O professor Marcos Lopes aborda os pressupostos éticos na obra do escritor, cujo centenário de nascimento está sendo comemorado
Amor e inteligência
Nos estudos literários, há quem afirme que a melhor homenagem a um escritor é submetê-lo ao tribunal da crítica. Isso significaria deixar a apreciação de um poeta ou romancista a cargo da experiência pessoal do leitor, da sua intuição, do equipamento teórico a sua disposição e, por fim, da confrontação com outras leituras. Se prosseguíssemos nessa analogia, concluiríamos que, na condição de juiz, o leitor tomaria sua decisão com relativa soberania. Amparado pela jurisprudência, pela interpretação da lei e pelo veredito dos jurados, tal leitor judicante dissecaria o caso em análise com o bisturi da ciência “jurídica” e o entusiasmo de certa retórica.
Da perspectiva acima, uma homenagem se distanciaria do elogio, em seu sentido trivial, assim como o diabo fugiria da cruz. Como não é crível a existência do diabo, e a cruz deveria ser esconjuro para realidades mais urgentes neste momento político do Brasil, pode-se discordar da imagem severa do tribunal da razão, ainda que, por dever de ofício, cumpre apresentar quais seriam as principais ressalvas ao romancista português. E isso porque elas colocam no centro dessa efeméride os pressupostos éticos da ficção de José Saramago.
Para alguns leitores, o comunismo e o ateísmo de Saramago prejudicariam a qualidade estética de sua ficção. O narrador saramaguiano se comportaria como o aguilhão da consciência alheia, controlando com mão de ferro as opiniões, adversidades e maldades das personagens. O conflito moral entre opressor e oprimido, presente, por exemplo, em um romance como Levantado do Chão (1980), dispensaria um olhar mais exigente para as complexidades e contradições que atravessam as relações de poder em uma sociedade. Não haveria uma sofisticação de pensamento em sua obra à altura da forma romanesca construída. Por fim, a crítica à religião em Saramago não estabeleceria novas coordenadas interpretativas para a tradição cultural portuguesa, antes retomaria o anticlericalismo português do final do século XIX [1].
Se tudo isso fosse verdade, e poderá ser a depender da perspectiva crítica, tais objeções não invalidariam a importância da obra de Saramago. E se entenderão logo as razões disso.
Primeiro, porque a ficção de Saramago desafia nossa inteligência, ao ser um trabalho exigente com as possibilidades expressivas e cognitivas da língua portuguesa. Segundo, ao trazer para o centro da imaginação literária a realidade de um afeto, o amor, sua obra oferece ao leitor a crença de que a vida humana merece ser vivida, em que pesem os sofrimentos imputados pelos homens a si mesmos e a outros seres. Essa vida que merece ser vivida dispensa as promessas de um outro plano, além do tempo e da história. Não há transcendência na ficção de Saramago. Apenas transcender sem transcendência, segundo a divisa de Ernst Bloch.
É necessário entender esses dois aspectos contundentes (amor e inteligência) na obra de Saramago, que faria cem anos, neste mês de novembro, se estivesse vivo. Não tenho dúvidas de que Saramago lançaria um olhar amoroso e inteligente para a nossa realidade, ajudando-nos a fazer o parto de novas esperanças, com o seu irônico pessimismo, presente em seus últimos romances.
Pois, se há uma arte da interpretação (hermenêutica) na obra de Saramago, isto é, um trabalho da inteligência que busca, em meio ao desconcerto do mundo, algum sentido nas palavras e nas coisas, também há uma arte de fazer o parto (maiêutica) que ajuda cada leitor a dar à luz o melhor de si e a se fazer presença frágil e intensa com o outro.
Em um artigo, publicado no Jornal de Letras, em 12 de março de 1991, com o título Os três nascimentos [2], José Saramago, ao comentar a poesia de Pablo Luis Avila, e reconhecendo que não fazia àquela altura crítica literária, afirma:
tem a poesia o dom de abrir súbitas portas,
para além das quais se nos mostram, num
instante fugacíssimo, paisagens supra-reais,
infinitos espaços, impossíveis ideias de
eternidade, ou, simplesmente, uma espécie
de iluminação, uma luz rasante que faz do
verso mais do que a soma aritmética dos
sentidos contidos nas palavras que o constituem,
e onde a palavra, cada uma, se reveste
duma inesperada e como que compulsiva
força evocadora. A poesia, então, é transportante,
diria mesmo que telecinesica, se
não fosse o risco de assim estar levando alguma
lenha à fogueira a cujo calor conforta
a parapsicologia as suas esperanças e o espiritismo
as suas ilusões.
