“O Brasil lançou um programa inédito para a ciência, tecnologia e inovação: atrair cientistas estrangeiros, de qualquer idade e em qualquer fase da carreira, para realizarem suas pesquisas em instituições brasileiras. O público-alvo são pesquisadores dos Estados Unidos.
Nossas agências de fomento à pesquisa, nossas universidades e nossos centros de pesquisa perceberam a oportunidade e, em uma ação integrada, lançaram, junto a instituições renomadas dos Estados Unidos, a chamada pública Come Over Researchers (Core), parte de um conjunto maior de ações de atração de talentos que alguns países, de forma concertada, lançaram tendo por alvo os Estados Unidos: o Move Away, Go Abroad (Maga).“
A notícia acima assim como o título deste texto são falsos. Mas poderiam ser verdadeiros. A oportunidade existe.
Um programa similar, mas para a atração de brasileiros no exterior, foi lançado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em 2024, com três componentes:
- Atração e fixação de talentos (para “repatriar” “pesquisadores brasileiros que estão no exterior bem como a manutenção no país de pesquisadores que realizaram sua formação no exterior nos últimos anos”), que recebeu cerca de 1.600 propostas (a chamada previa até mil projetos contratados neste componente);
- Apoio a projetos em rede com pesquisadores brasileiros no exterior (para estimular o intercâmbio de conhecimento entre pesquisadores e grupos de pesquisa no Brasil com pesquisadores brasileiros radicados no exterior; houve mais de 600 propostas aprovadas)
- Subvenção econômica à inovação (esse com chamada conduzida pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), para conceder recursos a fim de que empresas brasileiras contratem pesquisadores e/ou profissionais brasileiros que estejam atualmente radicados no exterior – resultados preliminares mostram apenas três propostas de empresas; talvez venham mais).
Três observações sobre os primeiros resultados dessas chamadas de propostas: a) há muita gente interessada em voltar para o Brasil, confirmando os estudos sobre diáspora na ciência brasileira conduzidos, entre outros, pela pesquisadora Ana Maria Carneiro e equipe[1]; b) a formação de redes com brasileiros no exterior deve ter um impulso decorrente dessa chamada de projetos; e c) há poucas empresas interessadas em atrair pesquisadores no exterior para fazer pesquisa por aqui.
Mais uma vez, o país mostra força no lado da pesquisa acadêmica e debilidade no lado da pesquisa para inovação. Sempre foi assim, apesar dos esforços em balancear esses dois lados do mundo da pesquisa.
De toda forma, a “repatriação” de pesquisadores parece ser um caminho interessante para fortalecer e ampliar o alcance da pesquisa no país.
As três linhas do programa Conhecimento Brasil se complementam: trazer de volta é importante, mas colaborar com os que lá fora estão também é; melhor ainda seria se empresas entrassem com força.
A falta de interesse de empresas pode se dar por vários motivos que, agrupados, poderiam ser assim definidos: não participam do edital porque não precisam de mais pesquisadores; não participam porque não vale a pena (custos, outras formas de ter pesquisadores etc.). Dadas as características da chamada, a primeira explicação parece a mais convincente.
Isso posto, e voltando agora para a imaginada chamada Core do imaginado programa Maga, vejamos o que está em jogo.
Desde que o 47º presidente do Estados Unidos tomou posse, em 20 de janeiro de 2025, não passamos um dia sem notícias sobre cortes orçamentários, demissões e/ou banimento de temas de pesquisa naquele país. Algumas notícias do início de 2025, listadas pelo ChatGPT após três diferentes prompts, são:
- Johns Hopkins Slashes More Than 2,000 Jobs Due to Usaid Cuts. The cuts at the university’s global health affiliate, medical school and public-health school follow loss of $800 million in Usaid grants;
- At the National Institutes of Health (NIH) a cap was introduced on indirect cost reimbursements at 15%, down from previous rates ranging between 30% and 70%. This reduction threatens funding for essential research infrastructure and support services;
- There was a suspension of grant funding at the National Science Foundation (NSF), leading to financial uncertainties for ongoing research projects. Additionally, the NSF announced layoffs affecting 25% to 50% of its workforce, with 168 employees terminated in February 2025;
- At the National Oceanic and Atmospheric Administration (Noaa) approximately 880 employees, or 5% of the workforce, were laid off, impacting various scientific and environmental programs;
- Significant data resources from the Centers for Disease Control and Prevention (CDC), such as the social vulnerability index and environmental justice index, were removed from public access, hindering research and public health initiatives.
