O tema do aborto voltou a mobilizar a sociedade brasileira como consequência da tramitação do PL 1.904/2024 em regime de urgência na Câmara dos Deputados, ora adiado. O projeto pretende equiparar o aborto ao crime de homicídio, punindo vítimas de violência sexual com reclusão de 6 a 20 anos.
Semanalmente, atendemos cerca de 20 meninas e mulheres vítimas de violência sexual no ambulatório do Programa de Atenção Especial do Departamento de Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médidas (FCM) da Unicamp. Elas recebem o acompanhamento de uma equipe multiprofissional para reestabelecer sua saúde física e mental e prevenir complicações decorrentes da exposição sexual não consentida. Metade das pacientes atendidas tem menos de 18 anos; um quarto tem entre 10 e 14 anos. A maioria foi vítima da violência em ambiente doméstico, sob ameaça ou com uso de força. Quando realizado, o atendimento precoce garante haver raríssimos casos de complicações, como gravidez ou infecções. No entanto serviços bem estruturados de atenção à violência sexual são escassos no Brasil. A ampliação dos serviços de cuidados às vítimas de violência sexual deveria ser o foco dos congressistas.
A escassez de serviços contribui para o fato de recebermos muitas pacientes que, por conta de diversas barreiras, não conseguiram chegar até nós precocemente, sendo atendidas quando descobrem já estarem gestantes. Entre as barreiras, inclui-se a falta de informação sobre seus corpos e de acesso a serviços de saúde, particularmente entre as mais jovens, que desconhecem o funcionamento de seus órgãos reprodutivos e os sintomas precoces de gestação e que vivenciam o medo dentro de seus lares. Entre as mais velhas, predominam a vergonha e o sentimento de culpa, pois se encontram imersas em uma sociedade na qual, como fazem alguns de nossos políticos, culpabiliza-se a vítima. Independentemente da idade, porém, compartilham dos mesmos sentimentos de dor e desesperança.
A não interrupção dessas gestações representa uma tragédia para essas pacientes, agravando o sofrimento, causando depressão, ansiedade e estresse pós-traumático e aumentando o risco de suicídio. Além disso, expõe essas meninas a procedimentos abortivos perigosos, com risco de morte devido às condições inadequadas envolvidas nessas medidas desesperadas. O recorte racial é perverso: dados do Sistema Único de Saúde (SUS) indicam que, entre as mulheres pretas, a chance de morte durante o aborto é 95% maior; entre as indígenas, 200% maior.
Nos serviços de referência, os casos de aborto permitidos pela legislação em vigor são conduzidos em ambiente hospitalar, respeitando a privacidade e confidencialidade das vítimas, de modo a garantir que os danos físicos possam ser minorados. O atendimento psicológico a ser provido mostra-se fundamental para ajudar na recuperação da paciente frente aos danos emocionais sofridos.
Após o aborto seguro, é possível reencontrar essas meninas e mulheres e ver, gradualmente, a esperança preenchendo seus olhares e a dor dando lugar à confiança de que é possível sobreviver às piores violências. Sobreviveram, receberam atendimento humanizado, retornaram a suas casas vivas.
O aborto seguro é um compromisso assumido pelo Brasil com diversos organismos internacionais, mas o Estado oferece esse serviço em apenas 3% de seus municípios. Muitas mulheres e meninas não têm acesso a cuidados capazes de encerrar a tortura de rememorar, por toda a vida, a violência que sofreram. O aborto realizado depois das primeiras 22 semanas de gestação é consequência de um sistema de saúde disfuncional, orientado por uma legislação que limita direitos e infunde medo às mulheres e aos profissionais de saúde.
Infelizmente, o atual jogo político tem radicalizado a temática do aborto, beneficiando apenas aqueles que disseminam desinformação. Neste momento, as mulheres não sabem mais se têm direito ao aborto, onde poderiam procurar ajuda e se seriam presas por até 20 anos se conseguirem realizá-lo.
Essas mulheres e meninas precisam de acolhimento, não de serem equiparadas a homicidas. Quem sofre estupro no Brasil necessita de mais saúde e não de prisão. Falta aos defensores da PL 1.904/2024, e aos defensores de medidas do tipo, o exercício da empatia. Falta-lhes imaginar como as vítimas se sentem, vítimas que, agredidas sexualmente, ainda correm o risco de serem revitimizadas por um Estado responsável por invisibilizar a dor e negar seus direitos. Dar a essas meninas e mulheres o direito de superar esse trauma é uma forma de preservar vidas.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
Arlete Maria dos Santos Fernandes, Renata Cruz Soares de Azevedo e José Paulo de Siqueira Guida são coordenadores do Ambulatório de Atendimento Especial do Hospital da Mulher da Unicamp e docentes da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp