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A mais “perversa” das ciências

"Por portarem um leque amplo de possibilidades de estudo de um mesmo fenômeno, por estarem sujeitas a escrutínios interpretativos dos pares [...] é comum que nessas áreas haja maior rejeição de propostas de financiamento nas agências de fomento"

Problemas complexos, ideias disruptivas, modelos preditivos são alvo natural da pesquisa científica em todas as áreas do conhecimento. Seja para nos tornarmos mais cultos, seja para resolvermos problemas.

Seria injusto afirmar que algumas áreas enfrentam problemas mais desafiadores que outras. Afinal, aqui estamos, pesquisando, inventando, solucionando, dissipando névoas e abrindo horizontes. Todos os assuntos de todas as áreas são desafiantes.

Talvez alguns sejam mais perversos que outros. Explico.

A expressão “wicked problems”, disseminada a partir dos anos 1970 com o trabalho de Rittel e Webber (1973), pode ser traduzida para o português como “problemas perversos”. São perversos porque não têm formulações definitivas e não são reprodutíveis.

Outros adjetivos, como “complexo”, também são empregados para qualificá-los. Como quase todos os problemas de pesquisa são complexos, em todas as áreas, prefiro “perversos”, porque este termo é mais adequado para quem quer desvendar o funcionamento e propor modelos explicativos de objetos para lá de complexos.

Não por acaso, o termo “problemas perversos” foi proposto para desafios em ciências sociais aplicadas, em especial, ciência política, economia e sociologia. Eu diria que na administração também.

Conforme explica Head (2008), problemas perversos são “problemas sociais, em geral mal definidos, não categóricos, interconectados, e baseados em julgamentos mais que em evidências científicas”. Para tornar as coisas mais desafiantes, Rittel e Webber (1973) asseveram que “todo problema perverso é essencialmente único”.

Como diria mestre Yoda, complexo é evidências encontrar de modelos que reprodutíveis sejam.

O propósito desta introdução é dizer que as áreas mais intrincadas da pesquisa são justamente as que se dedicam a este tipo de problema. Arrisco dizer que é nas ciências sociais aplicadas e nas humanidades em geral que a maioria dos problemas perversos se apresenta, o que torna a pesquisa científica nessas áreas um enorme desafio. Como veremos adiante, se a pesquisa é enquadrada como interdisciplinar, essa condição se potencia.

Na base dos problemas perversos, está o fato de que, para funcionar, modelos dependerão do comportamento e das decisões de indivíduos e grupos de indivíduos vivendo em sociedade. Junte-se a isso a incerteza que naturalmente decorre da passagem do tempo,  e cria-se um estado assimétrico inevitável entre o que digo e penso hoje e o que farei no momento seguinte. Seja qual for a causa da minha mudança de posição, ela poderá inviabilizar um modelo preditivo, sem uma motivação escrutável.

Dois elementos correlacionados de incerteza precisam ser considerados em um modelo explicativo e/ou preditivo nessas áreas: como as pessoas vão se comportar e tomar decisões e a evolução das variáveis que influenciarão essas decisões.

Para complicar, tais variáveis de influência também serão influenciadas pelas decisões. Como um depende do outro, a tarefa de modelizar é dura. Mas seguimos tentando.

Os resultados serão modelos que só eventualmente serão reprodutíveis, justamente no caso que as decisões seguirão o previsto e as interações das decisões também. Nenhuma outra variável importante poderá emergir, caso  contrário, o modelo falhará.

O livro de Kay & King (2020), intitulado Radical Uncertainty: decision making for an unknowable future, ajuda a entender o abismo que existe entre as ciências sociais aplicadas e as ciências naturais. Claro que, com isso, não se quer dizer que, nestas, não haja problemas complexos e perversos, eles existem, mas por razões diferentes: nestes, sistemas podem ser fechados para demonstrar seu funcionamento. Nos sistemas sociais, não. Fechar é como negar a incerteza sobre como indivíduos e grupos pensam e decidem.

O livro acima referido foi escrito por dois economistas reconhecidos, um deles presidente do banco da Inglaterra por dez anos. De início, os autores reconhecem que os modelos preditivos de variáveis macroeconômicas, mesmo os de curtíssimo prazo, falham ou têm baixa acurácia, não obstante a incorporação cada vez maior de variáveis que influenciam decisões e resultados. Neste sentido, admitem que a incerteza radical é insuperável e que modelos têm alcance explicativo e principalmente preditivo limitado. Temos que nos acostumar com isso, dizem eles.

