Anton Makarenko foi um pedagogo ucraniano que viveu entre 1888 e 1939. Seu livro “Poema Pedagógico” relata sua experiência na criação e direção da “Colônia Gorki”, instituição dedicada à reintegração social de jovens marginalizados nos primeiros anos da União Soviética. Anton assumiu essa tarefa pouco depois da revolução bolchevique. A primeira parte do livro revela o entusiasmo e a dedicação com que desempenhava suas funções, munido de uma sólida formação pedagógica, psicológica e filosófica. Anton era um humanista. Conhecia as teorias pedagógicas mais “avançadas” do seu tempo, e o leitor se surpreende que as condutas respeitosas, não-violentas e estimulantes encontrassem acolhida na estrutura soviética, que poucos anos depois derivaria no stalinismo. Anton fundou a Colônia Gorki com uma cartilha de tolerância, aceitação e colaboração que hoje poderia ser exibida em qualquer escola moderna para a classe média progressista.
Tudo funciona muito bem, exceto pela conduta de Iuri, que é um dos jovens residentes na colônia. Iuri é insolente, arrogante e negativo em relação a qualquer proposta de cooperação ou de trabalho coletivo. Rejeita todos os apelos pacíficos e todas as tentativas de diálogo propostas por Anton. Iuri é rebelde, e a paciência de Anton persiste durante vários meses. Dia a dia, Iuri se mostra mais e mais agressivo.
Um dia, diante da última insolência de Iuri, Anton o derruba com um murro no queixo. Desde esse dia, a conduta de Iuri muda radicalmente, ele passa a colaborar com Anton e se converte em um dos seus melhores amigos. O interessante é a interpretação que Anton dá a este sucesso no seu livro. Obviamente, o humanista Anton não reivindica seu ato violento e deseja que não o tivesse cometido, mas interpreta seus resultados de maneira instigante. Segundo ele, ao esmurrar Iuri, Anton tinha revelado a seu discípulo, pela primeira vez, que este estava na presença de um ser humano, com sentimentos humanos e que o tratava como ser humano. Até então, a vida de Iuri tinha sido determinada por fatalidades e os primeiros meses de sua permanência na Gorki ratificavam que nada se podia esperar de outro ser humano que não fossem condutas estereotipadas, pré-fabricadas, o que hoje chamaríamos algorítmicas.
Anton tinha uma receita, certamente uma nobre receita, para tratar com seus jovens marginalizados, e a aplicava com rigor. O que o sensível Iuri percebia é que se tratava apenas de uma receita e que seu tutor a executava sem sentimento algum. Entretanto, o murro tinha mostrado a Iuri que estava interagindo com uma pessoa, capaz de atitudes e sentimentos de pessoa. E isso o levava a reconhecer a si mesmo como pessoa.
Pulemos um século. A loucura é uma das saídas eficazes para a despersonalização algorítmica. Ficamos loucos diante de cadastramentos, recadastramentos e re-recadastramentos efetuados através de “sites” que nos indagam uma e outra vez sobre os mesmos números e dados e aos quais não podemos dizer “Mas você já sabe disso!” Ficamos loucos diante da simplicidade cada vez mais complexa dos procedimentos para assinar um documento atestando nossa identidade. Ficamos loucos pela ilusória simplicidade dos aparelhos que servem para tudo, exceto para aquilo que desejamos, se é que ainda desejamos algo. Ficamos loucos pelos reconhecimentos faciais, pelas senhas e mais senhas que precisam ser confirmadas através de mensagens enviadas para dispositivos que devem ser recuperados através de outras senhas e reconhecimentos. Nos enlouquecem os caixas eletrônicos, as compras on-line, as ameaças dos hackers que podem roubar nossas identidades. Vivemos em estado de tensão permanente porque um pequeno descuido pode fazer com que o algoritmo zere nossa conta bancária ou porque podemos transferir nosso saldo para uma sapataria de Hong-Kong.
Queremos tratar com pessoas, e não com algoritmos, porque nossas psiques têm evoluído ao longo dos milênios para intercâmbios humanos, não para metabolismos digitais. Queremos professores e professoras, funcionários e funcionárias, vendedores/as, gerentes, médicos, médicas e advogadas. Há suficientes evidências para sustentar que o excessivo trato com algoritmos afeta negativamente nossa saúde mental, nossas relações pessoais e profissionais. Se não, contemplemos o espetáculo deprimente de casais desfrutando de um lanche enquanto consultam seus respectivos celulares, já que, se não o fizerem, ficam com a angústia de que podem estar perdendo algo importante determinado pelo algoritmo.
Domesticados pelos algoritmos, nossa rebelião não dará nenhum resultado, nenhum algoritmo desencadeará, com um murro, uma transformação em nós nem uma transformação nele mesmo. Não haverá murro, nem abraço.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.