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Da presença cênica à memória de corpo presente

Lume

Atores do Lume participam de gravação na Universidade de Ghent, na Bélgica: tecnologia de captura de movimento

Grupo Lume vai sistematizar práticas pedagógicas por meio de projeto

O corpo em cena tem nele inscrita a sua memória. É no encontro do corpo-arquivo com o corpo-observador – na relação entre artista e espectador – que acontece a arte cênica, a arte do encontro, a arte presente. Tomando o conceito de presença como alicerce, o Lume (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp) enlaça três processos – o pedagógico, o criativo e o de memória – em um projeto de pesquisa temático da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

O projeto Pedagogias, Processos e Arquivos da Presença parte das vivências práticas das quase quatro décadas do Lume – a se completarem em 2025 – para trabalhar nessas três frentes. A acadêmica fará a sistematização da metodologia de ensino. A criativa realiza uma pesquisa de campo para a elaboração de novas ações artísticas ou novos espetáculos. E a de arquivamento performativo se faz em parceria com a Universidade de Ghent (Bélgica), consistindo na gravação das performances do grupo com o uso da tecnologia de captura de movimento (mocap, no acrônimo em inglês), a ser transposta para um modelo digital. A primeira fase de gravação já foi realizada, incluindo a fase de registro vocal.

“Essa é a primeira vez que lançamos um olhar mais específico e minucioso sobre as práticas pedagógicas, a principal vertente do projeto temático. Mas tudo está muito interligado. Os processos artísticos geram processos que vão ser transmitidos e entram nesse processo pedagógico”, explica Ana Cristina Colla, atriz e pesquisadora integrante do Lume há mais de 30 anos. “Trata-se de uma pedagogia impressa no corpo, porque a nossa pesquisa está no nosso corpo.”

O núcleo é formado por seis artistas-pesquisadores: a citada Colla, Carlos Simioni, Jesser de Souza, Raquel Scotti Hirson, Renato Ferracini e Ricardo Puccetti. Além deles, participa também a artista colaboradora Naomi Silman. A equipe inclui ainda profissionais de recursos humanos, administração, assessoria, produção audiovisual, arquivo e apoio à pesquisa e extensão.

Aprovado em 2023, esse é o terceiro projeto temático Fapesp do Lume, que tem até 2027 para concluí-lo. A ação ocorre sob a coordenação de Ferracini, Colla e Hirson. “Somos um núcleo que pesquisa teatro e nosso foco é a atuação, particularmente a questão da presença, que é um conceito muito complexo de se trabalhar”, especifica Ferracini. “É na relação entre todas essas complexidades históricas, conceituais, artísticas e poéticas que nós recortamos nossos projetos. O Lume é esse grande lugar de encontros e de pesquisa dentro desse campo.”

Espera-se que todo o projeto temático resulte em um novo livro, que pode ser o 12º do grupo, além de artigos e outras formas de transmissão de conhecimento. “O Lume é um grande exportador”, diz Ferracini. “Exportamos uma tecnologia humana e poética.” Na visão de Colla, para além de uma forma especial de criação, o Lume tem um modo de viver e de entender a vida a partir de suas criações e dos coletivos.

A peça Kintsugi, 100 memórias (2019), diz Colla, é um exemplo de como o grupo faz seu trabalho de campo e pesquisa e de que maneira poetisa esse trabalho. “São cem objetos de memórias, sejam elas pessoais, da história do grupo, da história do país ou das pessoas que encontramos em nosso caminho na pesquisa de campo sobre Alzheimer. Esse é um modo também de construir essa dramaturgia estilhaçada, que o espetáculo sintetiza.” Isso explica a necessidade de fazer o enlace dos processos, na visão de Hirson. “Temos que estar em cena, em contato com as pessoas. É ali que a gente entende o que está fazendo, para quem está fazendo e o que isso está gerando.”

Processos pedagógicos

Na sistematização da pedagogia, os pesquisadores do Lume incluíram a participação de artistas de outras universidades e outros países. “O olhar sobre as nossas pedagogias não será somente o nosso olhar sobre nós mesmos. O projeto temático nos permite convidar outros profissionais, que já começaram a vir em fevereiro de 2024, na imersão anual da Jornada Internacional de Atuação e Presença, que realizamos desde 2010. Eles participam de nossos cursos, que duram em média nove dias, acompanham nossas práticas, para depois escreverem a partir de seus referenciais”, conta Hirson. “É no encontro que as coisas acontecem e se potencializam”, completa Colla.

