Três estudos recentes sobre os sistemas de pesquisa de nações que não pertencem ao grupo de países desenvolvidos trazem diferentes evidências que nos ajudam a entender por que somos como somos.
O primeiro é um conjunto de dados produzidos pelo professor Brito Cruz (Elsevier) intitulado Nova Geografia da Pesquisa; o segundo é um estudo sobre a cartografia da ciência aberta no mundo e a posição dos países do Sul Global, desenvolvido pela professora Maria Fernanda Beigel, da Universidade de Cuyo (Argentina), e intitulado “Cartographies for an inclusive Open Science”; o terceiro é um artigo escrito pelo professor Luciano Digiampietri e colaboradores com o título “Approaching bibliometrics and prosopography”.
Entre geografias, cartografias e prosopografias (no caso, resumidamente, o estudo de trajetórias profissionais), descobrimos evidências sobre onde estamos e sobre por que somos como somos. E, sobretudo, refletimos sobre o futuro que estamos construindo na pesquisa brasileira (e de outros países similares em renda e nível de desenvolvimento).
Na Nova Geografia, vemos que a produção científica global cresceu, entre 2003 e 2023, a taxas de 5% ao ano (a.a) e que a taxa de crescimento do número de autores ocorreu em ritmo ainda maior: 5% a.a. nos países de alta renda e 10% a.a. nos de baixa e média renda. Vemos também que, segundo a base Scopus, hoje os países de baixa e média renda já produzem mais de 50% dos artigos e contam com mais de 50% dos autores.
Vale um alerta: nessa conta entram China e Índia, dois gigantes que tendem a ficar ainda maiores. A China, desde 2018, ultrapassou os Estados Unidos em número de publicações, respondendo hoje por mais de um quarto do total global (medido pela base Scopus). A Índia ainda produz metade dos Estados Unidos, mas já é o dobro do Reino Unido. Os dois são grandes, mas têm trajetórias bem diferentes que demandariam de uma análise à parte.
Mesmo deixando de lado esses dois países, no quesito crescimento de número de autores de artigos, outros países da faixa de renda média ou média-baixa, tais como Brasil, Irã, Malásia e Paquistão, aparecem com taxas anuais de crescimento de autores elevadas e superiores às de países centrais.[1]
Uma pergunta que talvez o leitor já esteja se fazendo é sobre o aumento do número de citações das publicações dos países de renda média e baixa. Segundo os dados da Nova Geografia, hoje os números já rivalizariam com os dos países centrais nos estratos mais altos (artigos no top 1% de citações).
Por essas razões, o autor projeta uma nova geografia da pesquisa, já que a produção científica vem crescendo em ritmo maior que nos países desenvolvidos.
É possível que estejamos ainda alimentando sentimentos de inferioridade e que ainda vejamos o cenário global de uma perspectiva terceiro-mundista. Mas também é possível que essa nova geografia esteja apenas se anunciando, sem alterar, de forma perceptível, o status quo da pesquisa em âmbito global (excetuando-se o caso da China).
De toda forma, o ticket para participar do jogo nós já temos, há bastante tempo. Creio que em todas as áreas do conhecimento. Produzimos conhecimento de qualidade e em quantidades crescentes. Aparecemos menos do que produzimos e desconfio que usamos o conhecimento que produzimos bem menos que poderíamos.
As razões? Bem, são diversas, como em todo problema complexo. Discuto algumas delas logo abaixo.
No segundo estudo, sobre a cartografia da ciência aberta, a autora apresenta dados que se juntam aos citados acima. O estudo trata da situação de sete temas relacionados à produção científica em países do Sul Global, com foco na ciência aberta. Uso aqui apenas dois deles: a prevalência do Digital Object Identifier (DOI) como mecanismo de identificação automática de publicações e de citações; e o multilinguismo em publicações científicas.
O amplo uso de identificadores digitais persistentes de objetos, dentre os quais o DOI é o mais conhecido e utilizado para artigos e revistas, influencia a capacidade de busca automática por publicações e citações e, consequentemente, das métricas que são usadas para medir a performance de pesquisadores, universidades, revistas e países.
No trabalho sobre a cartografia, a autora ressalta que o uso de DOI nos países do Sul Global é bem mais reduzido em comparação com os do Norte Global.[2] Na plataforma Directory of Open Access Journals (DOAJ), 54% das revistas editadas em países da América Latina não possuem esse identificador. No Brasil, 48%. A autora estima que países de maior renda e de menor população apresentam entre duas a oito vezes mais revistas com DOI.
