Em agosto deste ano, foi divulgado, pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nìvel Superior (Capes) e pela Clarivate, mais um relatório dessa empresa sobre a produção científica brasileira[1]. O documento, intitulado Panorama das Mudanças na Pesquisa no Brasil, contou com o patrocínio da Capes, instituição que cuida de toda a pós-graduação no país e que é o locus responsável por gerar a maior parte da produção científica brasileira. Como se sabe, tudo que a Capes faz, apoia e divulga tem repercussão e sinaliza valores da pesquisa para o país.
Daí o interesse em conhecer o que o relatório mostra.
Trata-se de uma análise de publicações constantes da Web of Science (WoS), complementada por outras bases, da própria Clarivate.
Basicamente, todas as informações do relatório podem ser obtidas por qualquer um que tenha acesso àquelas bases (e várias organizações no Brasil dispõem desse acesso). A WoS é, por certo, uma referência global, tanto quanto a Scopus (Elsevier) e a Dimension (Digital Science), ou ainda bases abertas e gratuitas como a OpenAlex e a Scielo.
Uma primeira observação é que essas bases variam na cobertura e algumas são mais abrangentes que outras. Uma segunda observação é que bases abertas e de acesso gratuito já existem e oferecem material que pouco ou nada deixam a desejar às fechadas e pagas. Já a cobertura das revistas científicas varia muito entre elas, podendo alcançar o dobro ou triplo, a depender da referência.[2]
O uso de diferentes fontes, com diferenças importantes entre elas, costuma levar a diferentes dados e diferentes interpretações. A ideia de que a ciência é global deveria ser verdade, mas esse é um ponto de fuga: depende do observador. Como vem sendo discutido e demonstrado na literatura especializada, há temáticas, abordagens, geografias, instituições e editoras “mais globais” que outras.
Assim, o primeiro cuidado que o leitor deve ter é que o relatório Clarivate/Capes parte de um recorte de dados identificado por alguém como importante. Um fotograma que seleciona um certo ângulo, com certa resolução. O documento está longe (e nem poderia ser diferente) de oferecer um retrato abrangente e aprofundado da pesquisa brasileira.
Esse alerta deveria estar na folha de rosto do relatório.
O documento traz informações atualizadas sobre alguns indicadores conhecidos da comunidade. E traz também algumas informações originais que chamam a atenção e despertam interesse de futuras pesquisas, pois só assim será possível entender o que significam.
Pela régua da WoS, estamos nos mantendo na 13ª posição global (em número de publicações), mas a importância relativa medida por número de citações (normalizadas por área de conhecimento e período) tem se mantido abaixo de medianas comparativas com o G7 (o que é esperado), com os Brics (esperado, mas para alguns deles) e com a América Latina (pouco esperado).
Ainda sobre isso, o relatório, na Figura 26, faz uma análise do “desempenho” do Brasil em dez “principais” tópicos de citação globalmente. A figura mostra que, dos tópicos selecionados da WoS, seis estão classificados como pontos fracos e dois como pontos de ameaça relativa. Sobram apenas dois como pontos fortes do país: resistência a antibióticos e coronavírus.[3]
Pergunta que fica: essa composição de informações significa que estaríamos ficando mais produtivos (ou mantendo a produção) e menos relevantes? Essa conclusão faz sentido? Os dados e análise utilizados são a melhor forma de olhar a evolução da pesquisa no Brasil?
Em termos de publicações com acesso aberto, segundo o relatório, estamos relativamente estáveis, com ligeiro aumento nas do tipo Gold, que significa que o artigo está aberto, mas que uma taxa de processamento (APC) foi paga para a editora. Uma pena que o relatório não separa o que é totalmente aberto e livre de APC (conhecido por acesso Diamond). De acordo com o relatório, entre 20 países selecionados por terem maior produção científica no mundo,[4] os percentuais de acesso aberto variam de 36% (Índia) a 84% (Países Baixos), tendo o Brasil registrado 54%. A mediana desse grupo está em 60%.
Outra pergunta: deveríamos estar publicando mais em acesso aberto? Já que vários estudos mostram que eles têm maior impacto, não só em termos de número de citações, mas também e talvez principalmente na diversidade de quem lê, menciona, cita e usa o conhecimento?[5]
Na colaboração internacional, medida por coautoria com pesquisadores de outros países, o Brasil teria avançado. De menos de 30% há dez anos, passamos a 38%, sendo 13% com os Estados Unidos, 6% com Reino Unido, 4% com Espanha e com Alemanha. A mediana dos mesmos 20 países está em torno de 45%, variando de 23% a 75%.
Mais uma questão: deveríamos ter avançado mais em colaborações internacionais? Tanto no total quanto na diversidade de países e perfis de colaboradores?
Essas perguntas perdem clareza quando chegamos à Tabela 15, que apresenta indicadores bibliométricos comparando publicações brasileiras financiadas por agências nacionais e estrangeiras.
