Biografia expõe múltiplas facetas de Fausto Castilho
Em O pensador inquieto, Ricardo Lima traça um perfil do filósofo que pensou a Unicamp e o Brasil
Vários aspectos fazem da Unicamp uma universidade que chama a atenção no cenário brasileiro. O traçado urbano de seu principal campus, no distrito de Barão Geraldo, em Campinas, é um deles. Quem vê a Cidade Universitária “Zeferino Vaz” de cima observa que a distribuição de quadras, ruas e avenidas segue uma configuração radial, com uma grande praça ao centro, vias circulares concêntricas, como as ondas que se formam quando jogamos uma pedra em um lago, e vias radiais, que cortam as esferas. Para o leitor que se sentir confuso com a descrição, basta olhar o logotipo da Unicamp, uma projeção estilizada do traçado urbano do campus.
A arquitetura da Universidade não deriva de uma escolha casual. Ela decorre das ideias de Wilhelm von Humboldt, filósofo e linguista da antiga Prússia. O fundador da Universidade de Berlim, hoje conhecida como Universidade Humboldt de Berlim, defendia a ideia de que as universidades devem ser não apenas estabelecimentos de ensino, mas de ciência, onde professores e alunos estão constantemente estudando e aprendendo. Assim, a arquitetura desses locais deve favorecer o encontro e a convivência entre os diferentes atores do saber, promovendo a troca de conhecimentos.
O campus da Unicamp foi concebido segundo esse princípio. No núcleo, o Ciclo Básico, por onde todos passam e recebem uma formação inicial comum. Em seu entorno, institutos de ciência básica – matemática, biologia, filosofia, artes, física. E, no círculo mais externo, as unidades de ciência aplicada, como as engenharias e a medicina. Por trás desse sofisticado projeto, estava uma mente fervilhante: Fausto Castilho (1929-2015), filósofo e tradutor, professor emérito da Unicamp e um de seus fundadores, responsável pela organização de unidades como o Instituto de Economia (IE) e o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).
Na biografia O pensador inquieto (CMU Publicações, 2024), Ricardo Lima, jornalista e coordenador editorial da Editora da Unicamp, recupera grandes momentos e realizações de Castilho, como sua formação na Universidade Sorbonne, em Paris, junto a grandes nomes da filosofia; a aventura de promover uma conferência de Jean-Paul Sartre no interior paulista; a tradução para o português de Martin Heidegger; e a disposição em refletir sobre o Brasil e suas elites. Ao longo de páginas que revelam aspectos interessantes de nossa história, Lima perpetua as lições deixadas por um intelectual conectado ao seu tempo, comprometido com as políticas de educação e cultura e que, desde os anos 1960, sabia que a ciência interdisciplinar é o que confere excelência às universidades.
Formado como poucos
Castilho nasceu em Cambará, no norte do Paraná, em berço de ouro. Filho primogênito de Andrez Castilho e Leonilda Tocalino e membro de uma família de prósperos fazendeiros, teria, se dependesse da vontade do pai, se dedicado à administração das propriedades da família. Ele, porém, teve a sorte de encontrar no avô Cesário o apoio necessário para dar asas a seu interesse pelo mundo intelectual. Estudou em São Paulo, no Liceu Franco-Brasileiro (hoje Liceu Pasteur), local onde experimentou o primeiro contato com a filosofia, por meio de uma aula sobre a Carta VII, de Platão.
A experiência consolidou o espírito assertivo e a mente aberta com a qual Castilho desempenharia sua filosofia e intelectualidade. Apesar de ser o maior nome da filosofia alemã do período, Heidegger carregava a mácula de ter apoiado o nazismo. Em registros de entrevistas, Lima demonstra que a admiração de Castilho pela filosofia do alemão não implicava uma adesão a suas ideias políticas, tal como havia ocorrido com alguns de seus discípulos. Nas palavras de Castilho, recuperadas por Lima: “É asqueroso o fato de ele [Heidegger] nunca ter devolvido a carteira do Partido Nazista. Trata-se, porém, do maior filósofo do século 20, e isso mostra que o maior filósofo pode ser politicamente tosco”.
Valendo-se das reflexões de Heidegger, o jovem Castilho começou a pensar sobre o papel da filosofia no mundo científico. Para ele, a ciência tem a missão de encontrar soluções e propor caminhos mais fáceis para a humanidade. Já aos filósofos, cabe o caminho das pedras feito de levantar questionamentos.
