Alcatrazes revela riqueza natural escondida
Grupo de biólogos da Unicamp desvenda os mistérios da flora encontrada nos costões da ‘Galápagos Brasileira’

Acerca de 35 quilômetros da costa de São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, um paraíso natural intocado povoa o imaginário dos moradores locais e desperta a atenção de quem frequenta as famosas praias de Maresias e Juquehy. Com 67,4 mil hectares, o Refúgio de Vida Silvestre do Arquipélago de Alcatrazes é a maior unidade de conservação marinha de proteção integral da Região Sul e da Região Sudeste e a segunda maior do país, atrás apenas do Parque Nacional dos Abrolhos, na Bahia. O espaço de proteção ambiental compreende cinco ilhas principais – a de Alcatrazes, a maior, possui cerca de 190 hectares (o equivalente a 266 campos de futebol) – e todo o entorno marinho.


Lar de uma biodiversidade exuberante, seu grande potencial para pesquisas científicas rendeu-lhe a alcunha de “Galápagos Brasileira”, uma referência ao arquipélago estudado por Charles Darwin, considerado o principal laboratório vivo de biologia do mundo. Alcatrazes é reconhecida por sua importância como local de reprodução de aves marinhas, em especial o grande ninhal de fragatas localizado na face da ilha principal voltada para o continente. Segundo o plano de manejo da área, elaborado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio), a população estimada de fragatas ultrapassa os 10 mil indivíduos, que vivem em equilíbrio com outras espécies de répteis, anfíbios, insetos e aracnídeos, sem contar a fauna marinha.
Um grupo de pesquisadores do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp trabalha para desvendar uma camada ainda pouco explorada do arquipélago: a flora que habita os costões das ilhas. A vegetação desses locais revela-se intrigante não apenas por sua alta especificidade – segundo os pesquisadores, coordenados pelo professor Fábio Pinheiro, há entre 260 e 300 espécies vegetais endêmicas só na Ilha de Alcatrazes –, mas também devido às espécies ainda não identificadas, seja pelo fato de os estudos do tipo contarem com menos visibilidade, seja em decorrência das dificuldades de acesso ao local. Até o momento, o grupo descobriu duas novas espécies de bromélia e redescobriu uma espécie de begônia que havia mais de cem anos não era registrada.
As pesquisas desenvolvidas no local são essenciais para fortalecer o trabalho dos órgãos de preservação ambiental e contribuem para manter vivas espécies que narram parte da história natural da região. Espécies essas que, devido ao seu isolamento e caráter único, já se encontram, quando identificadas, sob ameaça de extinção.
Isolada por natureza
Formações geológicas como Alcatrazes são extremamente antigas, remontando ao período pré-cambriano, que começou com a própria formação do planeta, há cerca de 4,5 bilhões de anos, e durou até cerca de 540 milhões de anos atrás. Em alemão, recebem o nome de Inselbergs, termo que significa “montanha-ilha”, montes formados por grandes rochas únicas, geralmente compostas por granito, que se destacam no meio da paisagem plana. O Morro do Corcovado, onde está a estátua do Cristo Redentor, e o da Urca, que compõe o Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro, oferecem exemplos famosos de Inselbergs. “Trata-se de formações anteriores à separação dos continentes, anteriores à origem das plantas terrestres”, explica Pinheiro. “Costumamos dizer que os Inselbergs não apareceram. Eles sempre estiveram lá.”
Mesmo que localizados em áreas próximas a florestas, as características físicas dos Inselbergs faz com que a biodiversidade encontrada neles distinga-se da de seus arredores. Isso ocorre devido a sua altitude, às características do solo rochoso e à dificuldade de acesso de animais, como polinizadores e predadores da flora local, fazendo com que se tornem habitats singulares. No caso dos Inselbergs marítimos, tanto o isolamento quanto as condições ambientais tornam-se ainda mais marcantes. “Eles [os Inselbergs marítimos] sofrem muito com o vento, com a alta salinidade e com o próprio isolamento”, afirma Gabriel Sabino, doutorando integrante do grupo.