Durante o evento, o grupo trabalha o conceito de “aprendizagem inventiva”, uma espécie de conhecimento corpóreo criado na relação afetiva do encontro. A proposta é a cocriação com o “outro” na geração de um corpo/pensamento. Os pesquisadores que chegam para observar os cursos são de diversas universidades e de diversos países, entre os quais Bélgica, Portugal, Inglaterra, Cuba, Costa Rica. Também participam artistas de outros Estados brasileiros, como Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul. Os pesquisadores do Lume, complementarmente, dão cursos nas universidades parceiras.

“Além do registro teórico e escrito, nós acreditamos muito nessa experiência corpo a corpo, de troca. Todos esses anos que recebemos centenas de pessoas que passam por aqui, eles são nossos propagadores. Essa é uma espécie de continuidade e reelaboração”, afirma Colla. O processo inclui ainda entrevistas com os alunos dos cursos.

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Cenas da peça Kintsugi, 100 memórias, apresentada pelo Lume na sede do grupo, no distrito de Barão Geraldo: carga poética em trabalho de campo

Para Ferracini, o objetivo não é realizar uma pesquisa que potencialize somente o próprio corpo. “Essa questão pedagógica está muito baseada na potencialização desse outro corpo, que vem nos procurar, como artista ou espectador.” De acordo com os pesquisadores, a metodologia do Lume é dinâmica e está em constante atualização. “Talvez não sejamos únicos, mas nosso processo é singular.”

Os exercícios próprios para atuação também passam por transformações. “Desenvolvemos ao longo dos anos um treinamento que é próprio de ator e atriz. Muitos deles seguem, mas mudaram, de acordo com a nossa experiência, a maneira de ver o trabalho e de entender o que nos importa”, diz Hirson, que vê uma junção entre os processos criativo e pedagógico. “De alguma maneira, a gente cria uma obra artística, mas ela é documental, no sentido de que ela pode contar sobre o processo criativo, de pesquisa.”

Na prática artística, portanto, há também muita renovação, mas a estrutura se mantém. “A peça Café com Queijo [1999], por exemplo, não mudou enquanto estrutura do espetáculo, mas vem amadurecendo e envelhecendo junto com os nossos corpos. É o mesmo que acontece com os cursos, porque fazemos junto com os alunos.”

De acordo com Colla, essa proposta pedagógica tem sido costurada ao longo do tempo. “Compartilhamos isso em nossos livros, nas demonstrações de trabalho, nas viagens, nas assessorias ou nos festivais, mas ainda não tínhamos feito nada específico sobre esse processo pedagógico e sobre o que tem de particular nesse modo de transmissão que o Lume trabalha.” A prática pedagógica acontece para além de quatro paredes. “Trata-se de particularidades sobre as quais nós queremos falar”, diz a atriz, reforçando uma premissa fundante do Lume de que cada experiência deve ser compartilhada. Esse tem sido um dos pilares do grupo, que passará agora por um período de análise e sistematização.

Investigação poética

No Lume, os processos são entendidos como investigações poéticas, diz Ferracini. Para a segunda vertente do projeto Fapesp, o grupo realiza uma investigação desse tipo sobre as invisibilidades da morte. “Os espetáculos do Lume são assim. Nunca montamos uma dramaturgia pronta, um texto teatral. Isso é sempre resultado de uma pesquisa, em vários níveis, dentro ou fora de sala de aula”, afirma Colla.

Ainda em início de trabalho de campo, nessa criação específica sobre a invisibilidade da morte, os atores-pesquisadores estão ouvindo pacientes e profissionais da saúde do Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp e do Serviço de Assistência Domiciliar (SAD) da prefeitura de Campinas. “O que nos interessa não é a morte em si, mas justamente a potência de vida que acomete essas pessoas nesse momento, essa intensificação”, afirma Ferracini.

“Na montagem de Café com queijo, fomos ao Tocantins, a Goiás, ao Amazonas e a todo o interior do Brasil. Fizemos vários trabalhos de campo para nossas criações artísticas. Quando estamos em campo, não temos certeza do que vai acontecer. Só sabemos que isso resultará em um processo criativo”, explica Hirson.

Arquivamento performativo

A terceira linha do projeto é o arquivamento performativo do corpo, que está sendo realizado junto à Universidade de Ghent, mais especificamente com o Department of Art, Music and Theatre Sciences e o Institute for Psychoacoustics and Electronic Music, na Bélgica. Em um superlaboratório, os atores-pesquisadores do Lume tiveram seus movimentos gravados a partir da captação por censores. A tecnologia mocap vai levar os movimentos para a realidade virtual, o que permitirá que sejam reproduzidos em 3D.