Considerando o total de DOIs (não apenas objetos abertos), os países latino-americanos apresentam cifras muito menores do que seu número de publicações. É bem possível que isso contribua para que apareçam com menor frequência nos indicadores globais. Sem identificadores, quase nada entra na numerologia produzida pelas grandes bases de publicações científicas.
O multiliguismo é um tema que vem sendo destacado em vários fóruns, especialmente os que buscam reportar os impactos da ciência em línguas que não o inglês. Desde sempre ouvi meus colegas dizerem que o inglês é a língua da ciência. E é, de fato.[3] Mas seria a única? Como regra geral, publicar em português, por exemplo, tende a fazer o texto ter menos alcance que se o fizermos em inglês. O ponto que ganha destaque na discussão atual é que o inglês não deveria ser considerado o único idioma relevante da ciência.
Poderia aqui colocar algumas razões fatuais, mais ou menos óbvias, do porquê disso. Mas vejamos dados que nos ajudam a entender.
No estudo sobre a cartografia (tabelas 7 e 8), vemos os seguintes dados:
- Perto de 95% das publicações baseadas na Web of Science são em inglês; já espanhol e português, juntas, somam 0,7%;
- Na base Scopus, esse número é um pouco diferente: 85% em inglês; português e espanhol somam quase 1,6%;
- Na base OpenAlex, 73% e 4% respectivamente para inglês e para português e espanhol juntas;
- A Scielo registra basicamente um terço para cada um desses três idiomas.
Evidentemente que a fonte muda o resultado da busca. Os gráficos apresentados no primeiro estudo, da nova geografia, seriam diferentes se a base de busca fosse a OpenAlex ou a Scielo. Pergunta: há alguma forma de melhor contabilizar o que se produz? Ou estamos presos a uma suposta (imposta) regra de ouro que não nos permite divergir?
Que a busca por nossos artigos e citações na Web of Science e na Scopus influenciam os resultados, já sabemos. Mas é preciso estudar mais esse assunto para entender melhor como o modelo funciona – e encontrar soluções.
O terceiro estudo que mencionei no início do texto, o da “prosopografia” (Digiampietri et al., 2024), analisou publicações de pesquisadores produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e mostrou que 54% e 57% dos artigos desses autores registrados na plataforma Lattes encontram-se nas bases Web of Science e Scopus, respectivamente. Os estudiosos fizeram o mesmo no caso das publicações dos pesquisadores tenured do Consejo Internacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet) da Argentina, encontrando 50% delas naquelas duas bases.
Seriam os artigos presentes nessas bases menos científicos?
Mas espere. Esses números ficam relativamente suavizados quando analisados segundo as grandes áreas do conhecimento. Para o Brasil, os percentuais sobem: 66% (área de agricultura), 70% (área de biológicas) e 80% (área de exatas) dos artigos daqueles pesquisadores encontram-se nas duas bases ou em pelo menos uma delas.
As áreas que mais ficam “de fora” das bases são as das ciências sociais e humanidades: 80% dos artigos dos pesquisadores produtividade do Brasil e 72% dos da Argentina não estão na Web of Science nem na Scopus.
Não coincidentemente, a maior parte das publicações nessas áreas não são em inglês. As pontas se juntam.
O que aconteceria com as avaliações se as bases fossem ampliadas, e hoje há várias delas, desde as menos supervisionadas, como o Google Acadêmico, até outras, mais amplas, com curadoria, tais como a Dimensions, a Scielo e a Open Alex. O estudo de Digiampietri et al. (2024) dá uma boa ideia do que ocorreria.
Há um elefante na sala. Faz tempo. Enquanto estiver por aí, geografias, cartografias e prosopografias não vão mudar tão cedo.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
[1] Neste texto empregaremos diferentes termos para denominar blocos de países, justamente porque os três textos nos quais nos baseamos usam diferentes abordagens. A nova geografia usa faixas de renda definidas pelo Banco Mundial: alta, média e baixa renda; a nova cartografia emprega termos como países centrais e Norte Global e Sul Global; a prosopografia usa peripheral centers para falar de América Latina e especialmente de Brasil e Argentina.
[2] Há um custo básico de US$ 1 por DOI. O valor, embora não seja nada elevado, em grandes quantidades, pode ser um fator de menor adoção.
[3] O atual rei Charles III, ainda quando príncipe, dizia que o principal produto de exportação da Inglaterra, desde a formação de seu império, teria sido o idioma, que virou universal para a ciência e quase tudo o mais em termos de comunicação global. Ainda é assim, só não sabemos até quando.