Ao retornar ao Brasil, em 1954, Castilho abraçou importantes missões na difusão da cultura e do pensamento. Sua primeira parada foi à frente da Biblioteca Pública do Paraná, em Curitiba, quando transformou a instituição em um centro da vida cultural dessa cidade. Em seu currículo, Castilho registra também uma passagem pela gestão de Faria Lima na prefeitura de São Paulo. “Até por sua origem social, que lhe permitiu fazer a graduação na Sorbonne, Fausto poderia ter se fechado no mundo intelectual, estudando seus filósofos preferidos, sem se envolver na gestão pública e das universidades”, comenta o autor da biografia.
No meio universitário, uma de suas experiências marcantes deu-se como professor da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) de Araraquara – hoje uma unidade da Universidade Estadual Paulista (Unesp) –, onde criou a cadeira de filosofia e promoveu uma das visitas mais ilustres da história da cidade: a de Sartre, o famoso filósofo existencialista francês.
A formação intelectual na São Paulo dos anos 1940 não se restringiu à sala de aula. O jovem Castilho conviveu com mentes de grande relevância, como Monteiro Lobato, Oswald de Andrade, Sérgio Milliet, Antonio Candido e Caio Prado. Graças aos mentores, o avô convenceu-se a custear a melhor formação em filosofia possível na época: na prestigiada Sorbonne, para onde Fausto partiu em 1948. Em Paris, teve a oportunidade de aprender e conviver com um verdadeiro panteão da filosofia francesa do século 20, como Gaston Bachelard, Jean Piaget – este suíço, mas com passagem pela Sorbonne – e Maurice Merleau-Ponty, mestre que o incentivou a ampliar sua formação frequentando, na Universidade de Freiburg, no sudoeste da Alemanha, um curso que seria ministrado por Martin Heidegger, importante filósofo alemão do século 20.
A visita de Sartre e de Simone de Beauvoir, filósofa, escritora e sua companheira, ocorreu entre agosto e setembro de 1960. O casal, célebre à época, frequentou desde congressos e conferências até recepções e lançamento de livros, chegando a conceder entrevistas para jornais e emissoras de televisão. Durante essa agenda concorrida, Castilho teve a oportunidade de conhecer e questionar o francês a respeito de suas ideias. A resposta de Sartre veio em forma de conferência, ministrada na FFCL em 4 de setembro daquele ano.
O evento transformou-se em um marco no panorama da filosofia no país. Publicada mais recentemente pela Editora Unesp, a obra Sartre no Brasil: A Conferência de Araraquara, enriqueceu a obra sartreana e permitiu que mais pessoas tivessem acesso a seu pensamento. E também marcou a carreira de Castilho, que incluiu o existencialismo em seus estudos.
Ao longo das páginas da biografia dedicadas à conferência, Lima coloca, lado a lado, as ideias expostas pelo francês naquela noite e as reflexões feitas pelo brasileiro a respeito delas. “Fausto deixou muita coisa escrita. Consegui ter acesso a vários textos que compõem seu acervo. Eles explicam ideias complexas e facilitaram meu caminho”, comenta o jornalista sobre o hábito de Castilho de registrar toda sua carreira em textos, notas e observações. “Ele defendia que os professores transcrevessem suas aulas e as deixassem disponíveis nas secretarias, para consulta. Dizia que, se [Immanuel] Kant não tivesse transcrito suas aulas, hoje não teríamos acesso a sua obra.”
Sobrou até para o BNDES
Trechos de O pensador inquieto
Para finalizar este capítulo, um depoimento extremamente crítico de Fausto sobre a atuação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES. Temos, aqui, o retrato de uma personalidade: Fausto refletia lucidamente sobre a questão nacional; defendia-se lembrando que não era estudioso da área econômica, mas não hesitava em dar nome aos bois e em apontar como este país estava mal conduzido: “Ora, eu não entendo nada disso, eu sou curioso e eu acompanho realmente angustiado o que faz o BNDES, que foi erigido por Celso Furtado, Jesus Pereira, Dias Carneiro, isto é, por todos aqueles homens dos anos cinquenta [anos 1950], que sabiam que o banco seria riquíssimo, e de fato é um dos bancos mais ricos do mundo. Por quê? Porque ele recolhe o dinheiro do trabalhador e aplica no desenvolvimento, então é uma coisa que só tende a crescer. Agora, como ele pode perder tempo para financiar supermercado? Que contribuição o supermercado dá para a independência tecnológica do país?
