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Dissertação revela despreparo pedagógico para lidar com crianças vindas de outros países

Imigrantes enfrentam exclusão silenciosa em sala de aula

Dissertação revela despreparo pedagógico para lidar com crianças vindas de outros países

A estigmatização da língua de origem dos estudantes e o seu isolamento foram problemas identificados na tese

Imigrantes enfrentam exclusão silenciosa em sala de aula

Dissertação revela despreparo pedagógico para lidar com crianças vindas de outros países

A imagem mostra uma criança de costas, usando camiseta azul e óculos, sentada em uma carteira escolar, segurando um lápis. Ao fundo, outra criança está desfocada, também sentada, e há um quadro verde com escrita em giz, típico de sala de aula.
A estigmatização da língua de origem dos estudantes e o seu isolamento foram problemas identificados na tese

Durante o estágio em pedagogia, Thiago Martins de Magalhães se deparou com uma cena que mudaria sua trajetória acadêmica. Em uma aula de alfabetização de uma escola pública de São Paulo, uma menina recém-chegada de Angola permanecia isolada: não recebeu livro didático, não tinha caderno nem lápis e passava o tempo brincando com a cortina do fundo da sala. “Quando perguntei à professora por que essa criança nunca participava das atividades, ouvi que a aluna não sabia abrir um livro, falar direito ou usar talheres”, relembra.

Um homem com barba e óculos usa uma camisa floral azul. Ele está em um parque à noite. O fundo está escuro e borrado, com luzes de postes.
Thiago Martins de Magalhães, autor do estudo: proposta da translinguagem reforça a importância do convívio entre línguas
Um homem com barba e óculos usa uma camisa floral azul. Ele está em um parque à noite. O fundo está escuro e borrado, com luzes de postes.
Thiago Martins de Magalhães, autor do estudo: proposta da translinguagem reforça a importância do convívio entre línguas

Essa experiência marcou profundamente o pedagogo, que decidiu dedicar seu mestrado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp ao estudo da alfabetização de alunos migrantes. Magalhães buscou determinar se e quando os referenciais linguístico-culturais dessas crianças entravam em cena como conteúdo e ferramenta de ensino. Para isso, acompanhou uma turma de alfabetização de uma escola municipal da capital paulista, onde 25% dos alunos eram filhos de migrantes, em sua maioria bolivianos.

Partindo de um estudo de caso etnográfico e da realização de entrevistas, a pesquisa descobriu que a lógica monolíngue predomina na sala de aula, promovendo a invisibilização e o apagamento da identidade dos estudantes migrantes. Essa dinâmica gera exclusão e, consequentemente, cria barreiras ao processo de alfabetização.

As atividades em sala de aula focavam predominantemente a cópia de conteúdo, o que afastava as crianças da construção autônoma do conhecimento e do diálogo, de acordo com o pesquisador.
“A cópia se tornou um mecanismo de sobrevivência, porque os alunos conseguiam entregar o que era pedido sem necessariamente compreender o conteúdo”, explica Magalhães.

A proibição implícita do uso do espanhol constituiu outro fator responsável por silenciar e mascarar as reais dificuldades dessas crianças imigrantes, segundo a dissertação. Além disso, as raras interações entre os alunos brasileiros e os imigrantes frequentemente envolviam situações conflituosas. O pedagogo relata que a organização espacial da sala, com alunos migrantes separados entre si, impedia a comunicação paralela em espanhol ou mesmo o apoio entre colegas com o mesmo idioma materno.

Translinguagem

Orientado pela professora Dayane Celestino de Almeida, especialista em linguagem e transculturalidade, o pesquisador dialogou com o campo da linguística aplicada, que busca compreender os fenômenos envolvendo o uso da língua e propor caminhos para problemas concretos, como a alfabetização em contextos multilíngues. “A sala de aula não é um espaço neutro. É preciso pensar que a língua e a cultura se constroem ali dentro. E negar a língua materna do aluno é negar também parte de sua identidade”, explica a orientadora.

