Vê estrelas. Desperta. As filhas testemunham assustadas. Jamais presenciaram o pai desmoronar daquela maneira. — Não se preocupem, disse, esforçando-se para parecer tranquilo. Outro dia. Trabalho. — Cansaço?, ironizou o responsável da seção. Sorri e responde que foi um mal-estar passageiro. Os dias passam, e as horas deixam de ser contabilizadas no relógio, sendo acompanhadas por nuvens trocadas durante a madrugada. Clínico geral. O amigo médico soube das indisposições. Sala de espera. Toma uma revista de notícias ultrapassadas. Folheia com olhos na porta do consultório, na expectativa mais da repreenda do que exames de rotina. Não foi repreendido. O que seria um puxão de orelha ou ser chamado de tigrão converteu-se numa batelada de exames: creatinina, ureia, hemograma completo.
Uma, duas semanas. Novamente, uma sala de espera. Aguarda. Distrai-se rememorando aventuras sem importância. Aguarda, contudo imaginando a agulha no braço e o sangue acondicionando num recipiente com o seu nome. — Não há de ser nada, comenta com a técnica, que devolve com um “Se Deus quiser”. Retorna ao clínico geral. Sala de espera e a mesma revista. — A espera incomoda. Uma espera silenciosa que espreita. Consulta rápida. É encaminhado a um nefrologista. Outra sala de espera, cujas horas começavam a se eternizar, à medida que buscava em si a crença de que os resultados dos exames estariam equivocados e precisariam ser refeitos. Entrou, e não era bem assim.
Outro dia. O banho e o espelho. Mira-se. Passa os dedos sobre a coxa, criando uma rota arroxeada. Um vergão que se recompõe ao soltar o indicador, assim como se deu nos braços e logo abaixo dos olhos, pois ali se alojou uma bolsa indesejada. A hemodiálise o aguardava. Antes, porém, foi necessário um procedimento cirúrgico no pulso, em que veia e artéria se unem para dialogar com uma máquina. Contemplou-se enquanto saía de si, não em espírito, mas através de seu fluido vital bombeado a partir da fístola arteriovenosa. Administram-lhe heparina para evitar a formação de coágulos. Solução salina isotônica. Sim, eletrólitos para a manutenção da homeostase no organismo, essencial para processos metabólicos fundamentais à vida.
— Vida louca vida, vida breve. Cazuza lhe tomava. O sangue entra no dialisador, removendo-lhe resíduos. Obviamente não pensa nisso. Longe disso. — Quanto de espera ainda me resta? Quantas salas me aguardam? O tempo é acompanhado por seu definhar. Pálido. Magro. Cheiro de ácido úrico. A pressão venosa aumenta, como também se avoluma a veia da fístula, quase ocasionando sua oclusão. O desespero e o frio. Pede uma coberta para a enfermeira. Adormece. Sonha que pode tomar mais do que um copo de água. O desejo de ser desejado, de dormir e acordar com a preguiça do sábado, mas não com a espera extenuante, agora na fila por transplante renal. E essa espera não está restrita a uma sala, mas codificada na ansiedade de ser chamado a qualquer instante. Acorda. A perda da consciência é um átimo. As filhas já não olham apavoradas. As filhas admiram-no com compaixão, dariam tudo para estar no lugar do pai.
— Nos olhos das meninas, mora uma tristeza. Tristeza assim que me deixa na vontade de chorar. Na dúvida, sim. As lágrimas das meninas são as que correm em mim. O que me aguarda? Nunca mais andarei descalço para sentir os grãos de areia a brincarem com os pés. Nunca mais me desnudarei para sentir o frescor do vento, a carícia do mar e os lábios do luar. Nunca mais sentarei nas derivadas do espaço, nas integrais do tempo para relativizar a existência. Nunca mais pensarei na complexidade de ser poeira solar, pois todos encontrarão seu caminho, e não serei pedra nem destino. Não serei palavra, muito menos memória. Busco algum sentido no paraíso das lágrimas, que escarafuncham a condição da minha humanidade. Canso de esperar. Canso e sou chamado. O enxerto a mim agraciado reluta em funcionar. Espero novamente. Lembro-me do “Se Deus quiser”. Peço novenas em igrejas e velas em terreiros. Peço a benção a padres, pastores e pretos velhos.
Converso com o meu sistema imunológico para que aceite aquele rim, como se fosse a um irmãozinho temporão. O residente chega com uma seringa imensa e administra-lhe gotas de milagre. Espera. O corpo aceita o órgão, condicionando-o a imunossupressores. A sobrevida abre as cortinas para a reconstrução dos sonhos. As filhas olham felizes, e muito por começar, a principiar pela vinda do neto. Essa espera. A expiação da espera desde o primeiro desmaio, passando por inúmeras salas, por uma fila de transplante que se perpetua na fila da medicação de alto custo do Sistema Único. É uma espera que vale a pena, desde que o medicamento esteja disponível, mas não está. A rejeição do órgão sonda e atormenta. Como se o filho pródigo estivesse pronto a ser expulso do corpo. A angústia toma-lhe a alma. Nova fila de espera e a falta da medicação. Recorre a amigos desconhecidos, anjos associados que lhe proveem o fármaco. O tempo é incapaz do perdão, pois feito Cronos devora a todos, principalmente os invisíveis e os que sobrevivem à margem da sociedade.
Uma das filhas traz um jornal e aponta o título de uma das matérias: A universidade produz fármaco essencial para transplantados e da lista de alto custo do SUS. Lê ávido, ainda que não entenda de fermentação ou desse treco de biorreator, filtro pressurizado e membranas ultrafiltrantes. Recorda-se da aflição das esperas e das inúmeras preces. Agarra-se à possibilidade de sonhar sem amarras, pois o transplante se concretizou e o corpo acolheu o novo órgão como seu. Brinda. Pode tomar dois copos de água a mais. Envia um e-mail, dizendo apenas “Muito obrigado”. Quem recebe, afixa a mensagem no quadro do laboratório, acima de artigos e distinções acadêmicas, todavia ao lado de um laço verde, renovando a engenharia da Esperança, uma vez que sempre esteve presente na singularidade de cada espera daquele pai.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
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