Conteúdo principal Menu principal Rodapé

Política de ciência, tecnologia e inovação: a missão

Sérgio Salles-Filho debate como ampliar a capacidade de inovação no Brasil e posicionar o país na liderança de áreas importantes

Como ampliar a capacidade de inovação no Brasil e posicionar o país na liderança de áreas importantes como Amazônia, clima e energia renovável – só para citar três exemplos atuais e interlaçados? Essa pergunta vem sendo feita de forma recorrente há pelo menos 60 anos, com mais ênfase nos últimos 25 anos, desde a criação dos fundos setoriais no fim dos anos 1990 e início dos 2000.

Dentre os inúmeros instrumentos de fomento para tornar rotineiras e potentes as conexões entre ciência e inovação, encontra-se a assim chamada pesquisa “orientada por missão”, conceito sobre o qual trata este texto. Hoje a pesquisa orientada por missão volta a ganhar relevância em agendas governamentais e empresariais e pauta a 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (CNCTI).

A ideia básica é que, se montarmos programas de pesquisa direcionados a uma finalidade específica, em geral estratégica para um país ou um governo, teremos foco, entenderemos melhor como fazer as conexões e chegaremos mais rápida e efetivamente ao resultado pretendido. Novos bens e serviços seriam disponibilizados com mais rapidez, setores econômicos e segmentos sociais seriam fortalecidos, e o país estaria na fronteira, sendo reconhecido pelo que fez.

Faz sentido. Um dos programas mais mencionados quando se fala nesse tipo de pesquisa são as missões da Nasa nos anos 1960, 1970 e seguintes. O termo Technology Readiness Level (TRL, na sigla em inglês), com seus nove níveis de prontidão tecnológica, por exemplo, teria sido criado para facilitar a gestão de projetos que saem de princípios básicos (incluindo pesquisa básica) e chegam à missão realizada (um ser humano na lua). Em alguns países, esses programas são, não por coincidência, chamados de moon shot.

São necessários muitos passos e competências para executar missões que saem de princípios e chegam aos fins. Daí a importância de metas intermediárias e finais sob forte governança. Essa lógica foi transferida para agências de fomento especializadas em pesquisa para inovação. O caso mais conhecido é o do modelo Advanced Research Projects Agency (Arpa, na sigla em inglês) dos Estados Unidos, que começou pela área de Defesa e evoluiu para outras, como Energia e Saúde. O Arpa se disseminou e virou referência, a ponto de um editorial da Nature publicar na seção de notícias, em 2021, um texto intitulado “The rise of ‘ARPA-everything’ and what it means for Science”.

Concordamos que a corrida tecnológica precisa cada vez mais de organização e de objetividade, uma convicção quase unânime entre governos. Quase, pois, em muitos países, especialmente naqueles menos desenvolvidos ou de economias intermediárias, o que mais se vê é uma grande dispersão de recursos de pesquisa e o uso indiscriminado do adjetivo “estratégico”. É a comunidade cuidando dela mesma, sempre com bons argumentos. Vale, então, examinar o que de fato significa ter políticas e modelos orientados por missão.

Na verdade, as interpretações são flexíveis. Em comum, tais políticas e modelos deveriam ter, como espinha dorsal, o atingimento de metas cumulativas e verificáveis até se chegar ao objetivo maior, o moon shot. Produtos intermediários e finais deveriam ser identificáveis e mensuráveis, seguindo um caminho lógico, passível de monitoramento, passando por diversos estágios nos quais a pesquisa atua de forma mais ou menos central.

A questão é que, ao longo dos anos, o conceito foi afrouxado, bastando uma boa justificativa da relevância do objeto e um volume maior de recursos para que quase tudo pudesse ser, direta ou indiretamente, classificado como orientado por missão. Houve uma banalização do termo, muitas vezes confundido com “programas de pesquisa” em áreas estratégicas, que até poderiam ser orientados por missão, mas que, para isso, deveriam ter metas compartilhadas e auditáveis e governança adequada, coisa que, em geral, não têm.

No Brasil, contam-se centenas de programas que se julgam orientados por missão, mal definidos quanto às metas e às formas de alcançá-las. Quase nunca sabemos se as “missões” foram bem-sucedidas e por quê. Hoje, com a volta do tema ao centro das discussões de políticas de CTI, é preciso ter cuidado com a banalização e retomar a essência do conceito. 

