Quadro sanitário acentua desigualdades históricas que afetam as condições de vida de jovens alunas de baixa renda
Uma pesquisa qualitativa, realizada entre 2021 e 2022, com jovens brasileiras de classes populares que cursavam o ensino médio, expôs os impactos da pandemia na relação que elas estabeleciam com suas escolas e na construção de seus planos de futuro. Conduzida pela psicóloga Paula Euzébio em seu mestrado pela Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, a investigação confirma estudos recentes sobre a importância da escola pública na formação da identidade, da visão de mundo e do projeto de vida de jovens brasileiras de baixa renda.
Com seu registro, a pesquisadora espera contribuir para as discussões sobre o futuro da escola. “Conhecer quem está dentro da sala de aula é fundamental para se pensar as mudanças necessárias nesse processo de trans- formação”, afirma Euzébio.
Na pesquisa, foram feitas entrevistas individuais — virtual e presencialmente — com seis alunas de 16 e 17 anos que estudavam, à época, no segundo e terceiro anos do ensino médio de duas escolas públicas localizadas em um município no sul de Minas Gerais, cujo nome será mantido em sigilo para preservar as fontes. O grupo era composto por três jovens autodeclaradas pardas, duas autodeclaradas brancas e uma autodeclarada negra.
O mestrado foi orientado pela professora Dirce Zan, da FE, no âmbito do projeto de pesquisa “Retratos de Escolas Públicas”, coordenado pela docente. O objetivo de Euzébio foi entender a realidade vivida por essas jovens a partir de suas percepções sobre a escola e a condição de gênero das adolescentes. Com a preocupação de ser um canal de escuta atento, capaz de captar tudo o que lhe fosse trazido, a autora priorizou estudantes que tivessem cursado pelo menos um ano do ensino médio de forma presencial. O estudo também possibilitou registrar as impressões sobre o ensino remoto.
Originalmente, porém, a proposta de pesquisa de Euzébio era diferente. Empenhada em investigar os coletivos feministas formados por alunas estudantes do ensino médio em escolas de Campinas, a psicóloga não teve outra opção a não ser repensar sua pesquisa quando, em março de 2020, o coronavírus se alastrou pelo Brasil. Do início ao fim, a pandemia desafiou todas as envolvidas no projeto e exigiu o seu redesenho, incluindo adequação de bibliografia e mudança do objeto de estudo e da metodologia. Ao fim e ao cabo, a situação sanitária impôs-se como parte integrante do estudo.
Após escrever uma apresentação sobre seu projeto, gravar um vídeo, publicar um formulário digital de inscrição e participar de aulas remotas por videoconferência, Euzébio recrutou interessadas em participar da pesquisa. Os primeiros contatos entre pesquisadora e entrevistadas, feitos por meio dos aplicativos WhatsApp e Google Meet, limitaram o vínculo que se estabelecia e imprimiram um tom mais contido. Com o tempo, explicitou-se a necessidade do encontro presencial, que só foi possível no início de 2022, após ter avançado o processo de vacinação contra covid-19 no país.
Sem exceção, as entrevistadas compartilharam vivências que permitiram a construção de um panorama detalhado dos efeitos negativos da nova realidade sobre o seu processo de aprendizado e os propósitos pessoais das estudantes. “Repetidas vezes, as alunas comentavam sobre uma sensação de não aprender nada. Algumas até mesmo desistiram de fazer o Enem [Exame Nacional do Ensino Médio] no fim do terceiro ano, por acharem que não estavam suficientemente preparadas”, descreve a psicóloga.
Segundo a orientadora do estudo, foi possível perceber que, em alguns casos, os planos das adolescentes também foram afetados pelo confinamento. “Foi interessante observar como elas foram ressignificando as próprias vidas a partir da pandemia”, afirma Zan.
Intersecções
A psicóloga observou que o elo entre as alunas e suas respectivas escolas era fortemente marcado por dimensões de gênero, sendo impactado também pelas condições socioeconômicas e de raça. Encontrou, ainda, elementos que dialogam com pesquisas brasileiras sobre mulheres de classes populares, como análises que apontam para uma maior responsabilidade feminina no trabalho doméstico e, ao mesmo tempo, para um menor investimento familiar na continuidade de seus estudos até níveis mais elevados.
O papel da escola, como espaço de liberdade e porta de acesso para melhores condições financeiras, aparece de forma preponderante. Vindas de famílias com renda de até quatro salários mínimos, todas as entrevistadas relataram obrigações domésticas diárias com a casa e com os irmãos mais novos, além de pouco acesso a atividades de lazer. “Elas carregam responsabilidades que os meninos não têm, além de menos oportunidades e alternativas para socializar”, compara Euzébio.
Ao se debruçar sobre as dimensões das divisões sexual e racial do trabalho e sobre a forma como se articulam, a pesquisadora revela ter encontrado a repetição de uma contingência histórica: enquanto todas as seis eram encarregadas dos afazeres domésticos, a estudante negra era a única a ter um trabalho fora de casa, como cuidadora de crianças.
A escassez de recursos familiares, a condição feminina e o estigma racial, concluiu a psicóloga, não foram encarados como limitantes pelas jovens, apesar de algumas reconhecerem que essas são dimensões que podem impactar a realização dos seus projetos de futuro. Seja para as famílias, seja para as alunas, estudar foi apontado como a chave para quebrar o padrão, escapar da precariedade, conquistar bons empregos e, finalmente, melhorar as condições de vida.
Euzébio observou que as alunas compartilham a crença, de certa forma romantizada, de que as mulheres têm “uma garra maior”. Ao mesmo tempo, a pesquisadora destacou a percepção, expressa nas falas das entrevistadas, de que as mulheres, hoje, podem ascender socialmente. Em especial, segundo a autora da dissertação, é marcante no discurso de todas as jovens o desejo de entrar na universidade. Na entrevista presencial, após um intervalo de cerca de seis meses desde o primeiro contato remoto, constatou-se o adiamento do projeto de cursar o ensino superior.
Para a autora do estudo, a interrupção dos planos dessas jovens deve ser situada no campo das possibilidades, considerando suas condições sociais e os impactos do contexto pandêmico. O ingresso das alunas na universidade não foi possível, conclui Euzébio, pelo agravamento de suas respectivas condições econômicas, pela necessidade de emprego remunerado e pela sensação de não estarem preparadas para essa transição, em razão da defasagem de aprendizado causada pelos tempos de ensino remoto.