
POR UM FIO
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Modelo pretende diminuir o número de mortes de
animais quando entram em contato com a rede elétrica
Ver uma arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari) livre na natureza é coisa rara, afinal, além de habitar exclusivamente uma região remota da Bahia, marcada pelo clima semiárido e recoberta pela Caatinga, a espécie está classificada como animal “em perigo”, de acordo com a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN). Não bastasse o tráfico de animais silvestres e a diminuição da oferta de sua principal fonte de alimento (o coco da palmeira licuri) como consequência do avanço da agropecuária, a expansão da rede elétrica na região acabou se tornando uma ameaça à existência dessas aves, que sucumbem após entrarem em contato com partes energizadas dos postes. A situação é crítica: atualmente, restam somente 2.500 indivíduos na natureza. Apenas em 2023, registraram-se 45 mortes por eletroplessão (situação em que o contato fatal com a rede elétrica energizada se dá de forma acidental).
As peculiaridades da situação vivida pela arara-azul-de-lear tornaram seu caso perfeito para um projeto científico multi-institucional que visou elaborar um mapa do risco de morte de animais silvestres por eletroplessão. Encampado por pesquisadores do Brasil e do exterior, o trabalho virou tema de um artigo publicado recentemente no Journal of Applied Ecology. Sua execução resulta de um projeto do Plano de Ação Nacional para Conservação das Aves da Caatinga, do governo federal, e contou com a colaboração de diversas instituições, como a organização ambiental Bird Life International, o Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). E envolveu ainda profissionais de universidades de Portugal, do Rio Grande do Sul e de São Paulo.
A fim de desenvolver a ferramenta, o grupo utilizou um software capaz de prever o potencial de atividade da arara-azul-de-lear na área mapeada. Segundo relatado no artigo, para sua elaboração, os pesquisadores usaram preditores como a distância das aves até os abrigos mais significativos e a distribuição potencial de pés de licuri. O resultado dos testes mostrou que uma alteração de 1% nas células de alto risco da rede elétrica poderia corresponder a uma prevenção de 35% dos casos conhecidos (o que envolveria intervir em pelo menos 5.668 torres de energia). Foi considerada, também, uma alteração em 5% das peças mais perigosas, o que indicou a probabilidade de prevenção de cerca de 60% das eletroplessões conhecidas. Caso os esforços de mitigação chegassem a 10% e a 20% das células de alto risco, a redução do número de mortes poderia corresponder a mais de 80% e, em alguns casos, a até 90%.


Pesquisadora do Laboratório de Interações e Dinâmica da Diversidade do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, Erica Pacífico participou do desenvolvimento do modelo e coassina o artigo. Especialista no manejo da espécie e de outros animais silvestres, a zoóloga já havia estudado a biologia reprodutiva e a dinâmica populacional da arara-azul-de-lear, em seu mestrado e em seu doutorado. Bolsista do Programa de Pesquisador de Pós-Doutorado (PPPD) da Universidade, no IB, a cientista, em seu trabalho mais recente, conduziu um grupo de pesquisa que atuou no monitoramento populacional a longo prazo da espécie. “Graças ao edital do programa de pós-doutorado do IB, que valorizava pesquisadoras que eram mães e que estavam amamentando, pude resgatar minha carreira acadêmica. Nesse trabalho, minha função foi acessar informações sobre a espécie em campo: em áreas de reprodução e em dormitórios, assim como em áreas de alimentação, além de mapear os locais de eletrocussão.”
No noroeste baiano, Pacífico capturou, marcou e reintroduziu animais criados em cativeiro na região do Raso da Catarina e na região do Boqueirão da Onça, onde paredões de arenito servem, a essa ave, de moradia e de local para escavar ninhos. Desde 2008, a pesquisadora, acompanhada de servidores do ICMBio e organizações não governamentais locais, vem compilando dados sobre eletroplessão envolvendo as araras. Segundo a especialista, há medidas simples que podem diminuir o número de casos fatais. “[Medidas] como modificar a estrutura da rede virando o isolador para baixo e afastar os três cabos de energia”, cita.
Com o mapa de risco, os pesquisadores buscaram criar uma ferramenta capaz de auxiliar as instituições governamentais e a empresa de energia a direcionar melhor os recursos gastos para evitar a morte de animais por eletroplessão. Priorizando, dessa forma, os lugares onde o problema é mais sensível, explica a zoóloga. “A arara-azul-de-lear possui vários traços relacionados com sua ameaça de extinção. É um animal de alimentação especializada, que se distribui de forma restrita e que inicia seu período reprodutivo tardiamente. Além disso, tem vida longa — chegando a 50 anos de idade — e é monogâmico. Há riscos intrínsecos devido ao fato de sua população ser pequena”, afirma.
Uma ave de médio porte e de coloração única, a arara-azul-de-lear é cobiçada por traficantes de animais e sofre com o avanço da ocupação humana, responsável por desmatar as áreas recobertas pela palmeira licuri. Além do hábito de pousar nos postes de energia para socializar e se alimentar, seu tamanho acabou se tornando um fator de risco para acidentes fatais com a rede elétrica, explica Pacífico. É que, para um animal com 70 cm de altura e 1,13 m de envergadura (distância entre a ponta de uma asa e a ponta da outra), tocar em uma parte energizada do poste acaba sendo quase inevitável. A situação piora pelo fato de voarem em pares, o que torna comum perder dois indivíduos de uma vez.
Um estudo anterior, apontando a eletroplessão como uma das principais ameaças de morte no caso dessa espécie, serviu de pontapé para a colaboração com especialistas em acidentes envolvendo a fauna e estruturas elétricas e para a elaboração do mapa. Seus resultados apontaram que, em 17 anos, houve 170 mortes. “De 2019 para cá, houve um boom. Encontramos uma taxa de mortalidade aguda especialmente na região rural”, relata Pacífico, correlacionando a descoberta com a chegada da rede elétrica a esses locais. As mortes equivalem à perda de um núcleo populacional inteiro da ave — atualmente, existem sete núcleos do tipo, concentrados no Raso da Catarina.
Segundo a pesquisadora, a força-tarefa procurou desenvolver uma ferramenta que pudesse auxiliar na proteção não apenas da arara-azul-de-lear, mas de outros animais silvestres ameaçados pelo avanço da malha elétrica. É o caso do bicho-preguiça, do sagui e do macaco-bugio. “O objetivo foi mapear áreas prioritárias para a mitigação das mortes provocadas pela empresa de energia e para que essas pessoas possam implementar uma ação emergencial”, diz a bióloga.