Um interessante artigo de Wittmann et al. (2021),[1] examinando as muitas acepções de “Mission Oriented Policies”, propõe três variáveis principais a serem consideradas: 

  1. a motivação: se orientada a problemas ou a soluções, para saber se a solução já foi identificada ou ainda está na fase de problema;
  2. a importância relativa da pesquisa e da inovação, se alta ou média, porque há missões mais ou menos baseadas em desenvolvimento científico e tecnológico; e 
  3. as exigências de governança e monitoramento, se baixas ou altas, para que a missão possa ser levada a cabo com sucesso.

Do cruzamento dessas variáveis, chega-se a vários modelos. Todos são válidos, desde que respeitem um ponto central, que realmente diferencia o conceito: objetivos e metas claras e auditáveis, com monitoramento e governança acontecendo, levando a ajustes e influenciando rumos.

É importante que quem estiver à frente do desenho dessas políticas no Brasil valha-se dessa essência da pesquisa orientada por missão e, com isso, garanta auditoria e controle das etapas e conquistas nas quais a missão se estrutura, apresentando um modelo capaz de levá-la a cabo. Por mais que, para alguns, isso possa parecer distante do mundo da pesquisa, é essa essência que evita que tudo possa ser classificado como orientado por missão e que nada acabe, na prática, entregando uma missão cumprida.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.


Nota

[1] Florian Wittmann, Miriam Hufnagl, Ralf Lindner, Florian Roth and Jakob Edler. Governing varieties of mission-oriented innovation policies: A new typology. Science and Public Policy, 2021, 48, 727–738. DOI.

22 out 24

A Inteligência Artificial na ciência e na tecnologia: o que temos para amanhã?

Sérgio Salles-Filho: "Não me lembro de uma inovação de disseminação e impacto tão velozes como foi o ChatGPT que, lançado no final de 2022, virou imediatamente uma referência global"
Artigo Sérgio Salles-Filho de outubro sobre inteligência artificial

17 set 24

Fotogramas sobre a pesquisa brasileira

Em agosto deste ano, foi divulgado, pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nìvel Superior (Capes) e pela Clarivate, mais um relatório dessa empresa sobre a produção científica brasileira[1]. O documento, intitulado Panorama das Mudanças na Pesquisa no Brasil, contou com o patrocínio da Capes, instituição que cuida de toda a pós-graduação no país e que é o locus responsável […]
Artigo Sérgio Salles

13 ago 24

Agora vai?

"Após anos sem qualquer política industrial, o Brasil recoloca – em linha com a maioria dos países, inclusive os mais ricos e de passado mais liberal – esse tema no centro de suas estratégias de desenvolvimento."
Abertura da Conferência Nacional CT&I em agosto 2024

17 jul 24

De universidades, raposas e ouriços

"O estudo [publicado na revista Research Policy} aplica conceitos da ecologia para definir a dinâmica de funcionamento das áreas do conhecimento em âmbito global. O conceito-chave é o de ecossistema"
"O estudo [publicado na revista Research Policy} aplica conceitos da ecologia para definir a dinâmica de funcionamento das áreas do conhecimento em âmbito global. O conceito-chave é o de ecossistema"

19 jun 24

Mestrado e doutorado para quem precisa. E quem precisa?

"Bem, grosso modo, dois perfis: os que têm talento para e preferências por se aprofundarem e explorarem novos conhecimentos; e os que o fazem por imposição profissional"
Defesa de tese de doutorado em faculdade da Unicamp; estudo do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos traz a situação de mestres e doutores no Brasil

05 abr 24

Feitiço do Tempo?

Estão em curso encontros, seminários, palestras, produção de ideias, concepção de políticas e outras atividades que deverão contribuir para alimentar a V Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (5CNCTI). A 5CNCTI tem uma comissão organizadora composta por quase 50 organizações direta e indiretamente ligadas à Ciência, Tecnologia e Inovação. As ações preparatórias ocorrem em todo o país. É um […]

06 fev 24

Pareceristas, pareceres e a governança da ciência

Sérgo Salles-Filho: "Produtividade definitivamente não é um bom termo para designar uma bolsa de pesquisa e não são dois ou mais anos que vão corrigir o problema de equidade, para não falar dos outros tipos de vieses."
Pesquisadora manipula experimento em laboratório da Unicamp; o caso do parecer contrário a um pedido de bolsa produtividade junto ao CNPq de professora da UFABC, revela questões importantes sobre a governança da pesquisa científica
Ir para o topo