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O amargo e o doce em uma universidade

"O que provocou meu desencanto foi uma parcela de cristãos ser chamada de idiotas por um docente em um evento acadêmico."

Prezados professores Marcos e Luiz Paulo,

Confesso que, na última vez que estive nesta universidade, murmurei no retorno para casa: “Nunca mais, nunca mais… a universidade ‘expulsa’ quando quer e quem quer…”  O que provocou meu desencanto foi uma parcela de cristãos ser chamada de idiotas por um docente em um evento acadêmico. Aos berros, durante uma palestra, ele protestou contra o projeto pedagógico dos jesuítas. Penso que não importa quem, qual parcela, qual religião, qual seita… como se pode xingar alguém ou um grupo em contextos formativos?  A falta de decoro desse professor não seria tão lamentável, por exemplo, como algumas piadas ofensivas? Depois surpreendemo-nos com a intolerância que se espalha na vida pública.  Se semeamos preconceito, colheremos seus frutos.

Passaram-se seis anos, eis que estou aqui de volta… confesso que, no primeiro dia, pensei o que faço nessa sala? Quem será o Cleso mencionado tantas vezes? Haverá ainda uma sala de xerox? Na Pucc tinha o Silas das fotocópias, bonito, às vezes nem havia texto para pegar, mas passávamos lá só para vê-lo… Mas não…impossível aqui ter uma sala daquelas com um rapaz chamado Cleso. Na semana seguinte, ri muito ao descobrir que era Classroom o que diziam.

Como aluna ouvinte e aliviada por estar dispensada da redação do trabalho final, mas remoendo algumas ideias, posso dizer que o mais relevante foi o respeito com o pensamento cristão. Surpreendi-me quando vocês, admirados com as especulações de Santo Agostinho, convidavam-nos a olhar para a beleza de suas ideias. E não foi apenas uma vez que vocês desvelavam-no para os jovens na sala. Concordo com o professor Marcos, ao afirmar que a escrita de um recém-convertido é um perigo; sim, um perigo por sua liberdade na entrega confiante ao Amor. Enfim, julgo que o mais importante foi renovar a crença de que a academia pode ler e questionar a filosofia e a teologia cristãs, mas respeitando-as, pois elas constituíram algumas das bases da ideia de universidade.

A aula que mais me tocou foi sobre Camões e o eu lírico cristão. Talvez pelas minhas memórias do meu avô materno, que possuía um livro desse poeta. Meu avô apenas cursou o ensino primário e andava com esse livro de lá para cá. Ele tinha o sorriso desprovido de dentes mais bonito que já vi. Não era religioso. Não deu tempo de conversar com ele sobre essas coisas. Eu completava 12 anos quando o achei em seu sono final…morreu dormindo. Desconheço se possuía a forte esperança de Camões e aceitou acolher a oferta dos mistérios da “Máquina do Mundo”, rendendo-se à Luz.

Neste momento da minha vida, tenho acompanhado minha mãe, de 92 anos. Muitas vezes, ao deitar-se, compartilhamos o mesmo quarto, ela costuma murmurar em voz baixa: “Meu pai era Sebastião, minha mãe Julieta, nasci em Rio Claro, depois fui pra Pirassununga. Lá eu ia na escola de trem…”. Nem sempre as palavras são audíveis e inteligíveis. Ultimamente, adormeço com essas histórias.  Comecei a leitura do romance “Sôbolos rios que vão”, de Antonio Lobo Antunes. Que hora certa chegar esse livro para mim! A narrativa como memória da permanência do ser… Percebo que minha mãe, para continuar sendo o que é, rememora sua vida, antes de dormir, por meio de sua voz… como o personagem de Lobo Antunes: “falando… tinha a certeza de ser…no caso de me calar não existo…”  Lembrei também das Confissões, de Santo Agostinho: “a memória é o estômago da alma.”

A experiência de observar idosos em casas de repouso tem me sensibilizado muito. Ajudo a levar comunhão (meu irmão é ministro de eucaristia) e penso que a finitude da vida se dá igualmente para todos.  A condição financeira certamente oferece mais conforto, uma casa de repouso diferenciada, agilidade nos tratamentos com convênios, mas a percepção da finitude, a degradação do corpo, a certeza de que somos corruptíveis fisicamente… ah, isso é igual em todos…para todos, apesar das trajetórias diferenciadas de cada um. O que foram? Pelo que lutaram ou se omitiram? Quais esperanças foram desenganadas? O que ainda vale esperar? “Sobre quais rios que vão” eles têm pensado, chorado e suspirado? Como está sendo para cada idoso essa “solidão do fim e a perda dos pobres tesouros que conservava”?  Quantos “Eli, Eli lama sabactani!” eles têm gemido em seus momentos de angústia e dúvida?

Eu não sei, professores. Só sei que eu tenho minha forte esperança e devo seguir. E assim sigo na mensagem que um pé-de-boldo mostra-me aqui no quintal: com folhas tão amargas, recebe o beija-flor em suas pequenas flores, provando-me que há um certo doce até no amargo.

Muito obrigada

Marta

(Marta de Almeida Oliveira foi aluna ouvinte da disciplina “Tópicos em Literatura e Filosofia”, ministrada pelos professores Marcos Lopes e Luiz Paulo Rouanet (Unicamp/UFSJ) no primeiro semestre de 2025, no Programa de Teoria e História Literária do IEL)

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.


Foto de capa:

O amargo e o doce em uma universidade; artigo Marcos Lopes - pé de boldo florido
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