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Pesquisa examina cuidado em situações de aborto

Na imagem, uma pessoa está deitada em uma cama de hospital e outra segura sua mão, transmitindo apoio e carinho.
Estudo analisou dados sobre 1.683 mulheres que tiveram alguma complicação em decorrência do aborto

Métodos, qualidade do atendimento e aspectos sociais integram tese na área de medicina

Na imagem, uma pessoa está deitada em uma cama de hospital e outra segura sua mão, transmitindo apoio e carinho.
Estudo analisou dados sobre 1.683 mulheres que tiveram alguma complicação em decorrência do aborto

Se na sociedade o aborto é tabu, na academia, o assunto precisa ser objeto de mais estudos, em especial sobre a assistência à mulher que passa por um abortamento — espontâneo ou por direito adquirido. O alerta vem do médico Nélio Veiga Júnior, que, em sua pesquisa de doutorado, buscou investigar o tema por meio de três recortes distintos. O médico examinou desde dados estatísticos sobre os principais métodos de esvaziamento uterino até a qualidade do atendimento prestado às pacientes, passando, também, por aspectos sociais e geográficos do procedimento. Seus achados constam da tese “Cuidado Integral ao Aborto: Tipos de manejo, análise de complicações e experiência do cuidado”, que venceu o V Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos Unicamp — Instituto Vladimir Herzog na categoria Ciências Biológicas e da Saúde.

A pesquisa reúne três estudos, que Veiga Júnior desenvolveu sob a orientação do professor Luiz Francisco Baccaro como aluno do programa de pós-graduação do Departamento de Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. Nos dois primeiros trabalhos, financiados pelo Centro Latino-Americano de Perinatologia (Clap) da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), o médico se concentrou no Hospital da Mulher Prof. Dr. José Aristodemo Pinotti (Caism), localizado no campus de Barão Geraldo da Universidade. Na sequência, adotou um novo recorte. Contando com o apoio da Organização Mundial da Saúde (OMS), avaliou dados de pacientes internadas em hospitais públicos do Distrito Federal, do Maranhão e de Rondônia.

Todos os estudos integram a linha de investigação Aspectos Biopsicossociais da Sexualidade Humana, Violência e Qualidade de Vida, em curso na tocoginecologia. Cada um rendeu, ainda, a publicação de um artigo científico — os dois primeiros em periódicos estrangeiros. No início da pesquisa, Veiga Júnior analisou os três métodos de esvaziamento uterino empregados na rede pública de saúde para terminar a gestação: a curetagem uterina (CTG), a aspiração manual intrauterina (Amiu) e o aborto medicamentoso (AM) realizado exclusivamente com a droga misoprostol. O objetivo, conta o pesquisador, era identificar os fatores associados à escolha por cada método.

O estudo transcorreu no hospital universitário entre os anos de 2017 e 2020, não por acaso o período em que se instalou no Caism a rede Mulheres em Situação de Aborto (Rede Clap-Musa), organização responsável por sistematizar os dados sobre o aborto em hospitais da América Latina. No total, Veiga Júnior considerou 474 pacientes que chegaram ao Caism já em processo de abortamento ou que tiveram direito à interrupção legal de sua gestação, assegurado em casos de estupro e de feto anencefálico ou quando não há outro meio de salvar a vida da gestante.

A imagem mostra um homem sentado em uma cadeira de escritório, usando camisa branca, gravata cinza e um crachá no pescoço. Ele parece estar em meio a uma conversa, gesticulando com a mão.
Luiz Francisco Baccaro, professor orientador
da pesquisa: é urgente que equipes médicas
adotem condutas mais seguras
A imagem mostra um homem sentado em uma cadeira de escritório, usando camisa branca, gravata cinza e um crachá no pescoço. Ele parece estar em meio a uma conversa, gesticulando com a mão.
Luiz Francisco Baccaro, professor orientador
da pesquisa: é urgente que equipes médicas
adotem condutas mais seguras

O levantamento revelou uma relação entre a chegada da Rede Clap-Musa ao hospital universitário e uma transformação significativa na escolha do procedimento cirúrgico adotado pelas equipes médicas. Se até então praticamente não havia registros de Amiu — método cirúrgico mais seguro e menos invasivo, em comparação com as curetagens —, no período investigado notou-se um crescimento considerável no número desses procedimentos. E isso mesmo sem qualquer diretriz ou formalização do método como a principal opção para encerrar uma gestação, observa Baccaro. “A taxa de realizações de Amiu, entre 2017 e 2020, aumentou para 70% no Caism. E se mantém assim até hoje”, destaca o orientador.