É curioso acompanhar o raciocínio sinuoso de Saramago, que parece estar todo concentrado em esclarecer e ao mesmo tempo ocultar o sentido da afirmação “tem a poesia o dom de abrir súbitas portas”. É uma frase que nos faz pensar qual seria o dom da poesia e quais portas subitamente ela nos abriria. E mais do que entender o dom e a sua perspectiva, o que importa é atentar para o tempo contido nessa oferta: “abrir súbitas portas”. Poderíamos encontrar outros sinônimos para o adjetivo “súbitas”, como, por exemplo, repentino ou inesperado. Mas propomos a seguinte expressão: algo que nos acontece.
O acontecimento da poesia é semelhante ao nascimento de algo que, desejado ou não, introduz um tempo qualitativamente diferente em relação ao que vivemos no cotidiano. O nascimento de um filho ou de uma filha altera a nossa consciência do tempo, talvez não de imediato, mas nos dá a oportunidade de um tempo não apenas cronológico, que vamos experimentando no crescimento da criança e no nosso envelhecimento; um tempo “kairótico”, que diz respeito ao olhar que lançamos ao nosso mundo interior, ou à alma, para aqueles que acreditam em tal entidade.
Completará Saramago, no artigo já mencionado, que esse olhar inteligente sobre nós mesmos é o que Marguerite Youcernar, em seu romance Memórias de Adriano (1951), chama de “o verdadeiro lugar do nascimento”. Lembremos as palavras de Yourcenar, evocadas por Saramago: “O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que, pela primeira vez, se lança um olhar inteligente sobre si mesmo.”
A partir dessa evocação, acompanhemos a percuciente digressão de Saramago por sua infância até o momento em que, contrariando a escritora belga, considera que, se lançamos vários olhares inteligentes ao longo da nossa existência, isso significa que teremos vários nascimentos, tornando tarefa difícil precisar “o verdadeiro” nascimento em um tempo marcado por duração e instante.
Conclui o romancista português, já nos arremates de seu artigo:
Marguerite Yourcenar, ao orientar para o
intelecto o seu afã exploratório, com prejuízo
das virtudes sensíveis, esqueceu o poder
maiêutico do amor. É sem dúvida verdade
que uma e outra vez “o olhar inteligente”
que somos capazes de lançar sobre nós
mesmos aparece a examinar-nos, mas vem,
perdôe-se-me a crueza da expressão, como
um comprador que perguntasse: “Quanto
vales?”, ao passo que o amor, que também
uma e mais vezes nos interroga, é outra
a sua pergunta: “Quanto sentes?” e é da resposta
que soubermos dar que depende esse
outro e enfim definitivo nascimento.
A inteligência parteira solicita o maiêutico amor no qual não é apenas o nosso olhar voltado para si, mas o deixar-se olhar pelo outro. “Interpretando com palavras menos belas não o nosso olhar, mas o do outro, não apenas a inteligência parteira, mas o maiêutico amor. Para nascer definitivamente, antes que seja tarde”, conclui Saramago.
Há, por certo, e sem exagero, nessas palavras de Saramago, uma orientação ética que é o fio condutor de toda a sua obra. Se o ouvinte tem dúvidas, por favor, lembre-se das cenas de Memorial do Convento (1982), na qual a trindade profana, Bartolomeu, Blimunda e Baltasar, sela o destino da narrativa ao partilhar o pão, olhando-se mutuamente, e, com a saída do Pe. Bartolomeu da casa dos comensais, inicia-se a nova partilha dos corpos entre o soldado maneta e a mulher que enxergava o que havia dentro das pessoas. Peço também que se lembre da cena de O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991) na qual Maria de Magdala cura a ferida física de Jesus e é curada em sua alma, troca salvífica que nada mais é do que uma ética presidida pelo maiêutico amor.
Lembradas assim rapidamente, tais cenas podem se prestar a expressão piegas de sentimentos e da bondade ingênua dos homens e das mulheres. Contudo, depois de anos convivendo com as personagens de Saramago, levo em meus olhos um pouco dessa ingenuidade que me ajuda a me curar da cegueira brutal do que entendemos por realidade.
