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Democracia tutelada pela elite

Democracia tutelada pela elite

As eleições e as reformas da Primeira República abriram caminho para a consolidação da Justiça Eleitoral no país

Comemoração da posse de Prudente de Morais, primeiro presidente civil brasileiro, em 15 de novembro de 1894: política nacional é influenciada por militares desde o Império
Comemoração da posse de Prudente de Morais, primeiro presidente civil brasileiro, em 15 de novembro de 1894: política nacional é influenciada por militares desde o Império

Sem intenções democráticas, as elites econômicas e político-partidárias da Primeira República (1889-1930) pavimentaram o caminho para a criação da Justiça Eleitoral, em 1932. Segundo o cientista social Jean Lucas Macedo Fernandes, esse representa um marco na construção da república democrática representativa do Brasil. Sob a perspectiva do funcionamento dos arranjos realizados pelos representantes políticos da época – todos oligarcas –, Fernandes analisou em sua tese, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, as disputas de poder entre as elites, que se davam em torno do controle dos processos eleitorais e, por conseguinte, da máquina pública. A institucionalização do processo democrático, pela via das eleições, contribuiu para o desenvolvimento da democracia representativa no país.

A pesquisa joga luz sobre esse caminho tortuoso, não linear e aberto aos inimigos que caracteriza a implementação e a defesa da democracia. O pesquisador mostra que nem só de episódios com más consequências para a política nacional viveu a Primeira República. Ao contrário disso, a tese aponta que a própria disputa entre as elites, naquele momento fragmentadas nos Estados, calçou institucionalmente a república democrática. “A democracia nasceu sob a tutela das elites no Brasil. O processo eleitoral se transformou em um mecanismo de chancela dessa representação”, diz o cientista social.

O papel das elites em relação à democracia, portanto, é contraditório porque, ao mesmo tempo em que trabalhavam em favor de si mesmas e de outros setores da sociedade, essas elites também se valeram da criação de instituições democráticas a fim de controlar a política. “Mas esses eram grupos antipopulares, que excluíam as massas”, diz Fernandes. Naquele momento, a população vivia predominantemente na zona rural e o voto não constava entre os direitos das mulheres nem dos analfabetos.

Entre a Proclamação da República, em 1889, e o fim de sua primeira fase, em 1930, ocorreram 39 eleições – 11 para presidente, 14 para a Câmara dos Deputados e 14 para o Senado. O processo eleitoral já acontecia nos níveis municipal, estadual e federal, mas não havia vereador, prefeito, deputado, governador ou presidente de origem popular.

Jean Lucas Fernandes, autor do estudo: disputas de poder marcaram o início da democracia no Brasil
Jean Lucas Fernandes, autor do estudo: disputas de poder marcaram o início da democracia no Brasil
Jean Lucas Fernandes, autor do estudo: disputas de poder marcaram o início da democracia no Brasil
Jean Lucas Fernandes, autor do estudo: disputas de poder marcaram o início da democracia no Brasil

Reformas eleitorais

Nesse mesmo período de mais de 40 anos, as elites em disputa promoveram duas importantes reformas eleitorais (em 1904 e em 1916) e uma reforma constitucional (1926). O objetivo declarado das reformas, a moralização das eleições e o combate às fraudes, servia à verdadeira intenção das elites: regular e controlar o processo eleitoral de modo a torná-lo mais previsível.

Os próprios representantes das elites, que chancelavam a votação, a apuração e os resultados da comissão verificadora das eleições, disputavam as vagas da Câmara dos Deputados. Porém as duas reformas eleitorais, especialmente a de 1916, tiraram, aos poucos, o papel de chancela do Poder Legislativo nas eleições e transferiram-no para um Judiciário então nascente. Antes das reformas, havia a figura dos juízes regionais, mas ainda não existia a Justiça Eleitoral. Por meio da presença do Judiciário nas eleições, mesmo antes da criação da Justiça Eleitoral, a democracia ganhou espaço. De acordo com a orientadora do estudo, Rachel Meneguello, a tese apresenta uma imagem da Primeira República praticamente inexistente nas referências da literatura clássica sobre o período. E faz isso ao destacar aspectos dos processos eleitorais de então, da dinâmica de institucionalização e sobretudo da criação da Justiça Eleitoral, em 1932.

