‘Terrorismo de barragens’ traz à tona conluio do poder público com mineradoras
Tese investiga como empresas usam alertas contra desastres para expulsar moradores de suas casas
Felipe Mateus
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Tânia Rêgo/Agência Brasil | Divulgação
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Em 25 de janeiro de 2019, o rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, da empresa Vale, em Brumadinho (MG), matou 272 pessoas e resultou em um dos maiores desastres ambientais do país. Duas semanas depois, moradores das comunidades de Socorro, Tabuleiro, Piteiras e Vila do Congo, próximas a Barão de Cocais, foram surpreendidos, no meio da madrugada, por sirenes alertando para o risco de rompimento da Barragem Sul Superior da Mina Gongo Soco, também da Vale, o que obrigou essas pessoas a deixarem suas residências. Naquele mesmo dia e nos dias seguintes, o cenário se repetiu em outras comunidades do entorno de barragens semelhantes.
Os eventos descritos acima foram analisados em uma pesquisa realizada na Unicamp com o intuito de investigar as relações existentes entre as empresas de mineração e órgãos estatais. Esse estudo identificou na prática dos reiterados alertas indícios de uma estratégia das empresas para ampliar seu controle sobre a região e sua área de exploração. Segundo o estudo, de autoria de Daniel Neri, as empresas aproveitam-se do clima de medo instalado por desastres anteriores e, articuladas com o poder público, provocam a remoção de moradores. A tese de Neri, defendida no Programa de Pós-Graduação em Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências (IG), contou com a orientação da professora Rosana Corazza.
Mergulho na essência
A decisão de estudar os conflitos socioambientais decorrentes da mineração foi motivada pela relação pessoal do pesquisador com o tema. Neri conhece pessoas que sofreram prejuízos devido ao rompimento de uma barragem em Mariana, ocorrido em 5 de novembro de 2015. O desastre em Brumadinho e seus eventos subsequentes reforçaram seu desejo de investigar o fenômeno. “O rompimento da barragem de Brumadinho tem a ver com o processo de fragilização da política ambiental”, afirma. Para realizar sua investigação, o pesquisador lança mão da crítica marxista da economia política. “Precisamos fazer uma análise do capitalismo que leve em conta as estratégias de sucesso na acumulação [de patrimônio] pelas grandes empresas mineradoras.”
Neri descreve o cenário com o termo “terrorismo de barragens”. A expressão surgiu a partir de publicações feitas em meio ao Projeto Manuelzão, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que atua na bacia hidrográfica do Rio das Velhas. A área abrange o quadrilátero ferrífero do Estado, uma zona que concentra 61% do minério de ferro bruto do país. O termo faz referência aos relatos de moradores sobre o uso do medo como ferramenta para afastá-los de áreas de interesse das mineradoras.
Segundo a pesquisa, o processo de fragilização das políticas ambientais intensificou-se após o desastre em Mariana. Em 2016, alegando haver a necessidade de um maior cuidado com os licenciamentos ambientais, o governo de Minas Gerais instituiu a Superintendência de Projetos Prioritários (Suppri). Neri afirma que esse órgão, porém, nasceu para agilizar esses processos e diminuir as exigências envolvidas. “Isso se traduziu em uma carta branca para aprovar qualquer licenciamento, independentemente do porte e do dano material associado. E quem fez isso foi [o então governador] Fernando Pimentel, do PT [Partido dos Trabalhadores].” Os números compilados pelo pesquisador mostram, no entanto, que a tendência de flexibilização é ainda mais antiga. Entre 1935 e 1999, foram emitidos 5.209 títulos de requerimento para extração mineral no Estado. Já entre 2000 e 2022, o número subiu para 40.582. “Não se trata de uma articulação partidária ou de algo restrito a um grupo de pessoas, mas da forma política sobre a qual se assentam as condições de acumulação capitalista.”
De acordo com a tese, após o desastre de Brumadinho, houve um esforço do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) para proibir novos alteamentos – processo de crescimento das barragens pelo acúmulo de rejeitos sólidos – e para determinar a realização de vistorias nas estruturas existentes. A isso, seguiu-se o anúncio, por parte da Vale, sobre o cancelamento das operações em barragens consideradas de risco. Contudo, ao verificar documentos emitidos pela Polícia Federal, Neri descobriu que as barragens descontinuadas não apresentavam risco e que o nível de emergência relativo à desocupação dos locais havia sido baixado de 3 para 2. “Essa é uma clara evidência de uma articulação [entre as empresas e o poder público do Estado]”, conclui.
O pesquisador argumenta que o movimento vai ao encontro do projeto de mineração Apolo, que visa instalar uma área de extração entre as cidades de Caeté e Santa Bárbara e que sofria entraves quanto ao licenciamento ambiental por afetar o Parque Nacional da Serra do Gandarela. “Essa é uma área caríssima em termos de recursos hídricos, biodiversidade, transição da mata atlântica para o cerrado”, afirma Neri. Segundo informações divulgadas pela Vale, uma nova versão do projeto está em processo de licenciamento. De acordo com a empresa, essa nova iniciativa não prevê a construção de barragens e nem adentra os limites do parque. “A tese mostra que, mesmo sem o devido processo de licenciamento ambiental, a empresa vem se articulando para minerar a região, e o terrorismo de barragens faz parte desse processo”, sustenta Neri.
“Ninguém bebe minério”
Em fevereiro de 2021, a Justiça de Minas Gerais homologou um acordo judicial com a Vale para o pagamento de indenizações pelo desastre de Brumadinho no valor de R$ 37,7 bilhões. A empresa também foi denun- ciada pelo Ministério Público Federal (MPF), junto com a subsidiária alemã Tüv Süd, por crimes ambientais. Além disso, 16 membros das empresas foram denuncia- dos pela morte das 272 pessoas. Até o momento, porém, não há previsão para o julgamento do caso. A Vale infor- ma que 68% do valor do acordo já foi pago e que 15.400 pessoas fecharam acordos individuais de indenização.
Na perspectiva de Neri, medidas com vistas a evitar novos desastres não funcionarão se não implicarem mudanças estruturais. “Não precisamos de novas minas. Todo ferro e todo aço que temos em forma de sucata seriam suficientes para mantermos a produção de mercadorias. Mas isso não garante a taxa média de lucro da qual o capitalismo não abre mão”, explica.
O pesquisador ainda alerta que atividades como a mineração podem comprometer as bacias hidrográficas da região, afetando o abastecimento de água. “O aquífero da Serra da Gandarela é uma caixa d’água que pode ajudar a Grande Belo Horizonte. Não se trata apenas de ecologismo. Trata-se de uma luta por sobrevivência. Temos que lembrar às pessoas que ninguém bebe minério.”