Numa das muitas passagens interessantes do livro, os autores relatam o processo de decisão que o presidente Barack Obama teria vivido no Salão Oval quanto à localização exata de Osama Bin Laden. Estaria ele no local que os assessores achavam que estava? Reproduzo aqui um trecho do livro que me parece ilustrativo:

“ ‘John’, o chefe da equipe da CIA, tinha 95% de certeza de que Bin Laden estava no prédio. Mas outros estavam menos certos. A maioria estimava a probabilidade em cerca de 80%. Alguns chegaram a apenas 40% ou até 30%.

‘Mas isso é como jogar cara ou coroa’, disse o presidente! ‘Não posso basear uma decisão nesse tipo de estimativa.’

Obama entendeu que precisava tomar uma decisão com base em informações limitadas…

E o fez não por meio de raciocínio probabilístico, mas perguntando: ‘O que de fato está em jogo aqui?’” (Kay & King, 2020).

O resto é história.

Informações limitadas. Sempre lidaremos com elas. O único modo de conhecê-las todas é dentro de um sistema fechado, no qual todas são conhecidas em identidade e comportamento. Um único “furo” neste sistema pode alterar o resultado.

Pode-se argumentar que, para solucionar a situação, bastaria ter um modelo flexível com, por exemplo, uma sensibilidade relativamente generosa, acima ou abaixo do esperado. Outros poderiam argumentar que uma abordagem estatística, digamos, “renovável” a cada momento, poderia se aproximar do resultado correto, como a Bayesiana, por exemplo.

Tudo feito com o propósito de lidar com a incerteza. Não fosse assim, não seria necessário lançar mão de probabilidades com amplas sensibilidades, como fazemos com frequência.

Nas ciências naturais, também se enfrentam problemas semelhantes, por desconhecimento das variáveis. Não pela incerteza radical, mas por falta de modelos e variáveis que estão por ser conhecidas. Afinal, estão na natureza. Ou, como um dia um físico me disse, ‘se existem, é porque já estão em alguma parte’.

O interessante livro de Sabine Hossenfelder, intitulado Existential Physics: a scientist’s guide to life biggest questions (Hossenfelder, 2023), discute esse ponto. Não me atrevo a entrar nas discussões dos físicos sobre a “teoria de tudo”, que argumentam que “o futuro está fixado” e que nem poderia ser diferente.

Entretanto, a autora, que repete várias vezes essa afirmação ao longo do livro, dá-se ao direito e ao dever do ceticismo estruturado. Lá pelas tantas, ela transcreve uma entrevista que fez com David Deutsch, físico envolvido com computação quântica.

A questão principal da entrevista era justamente a da previsibilidade dos sistemas físicos e, por extensão, de tudo o mais. O entrevistado faz então uma distinção entre ser determinístico e ser preditivo.

A autora pergunta ao físico: ‘Você diria que tudo pode ser determinístico, não apenas computadores, mas também a consciência e o comportamento humano?’ Ele responde: ‘Sim, tudo pode ser determinístico. O estado das coisas em um momento do tempo é determinado pelo estado em outro momento, adicionando-se leis dinâmicas’. Mas, note, diz ele, ‘que o que ocorre no tempo só pode ser explicado pelo que ocorreu antes, nunca vice-versa’.

A flexa do tempo de Arthur Eddington só caminha numa direção, e é para frente, jamais para trás. Pelo menos é assim no mundo vivo que vivemos.

E ser determinístico, segundo o entrevistado, não significa ser preditivo, por três razões.

‘A primeira é que, em mecânica quântica, não é possível medir com perfeita acurácia o estado atual; a segunda é que há caos, no sentido de que qualquer mudança de um bit anula a preditibilidade de um sistema cujo estado original já não pode ser totalmente conhecido; a terceira é que não é logicamente possível prever o futuro do conhecimento, se o fizéssemos, é porque seria possível obtê-lo antes do momento da predição.’

Hossenfelder conclui, como corolário da afirmação do colega: ‘Se pudéssemos prever o avanço do conhecimento, o conhecimento não avançaria.’

Aceitemos esse nó lógico por enquanto e retornemos ao ponto que quero destacar, o da perversidade dos problemas em ciências sociais aplicadas.

A única forma de criar um modelo efetivamente preditivo nessas áreas do conhecimento seria combinar que todos tomariam as decisões previamente acertadas, no tempo certo e sem acrescentar ou retirar nada substantivo do que foi acordado e, mais desafiador, nada poderia surgir de fora. Um sistema fechado.

