
Memórias de encarceradas revelam exclusão e resistência
Tese, que ofereceu oficinas de escrita e leitura para mulheres privadas de liberdade, sugere valorização da narrativa de sujeitos vulnerabilizados
Memórias de encarceradas revelam exclusão e resistência
Tese, que ofereceu oficinas de escrita e leitura para mulheres privadas de liberdade, sugere valorização da narrativa de sujeitos vulnerabilizados

Valendo-se da força da leitura e da escrita, a pesquisadora e professora Elaine Pereira Andreatta propõe uma reflexão sobre a necessidade de pensar uma política da memória a partir da captura e da valorização das narrativas de sujeitos subalternizados e invisibilizados, para que sejam ouvidos em suas diversas vivências e experiências. “A preservação dessas histórias pode contribuir, no futuro, para uma política institucionalizada voltada à criação de museus e espaços de memória”, defende Andreatta, cuja tese de doutorado ganhou o Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos (Pradh) 2025, na categoria Artes, Comunicação e Linguagem. Sua pesquisa baseou-se em oficinas de leitura e produção de texto envolvendo 19 mulheres do Centro de Detenção Feminino (CDF) de Manaus (AM).
“Não queremos propor um modelo de política, mas sugerir que se pense nisso, especialmente nos espaços vulnerabilizados, como presídios, que tendem a ser invisibilizados”, afirma a professora Daniela Palma, orientadora da tese da área de linguística aplicada, defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.
Outra contribuição de destaque, diz Palma, é a forma como “a tese nos faz redimensionar o grande potencial das atividades de leitura e escrita na formação de sujeitos e indivíduos de afetividade”.


A partir das narrativas das mulheres, marcadas pelo abandono e pela privação de direitos, a pesquisadora conseguiu reafirmar a força transformadora da leitura e da escrita nos efeitos de memória e de construção da subjetividade. “Memória é uma noção muito ampla e complexa. Abrange desde a capacidade fisiológica até o sentido social, tanto no plano individual quanto no coletivo”, afirma a orientadora.
Segundo Andreatta, de modo geral, as mulheres em privação de liberdade não tiveram acesso nem à leitura nem à educação. Uma vez sob a tutela do Estado, esse direito à educação deve ser compulsoriamente provido. “Por isso, esse trabalho também tem a ver com os direitos humanos”, diz a pesquisadora, que fez uma abordagem qualitativo-etnográfica do material reunido, imprimindo-lhe contornos social, político e educacional.
Ao contar suas histórias e revisitar suas memórias, essas mulheres fizeram de si mesmas um mecanismo de resistência e sobrevivência, revelando camadas de exclusão e estigmatização. “A memória permite, por meio da narração, construir uma versão de si que reflete tanto suas vulnerabilidades quanto suas táticas de resistência e esperança”, destaca Andreatta. “A partir da compreensão de si, pela própria narrativa, se dá a ruptura. Isso acaba sendo uma prática de conscientização sobre o mundo.”
As oficinas
Ao longo de três meses e meio, a pesquisadora realizou oficinas semanais com o grupo de mulheres do CDF. Seu objetivo: analisar as narrativas para reconstruir a trama da memória e os rastros identitários, considerando processos de exclusão, de estigmatização e de resistência presentes nas trajetórias de vida dessas pessoas. A dinâmica das oficinas estruturou-se aos poucos, quando ainda se usava máscara para entrar no presídio, em 2022, em meio à pandemia de covid-19.
Primeiro, em rodas de conversa, foi criado um espaço de escuta e diálogo para as mulheres. “Construiu-se uma relação de confiança, ainda que houvesse sempre uma vigilância durante as atividades.” Nem todas as mulheres concordaram com participar, mas, ao longo do tempo, algumas pediram para entrar no processo. Quem participou das atividades teve o benefício, garantido por lei, de remição parcial da pena por meio da atividade de leitura (Resolução 391/2021 do Conselho Nacional de Justiça — CNJ).
Cada participante recebia a “Caderneta da Escritora”, além de caneta, lápis e borracha, para fazer anotações livremente durante as atividades. A cada mês, Andreatta propunha a leitura de uma obra diferente. Os três livros lidos dizem respeito à mulher: Flor de gume, de Monique Malcher, A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, e Histórias do Rio Negro, de Vera do Val. A pesquisadora também trabalhou com trechos de obras de autores como Carolina Maria de Jesus, Anne Frank, Rita Lee, Malala Yousafzai, Simone de Beauvoir, João Guimarães Rosa, Conceição Evaristo e a ativista iraniana Narges Mohammadi, vencedora do Prêmio Nobel da Paz de 2023. Mohammadi liderou movimentos com o slogan “Mulher, Vida, Liberdade”.
Andreatta exibiu a minissérie Vida e a História de Madam C. J. Walker, gerando um debate sobre questões relacionadas à mulher e à raça. “Isso acabou sendo uma discussão importante”, diz a educadora, porque apenas uma das 19 participantes se referiu à questão da raça, autodefinindo-se como parda, em suas narrativas, ainda que a maior parte dessas mulheres houvesse se autodeclarado oficialmente pretas e pardas. “O silêncio disse muito sobre a racialidade. Fui instigada a pensar sobre isso”, afirma a pesquisadora, que mora há 16 anos em Manaus e que também adicionou à tese o debate sobre a Região Norte, “que muitas vezes não aparece”. Professora há mais de 20 anos e autora e ilustradora de livros infantis, a agora doutora fez vários desenhos para a tese, com o objetivo de mostrar o que viu no presídio, onde não se podia tirar fotografias.

Estigma e julgamento

Segundo Andreatta, o que a mobilizou desde o início foi sua empatia com as mulheres invisibilizadas, que experimentam a solidão e o abandono. A pesquisadora já realizava atividades educativas em presídios. “Em dia de visita no presídio feminino, quem está na espera são pessoas idosas, especialmente mulheres. Há pouquíssimos homens. Mas os homens aprisionados recebem visitas. A violência é admitida quando o homem a pratica, mas, no caso da mulher, não se permite isso, devido a uma noção machista de sociedade. São os papeis normativos relacionados aos papeis de gênero. As histórias das mulheres encarceradas são de famílias monoparentais, de mulheres criadas por mulheres, abandonadas pelos homens parceiros.”
Palma lembra que as narrativas das mulheres também subvertem a noção de privação. “Elas contam histórias sobre quando, mesmo fora da prisão, se sentiam aprisionadas”, diz a orientadora. As atividades de leitura e escrita configuraram-se como uma “possibilidade de liberdade”, em seu sentido poético. Essa dinâmica ofereceu um local onde se podia rir, expressar revolta, criticar, confraternizar e se sentir liberta. As oficinas funcionaram como uma “válvula de escape” em relação ao cotidiano de grades e algemas. “Não é uma terapia, mas acaba sendo terapêutico.”