e concordâncias que vão normalizando processos de redução de direitos e de discriminação de maneira geral. No tecnoautoritarismo, a imanência política induz não só o emprego dessas tecnologias, mas a normalização e a aceitação geral em relação a seu uso.”

Sob disfarce

Ao aprofundar sua pesquisa, o docente notou que as mesmas tecnologias estavam sendo usadas por governos de direita. No artigo, o foco da análise ficou centrado em Israel, na Hungria e no Brasil do governo Jair Bolsonaro (2019-2022). “Comecei a notar que o fluxo de troca entre esses países era mais intenso, que havia uma utilização coordenada da coleta massiva de dados, por forças policiais e de inteligência.”

Israel, sob o comando do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, combina populismo de direita com uma política de segurança altamente tecnológica e invasiva. O país, que desenvolveu o Pegasus (spyware capaz de invadir telefones celulares) por meio da empresa NSO Group e utilizou o reconhecimento facial e sistemas como o Red Wolf para monitorar palestinos em territórios ocupados, transformou-se em um laboratório de teste de tecnologias repressivas, depois exportadas para outros países.

No governo de Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria desde 2010, o regime de longa duração da direita radical, que serviu de modelo para um novo movimento da extrema direita europeia, tem consolidado a vigilância estatal e o controle da mídia. As tecnologias de vigilância servem como ferramentas de poder político e não apenas para a segurança pública.

Peron ressalta que, nos dois países, os sistemas trouxeram incremento da violência e intrusão policial na vida da população em geral. “A circulação das tecnologias de Israel mostrou que, no uso interno, elas foram usadas tanto no campo dos conflitos na Faixa de Gaza quanto em ambientes de ocupação, como na Cisjordânia. Além da utilização contra os palestinos e os próprios adversários do governo, há ainda a vigilância da própria população.”

No Brasil de Bolsonaro, o governo promoveu uma cultura política de militarização, vigilância e punição, com ênfase em inimigos internos como ativistas, minorias e opositores. Houve a adoção de sistemas de vigilância preditiva, reconhecimento facial e integração de bancos de dados, porém de forma desregulada, além do uso de narrativas de “guerra ao crime” e “ameaça comunista” para justificar a implementação desses sistemas.

Longo e corrosivo

Para Peron, é importante amplificar o conceito de repressão digital a fim de iniciar uma discussão que o traduza para uma dimensão mais inteligível, mais passível de compreensão. “O tecnoautoritarismo não é só o bloqueio direto dos direitos políticos e fundamentais dos indivíduos, mas, sim, um processo longo e corrosivo”, alerta.

“O uso dessas tecnologias está normalizado, como é o caso de Israel, que não passou por uma mudança política e segue a lógica do primeiro-ministro. Na Hungria, já há uma ruptura no processo [democrático] e, no Brasil, na época, havia vários estresses de dimensão política e constitucional. Esses são casos em que ocorre um tensionamento da democracia. No entanto não foi preciso acontecer uma ruptura democrática evidente para que esses sistemas entrassem em operação”, explica.

Na análise, o professor observa que, no caso do Brasil, não existem tantas empresas que produzem tecnologias de vigilância. O que ocorre são disputas entre norte-americanos, israelenses e europeus para controlar o mercado local. “É diferente de Israel e da Hungria. Israel, por exemplo, se tornou um hub de venda e comercialização desses sistemas, explicando o que faziam deputados bolsonaristas em visita ao país em 2019 e, mais recentemente, a ida de prefeitos dos partidos de direita para conhecerem tecnologias de vigilância israelenses. Já na Hungria, observa-se mais o uso de sistemas chineses e também israelenses para cercear refugiados e imigrantes e perseguir a comunidade LGBTQIAPN+.”

No Brasil, durante o governo Bolsonaro, o uso de spywares, como o sistema israelense FirstMile, serviu para monitorar membros do Supremo Tribunal Federal (STF), jornalistas, advogados, professores e políticos. O software, adquirido sem licitação ainda no governo de Michel Temer durante a intervenção federal na área de segurança pública no Rio de Janeiro, passou a ser utilizado mais intensamente no governo Bolsonaro, de acordo com a apuração da Polícia Federal na operação Última Milha.