(…) Eu estive há tempos com um amigo que é jornalista, do Estado de S. Paulo, e ele me disse: ‘Fausto, por que você, com essas ideias sobre o BNDES, não manda uma carta para a Dilma?’. Eu respondi: ‘Porque aí eu teria que entrar para a política, o que eu não faria de jeito nenhum, pois eu deixaria de ter serenidade para estudar filosofia – como dizia o Galileu’. É por isso que eu nunca escrevi para ela, não é porque eu não tenho vontade, porque realmente é um desaforo você colocar economista no lugar de engenheiro. Porque, quando se estuda a velha economia, vê-se que ela tinha uma preocupação política muito importante.
(…) Você sabe que a Embrapa se desenvolveu sem o apoio do BNDES? É um desaforo. Felizmente, como eles estão no Rio de Janeiro, eles são forçados a ajudar no desenvolvimento da indústria petrolífera. Simplesmente porque moram lá, trabalham lá. Agora eles descobriram o pré-sal aqui em Santos, e corremos o risco de destruírem as praias do litoral com esse negócio de pré-sal, porque eles não desenvolveram tecnologia para isso. Enfim, por ambição ou bobagem, o BNDES está por trás de muitas coisas que não têm nada a ver com a independência do país e só dizem respeito ao mercado. É o jogo entre as empresas para ganhar dinheiro, ter lucros, mas participar desse jogo é um equívoco, porque você tem de cuidar primeiro da independência nacional – essa é a função do BNDES.
(…) E, no momento atual, eles reclamam muito de que o país está se desindustrializando. Pudera, pois o dinheiro que é arrecadado para o BNDES – que é a maior quantia arrecadada dos trabalhadores no mundo todo –, eles empregam nas indústrias de automóvel e montadoras, ao invés de produzir tecnologia. Elas estão há cem anos no Brasil e nunca patentearam um parafuso. Então, a culpa é de quem dirige o país, porque esse negócio de dizer que o responsável pela desindustrialização do Brasil é a China é uma piada de mau gosto. Como é que um país que é capaz de fabricar um avião como o Tucano, que é disputado hoje no mercado internacional – todo mundo quer comprar um Tucano –, pode se desindustrializar? Ora, o único compromisso que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social deveria ter é com a independência nacional.”
(…) As reflexões de Fausto eram sempre voltadas para a construção de uma nação. Sua atuação como filósofo era exercida o tempo todo pelo cidadão que não se obstava a refletir e opinar sobre os acontecimentos cotidianos. Ele, desde sempre, desde o moleque de calças curtas que bateu à porta de Monteiro Lobato, teve um olhar muito atento no seu país. Interveio na administração pública, criou e dirigiu cursos e institutos, enroscou-se com burocracia, corporativismo, autoritarismos. Ativo intelectualmente, nunca deixou de ser um realizador, de pôr a mão na massa, de enfrentar as adversidades do Estado e tentar colocar em prática suas convicções.
Do campus radial a Heidegger
O convite de Zeferino Vaz para que Castilho integrasse o grupo de notáveis encarregados da criação da Unicamp, feito em 1967, não ocorreu sem que o primeiro reitor conhecesse as credenciais do filósofo na formação de universidades. Além da experiência como docente junto à FFCL, ele também participou da concepção da Universidade de Brasília (UnB), a convite de Darcy Ribeiro, e atuou no primeiro projeto de uma Universidade Federal de São Paulo – interrompido após o golpe militar de 1964.
Em todas essas ocasiões, tentou emplacar seu projeto de campus radial, de acordo com as ideias de Humboldt, o que não foi diferente na Unicamp, instituição que mais se aproximou do que o filósofo considerava como ideal. “Fausto chegou à Unicamp com muitos privilégios porque Zeferino Vaz sabia que era preciso ter pessoas importantes para formar a Universidade que temos hoje”, avalia Lima.