As ciências sociais aplicadas tentam há muito emular modelos das ciências naturais para estudar fenômenos sociais. Isolar variáveis e considerar tudo o mais constante é a abordagem mais frequente. Afinal, precisamos de sistemas e modelos o mais deterministas possíveis, nem que sejam probabilísticos.

Se todos agirem do jeito combinado, o resultado será previsível. Mas mesmo se pudéssemos colocar os indivíduos isolados em redomas de vidro, sem comunicação ou percepção do que está acontecendo, ainda assim a mente seria capaz de gerar algo que os faça mudar de ideia.

Então, trazendo a discussão dos físicos para cá, o fato de ser determinista não significa que possa ser preditivo. Só saberemos o resultado depois que o tempo necessário tiver passado. De novo, é a flecha do tempo.

Quanto mais estivermos estudando gente, sociedades e seus comportamentos, mais difícil será a criação de modelos determinísticos e preditivos. O futuro será a combinação de decisões tomadas no presente por conjuntos variados e muitas vezes amplos e divergentes de atores sociais e agentes econômicos, cujas motivações são também influenciadas pelos demais. É altamente desafiador tentar organizar isso em modelos explicativos, mesmos se considerarmos que possam ser deterministas.

A incerteza intrínseca de toda pesquisa é aqui ampliada pela impossibilidade de controlar as ações dos sujeitos. Essa condição faz com que as ciências sociais aplicadas busquem abordagens variadas. Desde aquelas emprestadas das ciências naturais (física e biologia são as mais usadas) até as baseadas em estudo de casos.

Tal característica diferencia essas áreas do conhecimento nos procedimentos de financiamento e comunicação da pesquisa.

Por portarem um leque amplo de possibilidades de estudo de um mesmo fenômeno, por estarem sujeitas a escrutínios interpretativos dos pares, que logicamente conformam o amplo leque de preferências metodológicas e de convicções sobre o funcionamento das coisas humanas e sociais, é comum que nessas áreas haja maior rejeição de propostas de financiamento nas agências de fomento.

É também comum e sabido que a comunicação científica nessas áreas difere da das ciências naturais. Livros, capítulos de livros, anais de simpósios são muito mais empregados que em outras áreas.

Esses elementos se acentuam – e muito – quando a área é interdisciplinar.

Vejamos alguns dados obtidos da Fapesp.

Entre 1998 e 2022, os pedidos de auxílio regular tiveram taxas médias de aprovação em ciências sociais aplicadas 27% menores que a média das ciências naturais e engenharias. Na área interdisciplinar, essa taxa é 33% menor. São as duas áreas com menores taxas de aprovação. Uma hipótese explicativa é justamente o argumento usado neste texto: amplas abordagens interpretativas e metodológicas, com relativamente baixas convergências que se recusam mutuamente.

Aqui, a ser provado, o viés – e a convicção – do avaliador (seriam mesmo pares?) pode ter mais influência que em outras áreas.

Duvido mesmo que nessas áreas possa ser dito que há uma “ciência normal”, como proposto por Thomas Khun.

Para completar, vejamos dados também de publicações resultantes de financiamentos Fapesp. Em Bin et al. (2022)[1], que analisou diferentes padrões de publicações entre áreas do conhecimento para ex-bolsistas de mestrado e doutorado, as áreas de sociais aplicadas, humanidades e língua, linguagem e artes, comunicam seus achados principalmente em livros e capítulos de livros em proporções muito maiores que nas demais áreas.

Talvez, em função do risco de viés que permeia essas disciplinas, os pesquisadores prefiram o caminho dos livros e capítulos ao invés do das revistas.

Porém, como cada vez mais publicações em revistas são mais valorizadas, mesmo entre os pesquisadores de sociais aplicadas nota-se um aumento do número de revistas para acolher os alinhados a determinadas correntes e, ao mesmo tempo, rejeitar os seguidores de outras idéias e pertencentes a outros territórios do pensamento.

É como a anedota do náufrago judeu, que construiu duas sinagogas em uma ilha deserta. Um visitante chegou na mesma ilha mais tarde e perguntou: por que duas? A resposta veio imediata: nesta eu rezo, naquela eu não ponho meus pés.

Esses são efeitos colaterais de um modelo de ciência que aparentemente não reconhece as diferenças e os desafios impostos naturalmente pelos problemas perversos.

É ou não é mais difícil fazer ciência nessas áreas?

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.


[1] https://doi.org/10.1007/s11192-022-04487-3

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