
Prostitutas desafiam imperativo da inimizade
Interlocução entre profissionais do sexo é central para organização política e cotidiana dessas mulheres
A frase “puta não tem amiga”, como uma espécie de norma a ser seguida, perpetua o que a psicóloga Adriely Clarindo-Cattani chamou de “imperativo da inimizade” no trabalho sexual. O dito serviu de ponto de partida para sua pesquisa de doutorado, que buscou inicialmente verificar como as relações de amizade entre prostitutas se constituem e se mantêm. A partir de um estudo etnográfico, realizado em boates consideradas de luxo, em casas de prostituição e em zonas de prostituição de rua em duas cidades brasileiras e duas portuguesas, a pesquisadora identificou as peculiaridades das relações de amizade forjadas nesse tipo de atividade, assim como seu papel pedagógico na formação profissional e sua importância para assegurar a sobrevivência em meio ao cotidiano de trabalho.
O estudo transcorreu no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Unicamp e também está associado ao Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu, um espaço vinculado à Coordenadoria de Centros e Núcleos Interdisciplinares de Pesquisa (Cocen) da Universidade. Pesquisadora do Pagu e professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), a antropóloga Adriana Piscitelli se encarregou da orientação do doutorado. Já o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio de uma bolsa de doutorado-sanduíche, viabilizou a realização do estudo etnográfico em Portugal.
Clarindo-Cattani, agora doutora em antropologia social, conduziu sua pesquisa em quatro cidades: Lisboa e Braga, em Portugal, e Belém (PA) e Campinas (SP), no Brasil. Para chegar às pessoas entrevistadas, valeu-se da indicação de pesquisadores, professores e trabalhadoras do sexo. Já seu ingresso em todos os locais pelos quais passou – pontos de prostituição de rua, casas de prostituição e boates consideradas de luxo – fez-se possível graças à intermediação das próprias interlocutoras. Em determinadas situações, recorda-se, precisou interromper a atividade de observação e se retirar do espaço, a pedido de prostitutas que a viam como uma potencial concorrente.
Para Piscitelli, a pesquisa, ao eleger a amizade como recorte, contribui para ampliar a reflexão, na literatura acadêmica, sobre as relações afetivas dessas trabalhadoras. “Especialmente na antropologia, os estudos sobre o trabalho sexual, quando centrados nas emoções, tratam de relações amorosas, estabelecidas com clientes ou não. O que Adriely traz de novidade é mostrar como a amizade, apesar do imperativo da inimizade, é central na organização do cotidiano e também na organização política das prostitutas”, avalia a orientadora. “Em termos metodológicos, uma das riquezas da pesquisa é contemplar recortes empíricos diferentes. Em Lisboa, por exemplo, 15 anos atrás ainda havia bordéis funcionando, mas isso tudo acabou.”
Desunião da categoria
Embora possa aparecer de diferentes formas, o conceito do imperativo da inimizade, cunhado por Clarindo-Cattani, diz respeito a uma visão recorrente. Quando propagado por proprietários ou funcionários de estabelecimentos onde essas profissionais atuam, pretende semear a desunião da classe, ou seja, plantar a desconfiança entre essas mulheres. E isso para que não estabeleçam relações e fiquem impedidas de reivindicar seu direito à refeição, folga, hora extra etc. “Nem todas as boates fornecem refeições ou têm um regime de trabalho declarado. Em muitas, as mulheres são multadas se faltarem um dia e podem até ficar alguns dias sem trabalho.”

Já entre as prostitutas de rua, o imperativo aparece em diferentes situações. “Em Belém, existe a frase ‘puta só, ladrão só’, indicando que a puta e o ladrão deveriam ser solitários porque comporiam grupos de pessoas inseridas em áreas marginais, com relação à institucionalidade legal”, destaca. Em Portugal, Clarindo-Cattani pôde notar isso na maneira como boa parte das entrevistadas estabelecia suas relações de amizade: por meio de conselhos, sobretudo. “E também nas práticas de cuidado mútuo e nas relações mais focadas em alcançar objetivos específicos. Não que não existissem sentimentos entre elas, mas o sentimento não era uma condição prioritária para que a relação acontecesse.”
Amizade na adversidade
A pesquisa de campo começou em uma boate de luxo de Campinas onde as trabalhadoras preferem ser chamadas de acompanhantes de luxo ou ainda garotas. Já na capital paraense, Clarindo-Cattani entrevistou profissionais de diferentes gerações, associadas ao Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará (Gempac). Na parada seguinte, Portugal, a estudiosa ficou três meses.
“Em Braga, fui levada pela líder do Movimento dos Trabalhadores do Sexo de Portugal a uma casa de alterne [nome usado no país europeu], um local onde não necessariamente se exerce prostituição, mas onde há trabalhadoras sexuais, que socializam com os clientes e são remuneradas com base nas bebidas que esses consomem”, conta. Em todos os lugares nos quais realizou suas observações, a psicóloga procurou se concentrar na maneira como as prostitutas se relacionavam dia após dia.