Essas características interferem nos fatores que condicionam a evolução das espécies vegetais de locais como Alcatrazes. Pinheiro exemplifica com uma comparação entre a ilha e o Morro da Urca, onde o acesso de pequenos animais, como saguis e insetos variados, é facilitado pela proximidade com o solo. “Nossa hipótese é que, na ilha, haja um relaxamento maior dos recursos de defesa que as plantas desenvolvem contra predadores, como espinhos e folhas venenosas”, comenta. Para dimensionar o quanto o isolamento modificou as espécies da ilha, foi necessário olhar para as marcas que a passagem do tempo deixou na estrutura filogenética do local, ou seja, como as espécies encontradas se relacionaram ao longo de sua evolução. Isso tornou-se possível graças a um aspecto interessante da ilha: a formação rochosa já esteve ligada ao continente.
Até 20 mil a 15 mil anos atrás, durante o último ciclo glacial do planeta, o nível do mar ficava entre 120 e 150 metros mais baixo do que hoje e a linha da praia adentrava até 500 quilômetros no atual oceano. Assim, animais e seres humanos pré-históricos conseguiam chegar lá com suas próprias pernas. Depois da elevação do nível das águas, veio o isolamento e o morro transformou-se em uma ilha. Segundo os pesquisadores, o processo ocorreu várias vezes ao longo da história, alternando períodos de conexão e de isolamento. Isso significa ser possível realizar comparações entre a flora de Alcatrazes e a de Inselbergs continentais. E o grupo de pesquisadores fez justamente isso em um estudo publicado no Journal of Vegetation Science.
Ilha de surpresas
Foram estudados 15 Inselbergs da região da Mata Atlântica, seis marítimos – entre os quais as ilhas do Arquipélago de Alcatrazes, a Ilha de Queimada Grande, localizada entre Itanhaém e Peruíbe, no litoral sul de São Paulo, e a Ilha das Cagarras, próxima à praia de Ipanema, no Rio de Janeiro – e nove continentais, como alguns morros também do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e do Espírito Santo. A partir do levantamento de dados florísticos e filogenéticos de plantas encontradas nos locais, os pesquisadores conseguem projetar o quanto as espécies são aparentadas entre si, dentro de um mesmo ambiente, e se as ilhas e o continente compartilham espécies.
Segundo a publicação, registraram-se 753 espécies de plantas no total, com destaque para as famílias das orquídeas (Orchidaceae); das bromélias (Bromeliaceae); das asterácias (Asteraceae), da qual fazem parte o girassol e o crisântemo, por exemplo; e das fabáceas (Fabaceae), que dão frutos em forma de vagens. Chama a atenção o fato de apenas 11% das espécies aparecerem nos dois tipos de Inselbergs, enquanto 72% habitavam apenas um dos dois ambientes. Os biólogos destacam que, apesar do alto grau de singularidade, conseguiram verificar semelhanças dentro do grupo dos Inselbergs marítimos e outras dentro do grupo dos continentais, mesmo que a distância entre algumas ilhas e alguns morros terrestres fosse menor. “Geralmente, o que se espera é que quem está mais próximo seja mais semelhante. Mas não é o que ocorre”, aponta Vitor Kamimura, pós-doutorando e também membro da equipe de pesquisadores. Kamimura cita o exemplo da Ilha das Cagarras, distante apenas 5 quilômetros da praia, mas cuja flora guarda mais semelhanças com a de Alcatrazes do que com a do próprio Morro da Urca. Este possui mais semelhanças com os Inselbergs de Minas Gerais.


não era registrada havia mais de cem ano
Outro dado importante verificado: a estrutura filogenética dos Inselbergs marítimos revelou-se mais agrupada, quer dizer, as espécies constituíram mais relações entre si ao longo de sua evolução, tornando-se mais aparentadas do que as espécies do continente. Kamimura explica que isso ocorre porque o isolamento permite às espécies dispensarem a competição entre si, favorecendo a coexistência de plantas com funções e características mais similares. “Elas precisam competir mais com o ambiente extremo do que entre si”, detalha. A Ilha de Alcatrazes foi o Inselberg marítimo estudado com o maior número de espécies registradas, entre 260 e 300 espécies.

Esse aspecto também se repete quando comparadas espécies que coexistem nas ilhas e no continente. Raphael Silva, mestrando e membro da equipe, fez essa análise com exemplares de aroeira-pimenteira (Schinus terebinthifolia), de pitanga-preta (Eugenia sulcata) e de Chiococca alba, planta da família Rubiaceae parente do café. Por conta do período de conexão durante o último glaciar, essas espécies ocorrem nos dois ambientes. Porém, devido ao isolamento, houve um fluxo de informações genéticas maior entre as espécies da ilha quando comparadas com as do continente. “O efeito da elevação do nível do mar foi muito maior nessas espécies”, diz Silva.

