A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) ocupa há décadas um lugar de destaque no cenário da agricultura mundial. Sua trajetória está diretamente ligada à extraordinária transformação da agricultura brasileira, que saiu de uma condição de ineficiência produtiva e insegurança alimentar para tornar-se uma potência global em produção e exportação de alimentos, fibras e energia renovável.
Mas essa narrativa de sucesso, tantas vezes celebrada, parece estar em rota de colisão com a realidade atual da empresa. Nas últimas semanas, a Embrapa voltou às páginas dos jornais e às redes sociais, não pelas suas inovações, mas pelas preocupações com o esvaziamento orçamentário, a perda de protagonismo e os sinais de crise institucional. E, como em outras ocasiões, reaparecem propostas de “salvação” com uma tônica preocupante: o financiamento com recursos privados e a colagem das atividades de pesquisa às demandas diretas das empresas e do setor privado.
Essa discussão não é nova. Em 2012 (“O bonde da Embrapa”, O Estado de S. Paulo, 17/04/2012), face à constatação de que a Embrapa perdia relevância nos mercados de sementes e perdia terreno na pesquisa agrícola, usamos a autoridade do ex-ministro Delfim Netto (“Embrapa”, Folha de S.Paulo, 11/04/2012) para esclarecer que a Embrapa tinha sido criada “para inovar, criar e transmitir conhecimentos, usando as empresas privadas como instrumento para disseminá-los”, e não para ser relevante em mercados ocupados por empresas privadas. E alertávamos que o verdadeiro risco de a empresa perder sua relevância era perder a capacidade de antecipar tendências e liderar agendas estratégicas. Em 2018, voltamos ao tema com o artigo “A crise e o futuro da Embrapa”, chamando atenção para o esgarçamento institucional e os desafios de redefinir seu papel em um mundo em transformação.
Hoje, é preciso insistir: o caminho mais curto para a irrelevância da Embrapa é o de transformá-la em uma prestadora de serviços para atender demandas pontuais de empresas e do setor privado, o que sem dúvida nenhuma ocorreria se sua solvência for vinculada ao aporte de recursos privados.
Que ninguém se engane: a articulação entre pesquisa pública e setor privado é desejável e saudável. O diálogo com o setor produtivo, a escuta ativa das demandas e a colaboração para desenvolver soluções práticas são parte fundamental da função da pesquisa aplicada. Mas confundir essa articulação com “soluções” que podem levar à subordinação seria um erro grave.
Instituições públicas de pesquisa existem para servir à sociedade como um todo – e não apenas a segmentos específicos, mormente aqueles que têm capacidade para buscar algumas respostas no mercado. Seu compromisso é com o longo prazo, com a produção de conhecimento que não necessariamente gera lucros imediatos, mas que é indispensável para garantir segurança alimentar, sustentabilidade ambiental, resiliência climática e inovação social. Não me canso de relembrar que, nos anos 1970, quando os jovens pesquisadores enviados para se qualificar no exterior, sob a orientação visionária do doutor Eliseu Alves e do ex-ministro Alysson Paulineli, voltaram ao Brasil e iniciaram o trabalho na Embrapa, era comum a crítica de que suas pesquisas não atendiam às necessidades do setor, não respondiam aos problemas sociais e assim por diante. E foram essas pesquisas, “desconectadas” da realidade, que geraram o conhecimento e parte das tecnologias que viriam a ser chaves para o sucesso da agricultura nos anos posteriores.
A crise atual da Embrapa não pode ser resolvida simplesmente com o aporte de fundos privados e redirecionando seus esforços para demandas privadas. Isso equivale a amputar sua capacidade de pensar o futuro, de atuar em áreas negligenciadas pelo mercado, de liderar missões nacionais de interesse estratégico. Instituições como a Embrapa, as universidades públicas, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), para citar algumas, foram desenhadas para isso: para ocupar o espaço em que o mercado não entra, mas que a sociedade não pode abandonar.
A agricultura brasileira enfrenta desafios monumentais. A pressão por mais produtividade convive com a urgência da sustentabilidade. A crise climática impõe novas exigências tecnológicas e institucionais. A desigualdade regional e a dualidade estrutural do campo seguem como feridas abertas.