Por outro lado, avaliou-se como alto para um hospital de referência o número de curetagens — técnica considerada ultrapassada — realizadas no início do estudo: 78%. Veiga Júnior lembra que, no Brasil, o procedimento é o segundo mais realizado em obstetrícia, ficando atrás apenas do parto. Seu problema principal, explica, está no fato de acontecer “às cegas”, quer dizer, o profissional não consegue visualizar exatamente a área total a ser raspada. Dessa forma, há o risco de ocorrer uma perfuração da parede do útero, colocando em risco não apenas a saúde da paciente, mas suas chances de engravidar futuramente. Ao final do estudo, as curetagens já tinham caído para aproximadamente 20%, número que permanece o mesmo até hoje. “Esse trabalho mostrou ser possível a escolha de um procedimento cirúrgico seguro, com menos risco e menos complicações. E que isso pode ser replicável em qualquer serviço do país. Basta a vontade de mudar”, afirma o médico.

No trabalho seguinte, o pesquisador analisou os marcadores de fatores de vulnerabilidade das mulheres que passaram por um aborto no Caism, a fim de investigar possíveis diferenças no serviço prestado a cada paciente. Utilizando o mesmo banco de dados do trabalho anterior, avaliou-se a associação entre os fatores sociais de vulnerabilidade e os cuidados pós-aborto. Para tanto, Veiga Júnior considerou a idade da paciente e seu grau de escolaridade, além de selecionar aquelas que viviam sozinhas e as que haviam sido vítimas de violência.

O médico pretendeu, dessa forma, mensurar as complicações ocorridas após o aborto e o acesso a algum método de alívio de dor e a métodos contraceptivos. E focou, também, a necessidade de essas pacientes passarem por uma curetagem. “Tanto entre as mulheres que não tinham nenhum fator de vulnerabilidade social como entre aquelas que tinham muitos fatores, não houve uma diferença significativa. Isso nos mostra que estamos no caminho certo: oferecemos os mesmos métodos para todas as pacientes, com a mesma qualidade”, relata.

A imagem mostra um homem vestindo terno cinza e camisa clara, sem gravata. Ele está sentado e parece estar explicando algo, gesticulando com as mãos enquanto fala.
Nélio Veiga Júnior, autor da tese: curetagem é o segundo procedimento obstétrico mais realizado no país, mas implica riscos para a saúde da mulher
A imagem mostra um homem vestindo terno cinza e camisa clara, sem gravata. Ele está sentado e parece estar explicando algo, gesticulando com as mãos enquanto fala.
Nélio Veiga Júnior, autor da tese: curetagem é o segundo procedimento obstétrico mais realizado no país, mas implica riscos para a saúde da mulher

Mudança de rota

O desfecho dos abortamentos foi o principal alvo da investigação no estudo derradeiro, quando Veiga Júnior se debruçou sobre o manejo das complicações do aborto e a experiência do cuidado direcionado às mulheres que precisaram de hospitalização. No Multi-Country Survey on Abortion (estudo multipaís sobre aborto), realizado pela OMS em nações latino-americanas e africanas, o médico levantou dados sobre 20 hospitais da rede pública brasileira, dos quais 10 do Distrito Federal, 7 do Maranhão e 3 de Rondônia.

Foram considerados dados sobre 1.683 mulheres que tiveram alguma complicação em decorrência do aborto, precisando de internação hospitalar. Desse total, 94,2% necessitaram de esvaziamento uterino e 66,9% passaram por curetagem uterina. “O fato de nove em cada dez mulheres que chegam a esses hospitais e são internadas devido a uma complicação pós-aborto receberem tratamento cirúrgico chama muito a atenção. Mais ainda que quase 70% passem por curetagem”, observa o professor, reforçando a urgência de adotar condutas mais seguras.

O índice de entrevistadas que apresentaram alguma complicação leve (normalmente, um pouco de sangramento) ficou em 82,5%. Na outra ponta, 3,9% passaram por alguma situação potencialmente ameaçadora à vida, como um quadro de hemorragia. No Distrito Federal, as complicações mais graves mostraram-se mais frequentes: o índice de situações potencialmente ameaçadoras chegou a 6,73%, ante 2,02% no Maranhão e 0,6% em Rondônia. No entanto, como houve um período de coleta de dados relativamente curto — três meses —, Baccaro explica não ser possível concluir que existam diferenças substanciais na qualidade da assistência.

O levantamento também oferece achados importantes sobre a dimensão emocional do problema, ao mostrar que 95% das mulheres contaram terem sido tratadas com gentileza pelos profissionais de saúde. Ainda assim, uma porcentagem alta (66%) das pacientes disse ter se sentido estressada com a situação e 10% relataram que não houve respeito por suas preferências durante a hospitalização. “Essas mulheres chegam aos hospitais de muitas formas, mas, quase sempre, enfrentam casos de violência em seu percurso”, lembra Veiga Júnior.

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