Seu estudo etnográfico revelou que as características da amizade estabelecida entre as prostitutas variavam de acordo com o local e a necessidade de cada grupo. Contudo os casos daquelas que tinham como prática comum o cuidado mútuo, assim como as relações forjadas a partir de um objetivo específico, mostraram-se mais comuns. “Essa amizade não é um sentimento, mas uma relação. As trabalhadoras sexuais reconhecem suas diferenças econômicas, raciais e geracionais. Em todos os contextos, pude observar como as diferenças não se anulam e nem ficam de lado para o estabelecimento da relação”, avalia a pesquisadora.
A possibilidade de as amizades nascerem mesmo em meio a resistências, disputas e negociações, de acordo com Clarindo-Cattani, diferencia as relações investigadas no estudo e o conceito ocidental de amizade, definido a partir dos sentimentos e das afinidades. Nesse sentido, a pesquisadora concluiu que o conflito passa a se apresentar como uma oportunidade, perdendo sua conotação negativa. “O conflito é produtivo porque permite a negociação. Se você não negocia, no trabalho sexual ou em uma situação na qual pode estar em uma posição mais vulnerável, você perde. Você pode colocar-se em risco.”
Função pedagógica
Aprender a ser prostituta é um processo informal, conduzido principalmente por outras trabalhadoras do sexo. Durante sua pesquisa, Clarindo-Cattani descobriu que as relações estudadas tinham uma função pedagógica e contribuíam para a formação de quem ingressava no trabalho sexual. A amiga mais experiente, aponta a pesquisadora, ensinará que uma prostituta não pode ser ingênua ou boba. Cabe a essa pessoa alertar, por exemplo, sobre a necessidade de se estar atenta e de desconfiar.
“Nos processos formativos, era a ‘puta’, como sinônimo de prostituta, quem aparecia nos diálogos – antes da ‘garota’ ou da ‘acompanhante’ – porque é ela quem chega primeiro, no momento da negociação. Portanto, antes de ser uma acompanhante de luxo, é preciso ser uma boa puta. Não somente para saber fazer a negociação com o cliente, mas para compreender antecipadamente se ele oferece algum risco ou não. Para compreender se essa colega de trabalho pode ser, em alguma medida, confiável ou não. A puta também é aquela que vai para o conflito. Algo que uma acompanhante de luxo, em tese, não pode fazer, porque há uma higienização da figura da puta”, conclui Clarindo-Cattani.

Prostitutas desafiam imperativo da inimizade

Interlocução entre profissionais do sexo é central para organização política e cotidiana dessas mulheres
A frase “puta não tem amiga”, como uma espécie de norma a ser seguida, perpetua o que a psicóloga Adriely Clarindo-Cattani chamou de “imperativo da inimizade” no trabalho sexual. O dito serviu de ponto de partida para sua pesquisa de doutorado, que buscou inicialmente verificar como as relações de amizade entre prostitutas se constituem e se mantêm. A partir de um estudo etnográfico, realizado em boates consideradas de luxo, em casas de prostituição e em zonas de prostituição de rua em duas cidades brasileiras e duas portuguesas, a pesquisadora identificou as peculiaridades das relações de amizade forjadas nesse tipo de atividade, assim como seu papel pedagógico na formação profissional e sua importância para assegurar a sobrevivência em meio ao cotidiano de trabalho.
O estudo transcorreu no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Unicamp e também está associado ao Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu, um espaço vinculado à Coordenadoria de Centros e Núcleos Interdisciplinares de Pesquisa (Cocen) da Universidade. Pesquisadora do Pagu e professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), a antropóloga Adriana Piscitelli se encarregou da orientação do doutorado. Já o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio de uma bolsa de doutorado-sanduíche, viabilizou a realização do estudo etnográfico em Portugal.
Clarindo-Cattani, agora doutora em antropologia social, conduziu sua pesquisa em quatro cidades: Lisboa e Braga, em Portugal, e Belém (PA) e Campinas (SP), no Brasil. Para chegar às pessoas entrevistadas, valeu-se da indicação de pesquisadores, professores e trabalhadoras do sexo. Já seu ingresso em todos os locais pelos quais passou – pontos de prostituição de rua, casas de prostituição e boates consideradas de luxo – fez-se possível graças à intermediação das próprias interlocutoras. Em determinadas situações, recorda-se, precisou interromper a atividade de observação e se retirar do espaço, a pedido de prostitutas que a viam como uma potencial concorrente.
Para Piscitelli, a pesquisa, ao eleger a amizade como recorte, contribui para ampliar a reflexão, na literatura acadêmica, sobre as relações afetivas dessas trabalhadoras. “Especialmente na antropologia, os estudos sobre o trabalho sexual, quando centrados nas emoções, tratam de relações amorosas, estabelecidas com clientes ou não. O que Adriely traz de novidade é mostrar como a amizade, apesar do imperativo da inimizade, é central na organização do cotidiano e também na organização política das prostitutas”, avalia a orientadora. “Em termos metodológicos, uma das riquezas da pesquisa é contemplar recortes empíricos diferentes. Em Lisboa, por exemplo, 15 anos atrás ainda havia bordéis funcionando, mas isso tudo acabou.”