Com especial atenção, o governo federal determinou, no dia de posse do presidente (Executive Order 14151), o banimento de programas de pesquisa voltados para – ou com ações de – diversidade, equidade e inclusão (DEI). O título da ordem executiva diz: “Ending Radical and Wasteful Government DEI Programs and Preferencing”. A medida determina a suspensão das ações, políticas e mandatos no governo federal relacionados à DEI.
Universidades e centros de pesquisa estão atônitos com a ordem, começando por não saber o que contitui e o que não constitui uma ação ou programa ou política que seja classificada como DEI.
Afinal, o que deve ser incluído? Pesquisas em saúde pública que requerem estudos sobre tratamentos em diferentes raças e gêneros serão banidas? Pesquisa sobre o comportamento de coortes de consumidores ficam proibidas? Medidas de inclusão de populações excluídas em mercados de consumo não poderão mais ser conduzidas?
Aqui, duas notícias sobre isso, uma da área da educação, outra da saúde, dão dicas:
- The U.S. Department of Education has taken action to eliminate DEI initiatives, including removing references to them in public communications and within its workforce, aligning with the administration’s commitment to end such programs;
- The NIH is terminating several active research grants related to studies involving LGBTQ+ issues, gender identity, and DEI, affecting ongoing research and associated personnel.
Como se a realidade pudesse ser apagada por decreto. Bem ao estilo dos autocratas: proíbe-se o que não se gosta para que não seja mais visto nem comentado.
Estaríamos vivendo um novo macarthismo, como o que assediou, perseguiu e arruinou a vida de profissionais, em especial atores, jornalistas e, claro, cientistas? Só o tempo dirá.
O desmantelamento em curso mira também as políticas de inovação tecnológica. Em sua comunicação ao Congresso, feita agora no mês de março de 2025, Donald Trump pediu o cancelamento do Chips and Science Act, um pacote de mais de US$ 50 bilhões criado por meio de um acordo entre democratas e republicanos em 2022 para estimular a produção local de semicondutores e financiar pesquisas em diversas áreas, especialmente Stem (sigla em inglês para ciência, tecnologia, engenharia e matemática). Segundo a NSF, se cumprido o orçamento previsto, recursos autorizados pela lei dobrariam o orçamento da agência até 2027.
A atual administração republicana parece acreditar que reverter a perda de competitividade por meio de tarifas comerciais, cortar gastos em pesquisa e inovação e proibir temas de pesquisa seja uma demonstração de força. Parece mais uma demonstração de declínio. O declínio do império, por três razões simultâneas, cujo todo é maior que a soma das partes: admite a perda de competitividade de boa parte da indústria e corre para supostamente protegê-la, recusa o papel crucial do Estado no desenvolvimento científico e tecnológico que daria sustentação à competitividade e, para piorar, cerceia a origem de tudo, que é o avanço do conhecimento.
A hipótese de que tudo isso seja politicamente calculado e, naquilo que realmente importa, os Estados Unidos continuarão como líderes, talvez seja verdade. Não dá para saber. De novo, só o tempo dirá.
Entretanto o que esta semana me escreveu um colega professor e diretor em uma grande universidade em Washington dá a entender que a hipótese da agressão calculada é fraca:
“I have seen all Presidents since Ronald Regan. This situation cannot be compared. We live the worst moments of the country in living memory”.
Tentando aqui acionar algum lado positivo disso tudo, volto à notícia falsa do início deste texto.
Em 6 de janeiro de 2011, a revista britânica Economist publicou um artigo intitulado “Go south, young scientist”. O texto elogiava a ciência brasileira e dizia que o país havia crescido no cenário global da pesquisa e dispunha de boa infraestrutura em várias áreas e que queria estabelecer a internacionalização de mão dupla. Faltaria flexibilidade nos processos de contratação para fixar pesquisadores estrangeiros no país, com salários competitivos, especialmente os mais experientes.
O texto enfatizava: “Fortunately, this is a good moment to lure foreign scientists. Research funding is being squeezed in Europe and North America”. Talvez essa frase caiba melhor hoje que há 14 anos. Vejam esta matéria publicada esta semana na revista Science, falando do brain drain nos Estados Unidos.
Talvez a imaginada chamada pública Core possa virar realidade.
Por que não?
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
[1] CARNEIRO, A. M.; Gimenez, A.M.N. ; GRANJA, CINTIA DENISE ; BALBACHEVSKY, E. ; CONSONI, F. ; ANDRETTA, V. F. . Diáspora brasileira de ciência, tecnologia e inovação: panorama, iniciativas auto-organizadas e políticas de engajamento. IDEIAS (UNICAMP), v. 11, p. 1-29, 2020.