Ebulição social

A Primeira República não era nem um pouco tranquila. No final do século XIX e início do XX, já se estabelecia no mundo ocidental a democracia moderna, com partidos e uma ideia de representação política, ainda que houvesse distintas realidades em cada país. No Brasil, em meio a um contexto de ebulição social, com movimentos trabalhistas e a consolidação de alguns setores econômicos a partir do avanço da imigração, o arranjo socioeconômico continuava a deixar de lado grande parte da população. E a sociedade brasileira como um todo começava a solicitar espaço no mundo da política.

Havia também um debate intelectual que sustentava as mobilizações institucionais. O movimento de trabalhadores se intensificava, como aconteceu nos anos 1910, na Europa. O Partido Comunista do Brasil (PCB) nasceu em 1922, mesmo ano em que começava o governo de Arthur Bernardes (1922-1926), marcado pela violência, por um estado de sítio e pela repressão às greves. Um período também marcado por várias mobilizações populares contrárias à política partidária elitista.

A professora Rachel Meneguello, que orientou a tese: pesquisa traz uma nova luz sobre os primeiros anos da República
A professora Rachel Meneguello, que orientou a tese: pesquisa traz uma nova luz sobre os primeiros anos da República
A professora Rachel Meneguello, que orientou a tese: pesquisa traz uma nova luz sobre os primeiros anos da República
A professora Rachel Meneguello, que orientou a tese: pesquisa traz uma nova luz sobre os primeiros anos da República

Os militares desde o início

Dentro desse cenário, destaca-se o papel dos militares na política nacional. Membros das Forças Armadas comandaram o país depois da Declaração da República, inicialmente com o marechal Deodoro da Fonseca e, depois, com o também marechal Floriano Peixoto, os dois primeiros presidentes do Brasil. O primeiro presidente civil eleito pelo voto direto, Prudente de Moraes, ficou no poder de 1894 a 1898. Em 1910, os militares voltaram à cena, com Hermes da Fonseca, sobrinho de Deodoro, que disputou as eleições contra Ruy Barbosa. “Nós temos na política brasileira democrática uma forte influência dos militares que advém já desse momento e do próprio Império”, observou Meneguello.

A discussão sobre a presença dos militares no poder foi pautada por Ruy Barbosa durante a sua campanha civilista, na eleição de 1910, a mais disputada da Primeira República. Mas Ruy Barbosa tinha suas contradições, diz Fernandes. O político fazia parte das elites ao mesmo tempo em que ajudava a provocar a moralização e a pensar uma representação menos exclusivista.

“Nossa democracia ainda é muito dependente dessa chancela dada por grupos das elites políticas que estão no poder há muito tempo”, avalia o pesquisador. “Nossa cultura política é marcada por práticas coronelistas, fora das instituições, e por uma violência simbólica em relação a eleitores menos escolarizados, sobretudo de regiões mais afastadas de centros urbanos.”

Mais recentemente, a força das instituições públicas salvaguardou a democracia em meio a várias ameaças – desde as contestações sobre as urnas eletrônicas até a tentativa de golpe de janeiro de 2023 –, afirma a orientadora. “Estamos organizados institucionalmente, mas não pode ser só isso. As desigualdades ainda imperam. A falta de direitos cria mobilizações e demandas de que a democracia não dá conta. Assim como também não dá conta dos interesses das elites, cada vez mais amplos.”

“A nossa democracia teve uma trajetória tortuosa. Em alguns momentos, a discussão tornou-se tensa e isso resultou em um golpe, como em 1964 – golpe esse realizado para impedir a tentativa de ampliar o papel das massas nas decisões políticas. A democracia deve ser compreendida enquanto um processo não linear e sujeito a reveses. Não se trata de uma via de mão única”, diz Fernandes. “A contradição da democracia é você ver discursos antidemocráticos ganhando força. Quando vemos vários movimentos de direita crescerem no mundo inteiro, isso é porque as democracias estão abertas aos seus inimigos o tempo todo”, complementa Meneguello.

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