Dois guardas municipais de São Paulo, um homem e uma mulher, estão de costas, olhando para um painel digital. Ambos usam uniformes e coletes azuis com o emblema da GCM São Paulo. No painel, aparece o título "Prisômetro" e o número de prisões realizadas pela guarda.
Guardas municipais observam o Prisômetro: “placar” integra projeto de videomonitoramento da Prefeitura Municipal de São Paulo
Dois guardas municipais de São Paulo, um homem e uma mulher, estão de costas, olhando para um painel digital. Ambos usam uniformes e coletes azuis com o emblema da GCM São Paulo. No painel, aparece o título "Prisômetro" e o número de prisões realizadas pela guarda.
Guardas municipais observam o Prisômetro: “placar” integra projeto de videomonitoramento da Prefeitura Municipal de São Paulo

Peron, contudo, enfatiza que “não quer jogar o bebê fora com a água do banho” e lembra das dinâmicas da engenharia social, termo que se origina no próprio conceito de controle social. “A fluidez dessas tecnologias e do modo como são apropriadas prescinde de discursos, de falas, do que não é dito. O importante é a digressão a ser feita de que a sociedade incorpora o viés e as omissões no desenvolvimento dessas tecnologias.”

O autor cita como exemplo a implantação do sistema Smart Sampa, em 2022, tecnologia de videomonitoramento da Prefeitura Municipal de São Paulo, que utiliza o reconhecimento facial e outras tecnologias de IA em nome da segurança urbana. O sistema integra câmeras públicas e privadas para reconhecimento facial e detecção de placas de veículos em uma rede que conecta, dentro de uma central de monitoramento unificada, a Secretaria Municipal de Segurança Urbana, a Guarda Civil Metropolitana (GCM), as polícias militar e civil, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) e a São Paulo Transporte S/A (SPTrans).

“Na licitação do Smart Sampa, havia o pressuposto de que o sistema deveria conseguir identificar tom de pele, tipo de cabelo, vestimenta e modo de andar. Tudo indica que o sistema, em sua gênese, teria de ser capaz de assimilar um conjunto de categorias geralmente preconceituosas”, destaca. “A tecnologia não é racista. Quem reproduz [a tecnologia] é a sociedade, que é conturbada, fissurada, baseada em princípios de branquitude, misoginia. Uma sociedade elitista, xenofóbica, que se mostra presente de múltiplas formas e elimina a chance de o sujeito reagir.”

Pensar criativo

Diante desse cenário, além de lançar luz sobre o tema, o que se pode esperar? “Quando se deixa de usar uma tecnologia?”, questiona Peron. “Quando aparece uma melhor.” O professor, no entanto, destaca a necessidade do pensar criativo, “massacrado por esses conjuntos tecnológicos importados”, e lembra o caso recente de um porteiro de um prédio do Bairro da Consolação, na capital paulista, que sugeriu uma solução inusitada para o problema dos assaltos na região — dentro da qual se registra uma média de 28 furtos por dia.

O porteiro Julio Oliveira, diante da insatisfação dos moradores do prédio onde trabalha, que pagavam R$ 600 por mês pelo uso de câmeras de monitoramento sem resultados concretos, teve a ideia de colocar grandes vasos com plantas na frente do condomínio para dificultar o acesso dos assaltantes, que estão geralmente de bicicleta. A maioria dos furtos diz respeito a telefones celulares levados pelos criminosos no momento em que as pessoas usam aplicativos de mobilidade. A ideia funcionou e virou tema de reportagens no noticiário nacional.

“Esse é um exemplo do pensar criativo. Permitiu-se chegar a uma alternativa eficaz, empoderando aquele que tem uma expertise muito maior do que a tecnologia, no caso, o porteiro”, afirma. “Enfiar reconhecimento facial em tudo não é a solução. Atribuir tudo ao high tech, também não. Às vezes, a solução está no low tech.”

A imagem é um infográfico com o título "ENTENDA OS CONCEITOS". Abaixo, há duas colunas:

A primeira coluna se chama "Repressão digital" e lista três pontos com marcações de visto:

Foco em censura online, redes sociais, fake news

Limitada ao ambiente digital

Associada a regimes autoritários clássicos, como China, Rússia e Coreia do Norte

A segunda coluna se chama "Tecnoautoritarismo" e também lista três pontos:

Inclui todos os aparatos tecnológicos e ideológicos que sustentam práticas autoritárias

Inclui vigilância física, polícia, coleta de dados biométricos

Ocorre dentro de democracias frágeis
Ir para o topo