Basicamente, a tabela induz o leitor a pensar que a pesquisa brasileira só tem impacto quando é financiada por agências estrangeiras. As diferenças são tão grandes que se esperaria uma advertência ao leitor, do tipo:
“Atenção: esses dados, assim apresentados, sem ponderações e sem discussão, não significam que as agências brasileiras financiam pesquisas de menor impacto que as estrangeiras”.
Eu sei disso, é óbvio, e os autores do relatório também sabem disso, mas, em tempos de informação e opinião abundantes, que correm lépidas e são livremente usadas, todo cuidado com o que se escreve e fala é pouco. Ainda mais com a ciência.
O item intitulado “Colaboração e comercialização” usa três indicadores como proxies: artigos em coautoria com indústria, número de patentes e citações de artigos em patentes. Nenhum dado é sobre comercialização. Não sabemos como estamos nesse cenário do panorama da pesquisa.
Aqui, um exemplo concreto de como a fonte do dado pode mudar o resultado da análise. Na régua da WoS, o Brasil teria 1,5% de artigos em coautoria com empresas entre 2019 e 2023. Um acesso rápido (menos de cinco minutos) a uma base concorrente mostra 2,2% para o mesmo período. A diferença, considerando a amplitude apresentada na Figura 12 do relatório, é grande e mudaria a posição do país, assim como as conclusões comparativas globais.
As análises regionais e estaduais mostradas pelo relatório não trazem muitas surpresas. Além dos “suspeitos de sempre”, aparecem Estados fora do eixo geográfico tradicional com indicadores que chamam a atenção. Por exemplo, o Estado do Amazonas aparece bem posicionado para indicadores como colaboração internacional e artigos entre os 10% mais citados.
Nova pergunta: o que isso quer dizer? Certamente, que temos bons pesquisadores naquele Estado – como temos em todos. Mas o que mais precisamos conhecer para desenhar políticas mais bem informadas para a Amazônia? Há hoje vários programas voltados à Amazônia que poderiam se beneficiar de boas evidências produzidas pela pesquisa e pela pesquisa da pesquisa.
Para fechar, o relatório mostra um mapa do Brasil com as dez universidades com maior produção de artigos em ciências ambientais.[6] Interessante! Seria ilustrativo saber, além do número total de publicações por universidade, o número relativo ao tamanho da universidade (por exemplo, por docente/pesquisador).
O relatório, assim, traz indicadores e análises que valem mais pelo que despertam de dúvidas do que pelo que deles se pode concluir.
A bibliometria é uma ferramenta importante, útil e potente, por isso mesmo deve ser usada com cuidado, para não induzir análises e conclusões apressadas com potencial de fazer estragos à ciência do país.
A Capes, que vem acertadamente mudando seu modelo de avaliação dos programas de pós-graduação, incluindo indicadores de qualidade para além do número de publicações, citações e colaborações internacionais, em linha com o que vem acontecendo no mundo, certamente conhece os limites e o alcance do relatório.
Como referência nacional que é para a pesquisa brasileira, é importante que junto ao relatório venha o alerta de que muito mais precisa ser feito para se compor um retrato – e um panorama – da pesquisa brasileira. Afinal, tudo que a Capes faz, apoia e divulga tem repercussão e sinaliza valores para a pesquisa no país, não é mesmo?
Nossa própria capacidade de desenhar e analisar a situação da pesquisa brasileira pode e deve ir além.
Seguimos em busca de um panorama contemporâneo e, sobretudo, de uma foto nítida.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
[1] https://www.abcd.usp.br/wp-content/uploads/2024/08/Relatorio_panorama_da_pesquisa_brasil_clarivate-capes-agosto-2024.pdf
[2] Para quem quiser examinar comparativos entre as bases de dados científicos: https://arxiv.org/html/2401.16359v1 e https://openalex.org/about. Para a cobertura de revistas: https://link.springer.com/article/10.1007/s11192-021-03948-5 e https://link.springer.com/article/10.1007/s11192-024-04948-x?fromPaywallRec=false
[3] O relatório também apresenta tópicos de pesquisa em que o Brasil se destaca, nas Tabelas 11 e 12. São dez tópicos em cada, juntando todas as áreas do conhecimento. Sabe-se ali que “Vírus Zika, Separação de Fase Líquido-Líquido”, “Galáxia: Cinemática e Dinâmica, piroptose”, “Classificação, Responsabilidade Social Corporativa” e “Restauração Florestal, Gráfico de conhecimento” são tópicos nos quais a pesquisa brasileira tem peso no mundo. Muito bem, mas o que isso significa?
[4] Arábia Saudita, Suíça, Países Baixos, Reino Unido, França, Austrália, Canadá, Alemanha, Espanha, Itália, Estados Unidos, Polônia, Brasil, Japão, Coreia do Sul, Irã, Rússia, Índia, Turquia e China.
[5] Ver, por exemplo: https://www.science.org/content/article/open-access-papers-draw-more-citations-broader-readership.
[6] Tema importante, sem dúvida, mas qual não é?