Estudar a flora de Alcatrazes oferece uma experiência única para os pesquisadores da Unicamp. “Estar na ilha faz com que a gente se sinta como exploradores, verdadeiros naturalistas”, comenta Sabino. Ao longo dos estudos, o grupo descobriu duas novas bromélias endêmicas. A Tillandsia alcatrazensis recebeu esse nome em homenagem ao arquipélago, e a Tillandsia uiraretama foi batizada em referência à forma como os povos Tupi chamavam o local: “uira”, que significa “ave”, e “retama”, “lugar de”. Segundo o pesquisador, ambas as bromélias possuem flores maiores e cores diferentes da espécie continental mais próxima, a Tillandsia geminiflora. Os cientistas também ficaram surpresos ao redescobrirem a Begonia larorum, uma espécie de begônia registrada pela última vez há 104 anos e encontrada, agora, em um ponto de difícil acesso. “Ela [a begônia] é como um símbolo da ilha e de nosso trabalho de exploração”, afirma o pesquisador, notando que outras plantas identificadas podem ainda ser descritas como novas espécies, entre elas um antúrio e uma da família Asteraceae, a mesma das margaridas.
Desvendar a flora de Alcatrazes, porém, representa apenas uma das fronteiras da pesquisa. A aluna de iniciação científica Giovana Narezi, por exemplo, estuda os fungos encontrados nas raízes de uma espécie de orquídea da ilha. Narezi também identificou uma diversidade maior entre os espécimes encontrados na ilha quando comparados com os do continente. “Em Alcatrazes, encontramos cerca de 40 gêneros de fungos por planta, enquanto no continente foram apenas de 20 a 30 gêneros”, detalha. Outra área importante para os pesquisadores diz respeito aos polinizadores que habitam o local e às estratégias usadas pelas flores para atraí-los. “Quanto mais estudamos, mais percebemos que ainda sabemos muito pouco sobre um sistema tão peculiar”, reflete Sabino.
Refúgio preservado
Os primeiros estudos científicos sobre o Arquipélago de Alcatrazes datam do início do século 20, com missões de exploração comandadas pela então Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo e pelo pesquisador alemão Hermann Luederwaldt, um dos pioneiros da botânica e então membro do Museu Paulista, hoje ligado à Universidade de São Paulo (USP). O local permaneceu sem receber grande atenção da comunidade científica até os anos 1980, quando as ilhas passaram a ser utilizadas pela Marinha brasileira para treinamento de tiro. Os riscos envolvidos nas operações mobilizaram uma série de estudos para subsidiar os esforços em defesa da criação de um parque nacional, um movimento que ganhou força em 2004, após os exercícios militares terem provocado um incêndio no local. Depois de negociações com a Marinha, em 2016 o local se tornou um refúgio de vida silvestre (Revis), sob proteção do ICMBio.
“As pesquisas do grupo do professor Fábio são bastante importantes, pois nos trazem informações novas a respeito das espécies que não haviam sido descritas ainda ou sobre espécies ameaçadas”, avalia Thayná Mello, bióloga e analista ambiental do ICMBio. Mello conta que o instituto mantém uma lista de temas de pesquisa prioritários para aperfeiçoar o manejo das ilhas, como os efeitos das mudanças climáticas sobre a biodiversidade local, os invertebrados terrestres e as espécies invasoras. Isso mostra-se importante para evitar que as espécies do arquipélago entrem em risco de extinção. Por serem únicas e altamente agrupadas, um desequilíbrio mínimo pode ter efeitos graves. “Com o trabalho de conservação, conseguimos fazer com que várias espécies passassem da classificação de criticamente ameaçados para a de vulneráveis”, afirma.
Hoje o acesso às ilhas é controlado, e as visitas turísticas ocorrem apenas no entorno marítimo. Só profissionais do ICMBio e pesquisadores podem desembarcar nas ilhas. Já os exercícios da Marinha ficaram concentrados na Ilha da Sapata, menor e com menos biodiversidade do que Alcatrazes, e em períodos específicos do ano. Para Mello, mais pesquisadores precisam se engajar nos estudos sobre a ilha, fortalecendo sua preservação. “Além da visão científica, é preciso uma boa dose de coragem e disposição para trabalhar na ilha. Os pesquisadores da Unicamp têm muito disso”, reconhece a bióloga.