Na primeira etapa, os atores-pesquisadores do Lume ficaram na Bélgica por 15 dias, durante o mês de março. “Gravamos muita coisa”, diz Ferracini. “Fizemos desde exercícios técnicos até ações físicas que cada ator tem no seu repertório e que normalmente vem do trabalho de treino ou de espetáculos”, lembra Colla. “Gravamos também ações vocais faladas e cantadas, porque temos um grande repertório de canções”, acrescenta Hirson.

A Universidade de Ghent também convidou atores e atrizes do Odin Teatret, da Dinamarca, uma referência mundial quando se trata das artes cênicas, para gravar em mocap. O material bruto das gravações está na Bélgica, para análises e recriações. O Lume vai retornar ao país europeu para realizar novas gravações e acompanhar o processo de arquivamento. Antes mesmo de sua conclusão, o projeto já teve desdobramentos com propostas para uma nova etapa de pesquisa, na qual o foco devem ser as canções e as sonoridades.

Os pesquisadores acreditam que essas ferramentas tecnológicas tornam mais potentes o material arquivado, se compararmos esse material a um arquivo simples de vídeo ou de texto. “Temos um grande arquivo de fotografias e vídeos do nosso trabalho, mas essas imagens em mocap vão permitir a interação. O receptor vai se mover, porque a própria realidade virtual coloca o sujeito em outro lugar”, antevê Hirson.

A atriz Ana Cristina Colla: “É no encontro que as coisas acontecem e se potencializam”; Renato Ferracini: “A metodologia do Lume é dinâmica e está em constante atualização”; Raquel Scotti Hirson: “Temos que estar em cena, em contato com as pessoas”
Da esq. para a dir. , a atriz Ana Cristina Colla: “É no encontro que as coisas acontecem e se potencializam”; Renato Ferracini: “A metodologia do Lume é dinâmica e está em constante atualização”; Raquel Scotti Hirson: “Temos que estar em cena, em contato com as pessoas”

Aniversário

Criado em 1985 pelo ator Luís Otávio Burnier, que deixou sua marca na história do teatro brasileiro, o Lume nasceu vinculado ao Instituto de Artes (IA) da Unicamp. Em 1988, o grupo apresentou seu primeiro espetáculo, com direção de Burnier, Kelbilim, o Cão da Divindade, peça solo encenada por Carlos Simioni, um dos fundadores do Lume e que ainda integra o núcleo. Burnier faleceu em 1995, aos 38 anos.

Para Ferracini, deve-se sempre lembrar que a estrutura do Lume, como um núcleo de pesquisa mantido pela Unicamp, com artistas pesquisadores que há décadas se dedicam ao estudo de um campo artístico específico, é única no Brasil, na América Latina e no mundo.

Quando criou o núcleo, Burnier queria que essa estrutura estivesse dentro de uma universidade justamente com esse propósito, lembra Hirson. “A transmissão de conhecimento nasceu junto com o Lume há quase 40 anos. Está no seu DNA.” A mímesis corpórea é uma das linhas de pesquisa proposta por Burnier, que se faz pela observação e a pesquisa de campo.

Parecia uma grande utopia criar um núcleo em que as pessoas estivessem juntas por um longo tempo, criando e se reinventando. De acordo com os atores-pesquisadores, são as ações práticas e conceituais que possibilitam essa utopia. “A utopia está em uma visão de futuro na qual a arte transforma o mundo”, diz Ferracini. A indagação inexorável vem em seguida: a utopia virou realidade?

“Utopia é um lugar que não existe. A visão oficial do Lume, que está no site, é a transformação da sociedade a partir da arte. Essa é uma visão utópica, porque a arte não transforma macroscopicamente a realidade, mas pode transformar microscopicamente”, resume.

Com sede fixa no distrito de Barão Geraldo (Campinas) desde 1995, perto do campus principal da Unicamp, o Lume é hoje reconhecido no Brasil e no mundo. O grupo já percorreu mais de 30 países oferecendo espetáculos, cursos e conferências. A comemoração dos 40 anos, no próximo ano, já teve início em 2024 com a apresentação do repertório teatral do grupo. O programa Lume em Casa começou em junho e se estende até outubro, patrocinado por um edital da Lei Paulo Gustavo.

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