Uma mulher de cabelo escuro, com uma camiseta branca e um colete preto, está em frente a uma parede com grafite colorido.
A orientadora da pesquisa, professora Dayane Celestino de Almeida: ao negar língua materna do aluno, nega-se sua identidade
Uma mulher de cabelo escuro, com uma camiseta branca e um colete preto, está em frente a uma parede com grafite colorido.
A orientadora da pesquisa, professora Dayane Celestino de Almeida: ao negar língua materna do aluno, nega-se sua identidade

Na dissertação, o pedagogo recorreu ao conceito de translinguagem, desenvolvido por pesquisadores como Ofelia García, nos Estados Unidos. Essa teoria refere-se à possibilidade de o falante recorrer a todos os seus repertórios linguísticos para se comunicar, em vez de separar rigidamente os idiomas. No contexto escolar, isso significa reconhecer o espanhol ou qualquer outra língua dos alunos migrantes como recursos legítimos para aprender português e se engajar no processo de alfabetização.

“Translinguagem não é ensinar em duas línguas de forma separada, mas permitir que elas convivam, que se entrelacem na produção de sentido”, explica o pesquisador. Almeida complementa: “Na translinguagem, não existem caixinhas separadas para cada idioma. Todas as línguas fazem parte de um único repertório que se mobiliza conforme a situação”.

Nas entrevistas realizadas durante a pesquisa, o autor identificou discursos carregados de valores e ideologias que estigmatizavam a língua de origem dos estudantes. O espanhol, por exemplo, apareceu associado à “falta de higiene” ou como obstáculo à autonomia do aluno. Simultaneamente, crianças que chegavam já alfabetizadas em outra língua tinham seu conhecimento invisibilizado porque não se expressavam em português.

Lacunas na formação

Em vista do aumento do número de estudantes migrantes nas escolas brasileiras, a pesquisa aponta lacunas preocupantes na formação dos docentes e a ausência de diretrizes específicas para essa população. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), por exemplo, não aborda a situação de crianças matriculadas no país que não falam português como primeira língua.

“Existe um documento da cidade de São Paulo sobre migrantes, mas isso é muito pouco”, conta o pesquisador. Em meio às fragilidades identificadas em diferentes âmbitos educacionais, Magalhães ressalta a importância de não atribuir exclusivamente ao professor a responsabilidade por esse quadro. “A responsabilidade não é apenas do professor, mas da sociedade, dos gestores e de toda a comunidade escolar envolvida na construção de uma escola de qualidade”, pondera.

De acordo com Almeida, a pesquisa de seu orientando contribui ainda para a área de direitos humanos ao sublinhar como práticas pedagógicas aparentemente neutras podem resultar na exclusão de grupos vulneráveis.

Perspectivas

Segundo a professora, o estudo de Magalhães representa uma contribuição pioneira para um campo ainda pouco explorado no Brasil. Não à toa, a pesquisa recebeu o reconhecimento da Unicamp como melhor dissertação da área em 2025.

Magalhães diz pretender dar continuidade ao trabalho no futuro, em um doutorado, utilizando uma metodologia de pesquisa-ação para desenvolver e aplicar pedagogias translíngues em parceria com professores da rede pública de ensino.

Entre as propostas práticas que emergem da pesquisa, está a criação de cursos de Português como Língua de Acolhimento (Plac), no contraturno escolar, voltados especificamente para crianças em fase de alfabetização.

De acordo com o pesquisador e a orientadora, esses cursos valorizam a língua materna dos alunos. Ambos concordam que a conscientização sobre a diversidade linguística pode transformar a hostilidade em curiosidade, criando um ambiente educacional no qual todas as crianças consigam se expressar plenamente e acumular conhecimento a partir de suas próprias experiências e repertórios culturais.

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