No projeto da Unicamp, Castilho seria responsável pela composição dos cursos, departamentos e unidades dedicados às humanidades. Assim, engajou-se na contratação de professores que formaram os atuais IE – pensado por Fausto como um grande centro de planejamento público –, IFCH e Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Além de acompanhar de perto a aquisição de livros e a assinatura de periódicos que formaram os acervos das bibliotecas dessas unidades. Para Castilho, as bibliotecas correspondiam a laboratórios das ciências humanas e, por isso, deveriam ser equipadas com o melhor que houvesse à disposição.
Entretanto o clima de paz entre Castilho e Vaz durou pouco. Baseado em registros da época e na narrativa de Eustáquio Gomes em O Mandarim – História da Infância da Unicamp (Editora da Unicamp, 2006), Lima mostra que os atritos entre os dois sobre o papel da Universidade levaram ao desligamento de Castilho, ainda em 1972. Após o imbróglio, ele lecionou na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) e uma segunda vez na FFCL, já como unidade da Unesp. À Unicamp, só retornaria em 1985, quando passaram a ter destaque duas das atividades nas quais havia se tornado uma referência: a tradução de clássicos e a vontade de pensar o país.
Intelectual e tradutor
Coerente com sua própria concepção de universidade e de pesquisador, em sua segunda passagem pela Unicamp, Castilho mostrou-se um intelectual capaz de abraçar as questões do Brasil e do mundo. No fim dos anos 1980, dedicou-se ao estudo das elites brasileiras, ao mesmo tempo em que aplicava a essas empreitadas seu conhecimento filosófico. “Fausto dedicava-se a analisar fatos sem juízos de valor, sem apontar se eram bons ou ruins para o país”, salienta Lima. “Com todo seu repertório filosófico, capacidade de unir pontos e visão ampla, ele voltou seu olhar para as questões brasileiras, que parecem não ter nada a ver com a formação tradicional de um filósofo como ele.”
Outro destaque de sua carreira foram as traduções de grandes autores, como René Descartes, Karl Marx, Benedetto Croce e Kant. Seu maior feito nessa área: a tradução de Ser e Tempo, principal obra de Heidegger. Segundo os registros recuperados por Lima, o trabalho ocupou Castilho por cerca de 60 anos. A obra, bilíngue, foi publicada pela Editora da Unicamp em 2012.
As traduções revelaram-se um componente especial de sua atuação, pois realizadas como um exercício constante de pesquisa e aprendizagem. “A tradução não significa apenas ter acesso ao pensador do outro idioma. Significa também ter um vocabulário em português para poder desenvolver esse pensamento”, explica o biógrafo ao lembrar que as traduções empreendidas por Castilho integravam seus cursos e orientações. “Fausto se dispunha a estudar os autores com seus orientandos. Por isso, se aventurava em traduzir as obras para auxiliá-los.”
Contar uma história
Esta não foi a primeira ocasião em que Lima se aventurou na missão de narrar a trajetória de um dos personagens fundadores da Unicamp. André Tosello (1914-1982), criador da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA), em 1966, a primeira da América Latina dedicada ao setor, foi o primeiro a ser biografado por ele. A Editora da Unicamp lançou Muitos: Uma Biografia de André Tosello em 2014.
No entanto, apesar da experiência acumulada, no caso de Castilho o trabalho ganhou outros contornos. Lima manteve contato com o biografado entre 2008 e 2015, ano de sua morte. Na época, Castilho coordenava duas coleções de filosofia na editora da Universidade. “Durante o período em que convivi com Fausto, jamais imaginei que, um dia, faria sua biografia. Até porque, se eu soubesse disso, teria feito várias entrevistas com ele”, brinca o escritor ao lembrar que foi o próprio Castilho quem lhe descreveu o dia no qual, aos 14 anos, conheceu Monteiro Lobato.
A preparação para a empreitada contou com estudos a respeito do fazer biográfico. Entre passagens e conceitos apreendidos, Lima destaca a ideia de ser impossível biografar um personagem vivo, pois isso prenderia o autor a um suposto compromisso com alguma verdade defendida pelo biografado. “Essa obra é a minha visão sobre Fausto Castilho. Certamente, outros autores produziriam obras diferentes.” Nesse sentido, apesar do desafio de mergulhar no universo filosófico e intelectual de Castilho, o autor sente-se aliviado por não ter escrito seu texto quando ainda convivia com o objeto de seus estudos. Ao fim e ao cabo, o fato de nunca ter imaginado que seria seu biógrafo veio a calhar. (Felipe Mateus)