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A pior forma de solidão

"Pois bem, aqui vai a minha versão da famosa frase de Nelson Rodrigues: a pior forma de solidão é a companhia de um puxa-saco."

Meu primeiro contato com Nelson Rodrigues foi indireto e incompleto. Sua obra, para mim, se resumia ao teatro, digo, às adaptações de seu teatro para a televisão. Não gostei. Por isso, nunca me interessei por suas crônicas. Só muitos anos depois, levado por uma cruel abstinência de bons textos, resolvi dar uma chance ao Anjo Pornográfico. E logo me tornei órfão de Nelson Rodrigues. Foi essa experiência que me ensinou a ler os autores e não os comentários ou adaptações (muitas vezes, deformações). Tão encantado fiquei que até assinei O Globo só para ter acesso ao acervo digital que continha suas crônicas desde a década de 1960. Li todos os seus escritos que consegui encontrar. Alguém poderia perguntar: por que ler sobre assuntos passados? Porque Nelson Rodrigues usava o cotidiano para refletir sobre o Universal, o atemporal. Certamente seu estilo não agradará a todos. Era repetitivo (obsessivo), adorava hipérboles e, sempre muito provocativo, não poupava ninguém, nem mesmo seus amigos como Otto Lara Resende. Preferia pecar pelo excesso, desde que impactasse o leitor. Definitivamente, não escrevia para agradar [1].  

Nelson Rodrigues eternizou várias frases polêmicas, como “toda unanimidade é burra”, ao narrar o assassinato de seu irmão. Outra bastante conhecida é o mote deste texto: “A pior forma de solidão é a companhia de um paulista”, encontrado na crônica “O Paulista”, publicada em 7 de agosto de 1968. O enredo versava sobre a visita de um paulista e sobre como, apesar de seus sinceros esforços para engatar um diálogo, o visitante respondia apenas com monossílabos, matando a conversa antes mesmo de começar. Quando o paulista finalmente se foi, Nelson voltou à máquina de escrever, mas as palavras recusavam-se a fluir, o papel seguia “branco, virginal”. Foi nesse instante que a famosa frase brotou, como se viesse de algum canto obscuro da alma.

O cronista também descreve o efeito do aforisma sobre os leitores, destacando especialmente uma conversa telefônica com uma senhora paulista de 80 anos. Casada aos 15 anos com um conterrâneo e viúva após 65 de casamento, ela lhe fez uma confissão comovente: “Passavam-se dias, semanas, meses de silêncio absoluto. Muitas vezes, eu já nem lembrava como era a voz do meu marido – e às vezes até esquecia a minha própria”. Inspirado por esse relato, cria mais uma de suas frases definitivas: “Um ficava escutando o silêncio do outro”. E encerrou o artigo com uma imagem poderosa: “Ele agonizara sem gemer. E, depois, lá foi ela para a capelinha. Floriu, velou e chorou um desconhecido”. Pura ficção? Talvez, mas, como sempre, Nelson Rodrigues tocava fundo em uma dolorosa verdade humana: a convivência sem diálogo, quando uma companhia pode ser mais solitária que a própria solidão.

Imagino que muitos dos leitores do Jornal da Unicamp sejam paulistas. Por isso, peço-lhes a grandeza de espírito de não se ressentirem com o Anjo Pornográfico. Nelson Rodrigues, afinal, era um caricaturista das letras. Usava palavras para ampliar os traços humanos, o que, como toda caricatura, pode desagradar ao exagerar nas expressões. Eu não sou paulista, mas vivo em São Paulo há mais de trinta anos e absorvi muito da cultura local. Já me sinto paulista, assim como meus filhos. E, confesso, vejo meu próprio reflexo no “O Paulista”.

Entretanto creio que a súbita inspiração que levou Nelson a criar sua polêmica frase o traiu. Ele errou ao apontar “a verdadeira pior forma de solidão”. É isso que pretendo argumentar neste texto. Mas, antes, peço a licença de recorrer a um termo popular, em vez da palavra culta, para efeito retórico. Temos, no português, a palavra “bajulador”, com sua definição clara nos dicionários. Mas esse arquétipo humano é mais conhecido, no nosso cotidiano, como o “puxa-saco”. Só de ler essa expressão, surgem imediatamente nomes e rostos familiares. Ela dispensa explicações, porque faz parte do nosso convívio diário.

Mas o que isso tem a ver com o tema deste texto? Pois bem, aqui vai a minha versão da famosa frase de Nelson Rodrigues: a pior forma de solidão é a companhia de um puxa-saco.