Desunião da categoria
Embora possa aparecer de diferentes formas, o conceito do imperativo da inimizade, cunhado por Clarindo-Cattani, diz respeito a uma visão recorrente. Quando propagado por proprietários ou funcionários de estabelecimentos onde essas profissionais atuam, pretende semear a desunião da classe, ou seja, plantar a desconfiança entre essas mulheres. E isso para que não estabeleçam relações e fiquem impedidas de reivindicar seu direito à refeição, folga, hora extra etc. “Nem todas as boates fornecem refeições ou têm um regime de trabalho declarado. Em muitas, as mulheres são multadas se faltarem um dia e podem até ficar alguns dias sem trabalho.”
Já entre as prostitutas de rua, o imperativo aparece em diferentes situações. “Em Belém, existe a frase ‘puta só, ladrão só’, indicando que a puta e o ladrão deveriam ser solitários porque comporiam grupos de pessoas inseridas em áreas marginais, com relação à institucionalidade legal”, destaca. Em Portugal, Clarindo-Cattani pôde notar isso na maneira como boa parte das entrevistadas estabelecia suas relações de amizade: por meio de conselhos, sobretudo. “E também nas práticas de cuidado mútuo e nas relações mais focadas em alcançar objetivos específicos. Não que não existissem sentimentos entre elas, mas o sentimento não era uma condição prioritária para que a relação acontecesse.”
Amizade na adversidade
A pesquisa de campo começou em uma boate de luxo de Campinas onde as trabalhadoras preferem ser chamadas de acompanhantes de luxo ou ainda garotas. Já na capital paraense, Clarindo-Cattani entrevistou profissionais de diferentes gerações, associadas ao Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará (Gempac). Na parada seguinte, Portugal, a estudiosa ficou três meses.
“Em Braga, fui levada pela líder do Movimento dos Trabalhadores do Sexo de Portugal a uma casa de alterne [nome usado no país europeu], um local onde não necessariamente se exerce prostituição, mas onde há trabalhadoras sexuais, que socializam com os clientes e são remuneradas com base nas bebidas que esses consomem”, conta. Em todos os lugares nos quais realizou suas observações, a psicóloga procurou se concentrar na maneira como as prostitutas se relacionavam dia após dia.
Seu estudo etnográfico revelou que as características da amizade estabelecida entre as prostitutas variavam de acordo com o local e a necessidade de cada grupo. Contudo os casos daquelas que tinham como prática comum o cuidado mútuo, assim como as relações forjadas a partir de um objetivo específico, mostraram-se mais comuns. “Essa amizade não é um sentimento, mas uma relação. As trabalhadoras sexuais reconhecem suas diferenças econômicas, raciais e geracionais. Em todos os contextos, pude observar como as diferenças não se anulam e nem ficam de lado para o estabelecimento da relação”, avalia a pesquisadora.
A possibilidade de as amizades nascerem mesmo em meio a resistências, disputas e negociações, de acordo com Clarindo-Cattani, diferencia as relações investigadas no estudo e o conceito ocidental de amizade, definido a partir dos sentimentos e das afinidades. Nesse sentido, a pesquisadora concluiu que o conflito passa a se apresentar como uma oportunidade, perdendo sua conotação negativa. “O conflito é produtivo porque permite a negociação. Se você não negocia, no trabalho sexual ou em uma situação na qual pode estar em uma posição mais vulnerável, você perde. Você pode colocar-se em risco.”
Função pedagógica
Aprender a ser prostituta é um processo informal, conduzido principalmente por outras trabalhadoras do sexo. Durante sua pesquisa, Clarindo-Cattani descobriu que as relações estudadas tinham uma função pedagógica e contribuíam para a formação de quem ingressava no trabalho sexual. A amiga mais experiente, aponta a pesquisadora, ensinará que uma prostituta não pode ser ingênua ou boba. Cabe a essa pessoa alertar, por exemplo, sobre a necessidade de se estar atenta e de desconfiar.
“Nos processos formativos, era a ‘puta’, como sinônimo de prostituta, quem aparecia nos diálogos – antes da ‘garota’ ou da ‘acompanhante’ – porque é ela quem chega primeiro, no momento da negociação. Portanto, antes de ser uma acompanhante de luxo, é preciso ser uma boa puta. Não somente para saber fazer a negociação com o cliente, mas para compreender antecipadamente se ele oferece algum risco ou não. Para compreender se essa colega de trabalho pode ser, em alguma medida, confiável ou não. A puta também é aquela que vai para o conflito. Algo que uma acompanhante de luxo, em tese, não pode fazer, porque há uma higienização da figura da puta”, conclui Clarindo-Cattani.