Esses problemas exigem um esforço coordenado, contínuo e visionário – algo que dificilmente será liderado por agentes privados, cuja lógica é, por definição, mais imediatista e orientada para retornos financeiros. E não tem nada demais que seja assim: ao contrário, apenas assim o setor privado pode desempenhar o papel fundamental no desenvolvimento econômico e social do país. O que está em jogo é a capacidade de o Brasil manter uma agricultura inovadora, mais inclusiva e radicalmente responsável do ponto de vista ambiental. E só a pesquisa pública tem as condições para articular essa agenda de médio e longo prazo, com legitimidade e autonomia. A Embrapa deveria ser o epicentro desse esforço, junto com as demais instituições, públicas e privadas, que participam – ainda que desarticuladamente – do Sistema Nacional de Inovação Agropecuária.
É verdade que a Embrapa enfrenta sérios problemas internos. A burocratização excessiva, a perda de quadros experientes, a falta de uma política clara de inovação organizacional e a dificuldade de comunicação com a sociedade são entraves reais. Entre os aprimoramentos está sem dúvida nenhuma a busca por novas fontes de recursos para financiar a pesquisa, mas nenhuma dessas questões se resolve simplesmente pelo aporte de recursos do setor privado e pela privatização disfarçada de uma parte de sua agenda de pesquisa.
É inegável que a pressão exercida sobre a Embrapa para que capte recursos extraorçamentários resulta, na prática, na transferência da responsabilidade pelo financiamento da pesquisa agropecuária do governo federal, por meio do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), para a própria Embrapa. Em outras palavras, o discurso que atribui à Embrapa a necessidade de “buscar recursos” insinua que a insuficiência de investimentos não decorre de uma falha do governo, mas de uma suposta inação da empresa. Tal narrativa, do ponto de vista político, tem o efeito de desvalorizar a imagem da Embrapa, ao mesmo tempo em que exime o Mapa de sua accountability no que tange ao suporte financeiro adequado às atividades de pesquisa. Esse não reconhecimento não significa aceitar que a Embrapa esteja fazendo, adequadamente, seu dever de casa, entre os quais o de “buscar recursos” que contribuam para sua sustentabilidade e autonomia como instituição pública.
O Estado brasileiro investiu recursos escassos significativos na construção da Embrapa, e aquilo de que precisamos é uma renovação institucional que preserve – e não elimine – sua missão pública. É necessário recompor o orçamento da empresa, garantir previsibilidade de financiamento e promover uma revisão estratégica séria, com envolvimento da comunidade científica, do setor produtivo e da sociedade civil.
Em outras palavras: não se trata de defender a Embrapa como ela está, mas de defender o que ela deve continuar sendo. Isso implica reconhecer seus erros e limitações, mas sobretudo reafirmar sua importância como instrumento do Estado brasileiro para construir um projeto de futuro para a agricultura.
A quem interessa a fragilização da Embrapa? Essa é uma pergunta que precisa ser feita. O esvaziamento da Embrapa não é apenas um problema administrativo: é uma escolha política. Uma sociedade que diminui os investimentos em ciência e tecnologia escolhe a dependência, a perda de soberania e o atraso. Uma sociedade que transforma instituições públicas em apêndices de interesses privados abre mão do interesse coletivo.
É possível – e necessário – discutir novas formas de gestão, melhorar os mecanismos de parceria com o setor privado, introduzir métricas de desempenho e garantir maior transparência. Mas tudo isso deve estar subordinado a um compromisso inegociável: a Embrapa é um ativo estratégico do Estado brasileiro e deve continuar sendo um espaço de produção de conhecimento público, orientado pelo bem comum.
A Embrapa não é um fim em si mesma. Ela é instrumento de um projeto maior: o desenvolvimento sustentável, soberano e inclusivo da agricultura brasileira. Desfigurar esse instrumento em nome de soluções de curto prazo seria não apenas um erro técnico, mas uma irresponsabilidade histórica.
O Brasil precisa da Embrapa – e precisa de uma Embrapa forte, autônoma, pública e voltada para os desafios do futuro. Não podemos permitir que a crise atual seja usada como pretexto para desmantelar um patrimônio construído com décadas de investimento público, dedicação científica e compromisso social.
É hora de reafirmar, com clareza e coragem, que o interesse público não é negociável.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
Antônio Márcio Buainain é docente do Instituto de Economia da Unicamp