Penso que, neste momento histórico e decisivo do nosso país, Saramago aconselharia, com seu compromisso ético, que nos manifestássemos da seguinte forma frente aos que se dizem conservadores ou progressistas:
Não as sobras dos ossos e restos de carne para os mais pobres, mas a vida honrada, inteligente e amorosa.
[1] – Conferir KUJAWSKI, Gilberto. O sagrado existe. São Paulo: Editora Ática, 1994
[2] – Uma cópia do artigo encontra-se disponível na Hemeroteca do Centro de Documentação Alexandre Eulálio (Cedae), Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), Unicamp.
Marcos Lopes é professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp e secretário executivo de comunicação da Universidade.
Um autor que sempre tem algo a dizer
Antonio Augusto Nery
Especial para o JU
Em entrevista concedida ao jornalista José Rodrigues dos Santos, apenas oito meses antes de falecer, José Saramago deixou claro que, para além de diversas circunstâncias, o que o transformou no escritor que era foi a
[…] descoberta, isso sim importantíssima,
que ocorreu quando me confrontei com a evidência de que
tinha leitores. E creio que os leitores
tiveram uma parte importante
no fato de eu continuar a escrever.
Também é certo que, se continuei
a escrever, foi porque, pelo menos
penso eu, tinha alguma coisa para
dizer. (SANTOS, 2010, p. 27)
Essa lucidez de Saramago acerca da importância do leitor para a produção de sua literatura coadunada com a certeza de que seus textos tinham significado para os leitores talvez expliquem os motivos de a obra saramaguiana ter tanto a nos dizer ontem, hoje e amanhã. No meu caso específico, a definição mais precisa que traduz minha relação com a obra de José Saramago é a de uma Sedutora que sempre se relaciona com um seduzido. Desde o impacto sofrido durante a leitura das primeiras páginas de O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), há mais de duas décadas, até o presente, quando conheço e revisito qualquer uma de suas obras, sinto que a potência da literatura saramaguiana me afeta de modo extraordinário, sobretudo pelo fato de me convidar a “reparar” em questões, situações e supostas verdades correntes na realidade, as quais, não esclarecidas, debatidas e superadas na própria realidade, sofrem esse salutar processo na magnífica produção de Saramago.
O fato é que sua produção me impulsiona a ir além da ação de constatar detidamente, sentido para o qual o verbo “reparar” pode apontar, mas, tal qual a epígrafe do livro Ensaio sobre a cegueira (1995) sintetiza, tendo em vista o impactante significado do enredo que anuncia, agir em prol de uma realidade mais justa e menos desigual para todas e todos que nela habitam.
Nesse sentido, defendo que uma literatura como a produzida por José Saramago deve ser comentada, ensinada e difundida o máximo possível, a fim de que o significado contido no mote “Um outro mundo é possível”, lema dos fóruns sociais mundiais, apoiados pelo autor, seja compreendido e almejado pelo máximo de seres humanos possível.
Qual não foi minha satisfação e felicidade, portanto, quando inauguramos neste ano de 2022, na Universidade Federal do Paraná (UFPR), com o apoio de nossa Instituição e do Instituto Camões de Cooperação e da Língua, a Cátedra Camões José Saramago. Coroando as ações de um dos mais longevos Centros de Estudos Portugueses do Brasil, o CEP-UFPR, fundado em 1954, temos a oportunidade de sediar em Curitiba um ponto de apoio fixo, porque não dizer um “ponto luminoso”, para lembrar a nós da UFPR e a todas e todos que precisamos “reparar”, para além de “ver”.
Referências Bibliográficas
SANTOS, José Rodrigues. A última entrevista de José Saramago. Rio de Janeiro: Usina de Letras, 2010.
Este texto foi adaptado do depoimento “‘Se podes ver repara, repara’ a Sedutora e seduzido”, publicado no livro: LEÃO, Liana; VITAL BRAZIL, Érico. Saramagos – 100 anos de Josés. Curitiba: Associação Cultural Solar do Rosário, 2022, p. 171.
Antonio Augusto Nery é professor de Literatura Portuguesa na graduação e na pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e integrante da Cátedra Camões José Saramago dessa mesma instituição.