Explico. Por definição, “solidão” é justamente a ausência de companhia: é estar só [2]. Quando estamos sozinhos, aquela voz interior que chamamos de Consciência é a nossa única companheira. Às vezes, passamos horas e horas conversando conosco mesmos. Alguns denominam de “meditação” essa experiência. E, certamente, cada um de nós já se encontrou consigo mesmo, quer por vontade própria, quer por imposição das circunstâncias. Para alguns, é uma forma de autoconhecimento; para outros, uma verdadeira tortura (principalmente nos dias atuais).

E, nesses momentos de “solidão”, nos damos conta de um fenômeno completamente inusitado: embora a Consciência seja “nossa” no sentido estrito da palavra, muitas vezes ela discorda de nós, nos acusa de erros e até mesmo se rebela, não nos deixando em paz. É como se fosse outra pessoa! Estranho, não? Aqui o importante é destacar que a solidão pode nos beneficiar, seja pelo simples recolhimento reparador, seja pelo reconhecimento de erros. Em ambos os casos, há um crescimento espiritual. Como dizia a sabedoria dos antigos, antes só do que mal acompanhado.

Pois bem, a companhia de um puxa-saco é a pior forma de solidão. Repito: a pior forma de solidão é a companhia de um puxa-saco. O puxa-saco é a anticonsciência. Na tentativa de sempre agradar, todo puxa-saco concorda com o seu “chefe”[3]. Denominarei de “chefe” a vítima, voluntária ou não, de um puxa-saco. Desnecessário dizer que não é imprescindível uma relação hierárquica entre o puxa-saco e a sua vítima. Na prática, as relações são as mais diversas, passando pela simples relação de amizade, pela de parentesco e, certamente, pela de subordinação. Mas o importante é que o puxa-saco invariavelmente concorda com o seu chefe. Ou, ainda, concorda mesmo quando discorda.

Querem um exemplo? Se o chefe diz: “Eu estou errado”, lá vem o puxa-saco discordar e jurar por Deus que o chefe está certo. É paradoxal, mas acontece. O puxa-saco é a nossa anticonsciência, pois não nos pertence e tampouco nos conhece por dentro, mas nos convence de que somos perfeitos. Diga se essa anticonsciência não é pior do que a Consciência que, por nos pertencer, nos conhece intimamente e nos ajuda a evitar ou, pelo menos, corrigir alguns erros. Certamente, a companhia dos puxa-sacos é a pior solidão. Cada um de nós, como qualquer ser humano, pode cometer erros. Aí é que o papel da Consciência (e de bons amigos) é vital. O problema é quando estamos rodeados de puxa-sacos. Por serem a anticonsciência, nos convencem de que estamos certos, mesmo quando errados. Pensam estar fazendo um bem, mas, na verdade, estão produzindo um mal terrível.

Nelson Rodrigues, que enxergava o ser humano como quem desmascara um farsante, teria rido ao ver a ingenuidade dos puxa-sacos. Ah, sim, eles têm boas intenções! Não há dúvida de que querem agradar, ser úteis, fazer parte do mundo daquele de quem lustram o ego. São devotos, quase anjos da guarda, sempre prontos a aplaudir até os tropeços. Mas, na tentativa de proteger, acabam por assassinar a verdade. O puxa-saco, mesmo com o coração cheio de boas intenções, é um veneno doce. Ele sufoca a crítica, silencia o juízo e nos veste de uma couraça de perfeição que nos impede de enxergar nossos próprios erros. No fundo, o puxa-saco nos condena ao pior dos castigos: o isolamento da realidade. E o pior não é ele; é a nossa própria alma, que começa a acreditar na mentira. Porque, por mais bem-intencionado que seja, o puxa-saco nos afasta de nós mesmos, até que, um dia, diante do espelho, não reconhecemos mais quem somos.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.


[1] Segundo Nelson Rodrigues, ele só se tornou ele mesmo quando parou de se preocupar com o que diria Bandeira, Drummond etc. e começou a escrever para si mesmo. Antes, Bandeira e Drummond eram como que coautores…

[2] Preciso fazer uma ressalva à definição. No passado, e, particularmente, hoje, é possível estar só no meio de uma multidão.

[3] Avaliar um chefe é assunto sério. Mas arriscaria conjecturar que a qualidade de um chefe é INVERSAMENTE proporcional ao número de puxa-sacos que o rodeiam.

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