Todas as Instituições têm uma “Razão de Ser”. E quando esta deixa de existir, aquelas, mais cedo ou mais tarde, sucumbem. Esta é só mais uma incômoda e inexorável Verdade. Porém, algo ainda mais inquietante pode ocorrer: uma Instituição morrer mesmo que sua “Razão de Ser” continue viva. Parece paradoxal, entretanto basta um pouco de reflexão para encontrar boas explicações para isso, por exemplo: incompetência no cumprimento da Missão, má gestão, falta de recursos humanos e financeiros, decisão superior pelo fechamento etc. Aqui, porém, concentrar-me-ei no motivo que considero premente no caso da Universidade: traição. Não me refiro ao beijo de Judas. Tampouco a uma ação deliberada ou intencional. Quero trazer à luz um tipo sutil, diria até bem-intencionado [1], de infidelidade.
A pressão sobre qualquer Instituição Humana é, na realidade, exercida sobre pessoas. Na Universidade, desde o reitor, passando pelos membros dos diversos conselhos universitários, até o último funcionário, ninguém escapa ao Lobby. Promovida por múltiplos interesses e apregoada por diferentes agentes, a tentação mais perniciosa é a de negligenciar a própria “Razão de Ser” em favor de outras agendas [2]. Pressões exógenas, em geral, são legítimas porque ninguém é obrigado a conhecer o propósito último da Universidade. Cabe a cada sujeito da comunidade acadêmica, de forma polida, insofismável e sem subserviência, esclarecer o equívoco e rechaçá-lo firmemente. Por outro lado, seria ingenuidade se não reconhecêssemos que, quando o cerco é feito por superiores hierárquicos, a recusa se torna particularmente delicada e custosa. Daí a necessidade de todos estarem bem-preparados a fim de resistir e preservar as Instituições [4]. A resistência, salvo em raros casos, não exige nenhum ato heroico, sendo suficiente falar o óbvio [3]. Certamente, a decisão de aquiescer, em caráter excepcional, e sem comprometer a finalidade da Universidade, não está descartada. Trata-se claramente de um “problema divergente” [5]. Caberá ao discernimento pessoal a escolha salomônica. Contudo, urge sobrepujar a inação [6] antes que o “ponto de não retorno” seja ultrapassado. Não custa recordar que, não obstante em diferentes graus, todos são responsáveis, desde o reitor até o último servidor.
Essas reflexões me ocorreram após ler o texto “Muito barulho por nada” do Prof. Marcos Aparecido Lopes, publicado neste espaço no dia 05/01/2024 [7]. O título do artigo nem de longe sugere sua relevância. O autor lançou mão de um tema polêmico e sintomático para trazer à tona outro ainda mais fundamental. Destaco somente o trecho que me levou a meditar durante vários dias: “Está em curso um colapso silencioso do pacto institucional que delimitava os campos de atuação de cada segmento na universidade pública, legitimava a autoridade do magistério e estabelecia ritos litúrgicos para sancionar valores caros à comunidade. Os princípios de excelência, pluralismo crítico e integridade intelectual correm o risco de serem flatus vocis, sem qualquer correspondência com a realidade acadêmica. O risco maior não é uma lista de livros não ser representativa, mas a universidade se enxergar como uma ONG, uma facção política ou uma igreja, dotadas de superioridade moral.”
Dito isto, volto ao início. Há uma combinação nefasta que pode, infelizmente, se materializar: pressões demasiadamente fortes e indivíduos fracos. Neste fatídico cenário, a traição se torna quase inevitável. A Universidade abdica de sua “Razão de Ser”, que permanece viva, e se imiscui em atividades alheias à sua Natureza. O desfecho é conhecido. Há mais de dois mil anos, Alguém afirmou: “vos estis sal terræ quod si sal evanuerit in quo sallietur ad nihilum valet ultra nisi ut mittatur foras et conculcetur ab hominibus“ [8], e, mais recentemente, Aleksandr Solzhenitsyn, em seu profético pronunciamento em Harvard (8/6/1978), admoestou: “Should one point out that from ancient times decline in courage has been considered the beginning of the end?” [9]
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
[1] Os antigos nos ensinavam sabiamente que o diabo nunca nos seduz a fazer o mal, antes ele nos convence de que se trata de um bem.
[2] Agendas, por vezes, mais importantes e urgentes, porém fora do escopo da “Razão de Ser” das Universidades.
[3] Acabo de escrever que falar o óbvio não é nenhum heroísmo, e já me arrependi. Por volta dos meus 10 anos, ouvi o conto “A roupa nova do Rei”, e sempre me imaginei no papel do menino que gritou: “o Rei está nu!” Como poderia ser diferente? Acreditaria nos meus próprios olhos ou nas fantasias alheias? Foram necessárias muitas décadas e mudanças Culturais profundas na sociedade para que eu apreendesse as nuanças da estória, e me identificasse também no populacho. E após um exame de consciência sincero, confesso, entre contrito e envergonhado, que fui, na maioria das vezes, a “multidão silenciosa”. Concluo, retificando: dependendo das circunstâncias, até afirmar o óbvio se torna um ato heroico.
[4] A Universidade não é a única Instituição (ou Ser) sob “assédio ontológico”.
[5] Como definido por E. F. Schumacher em seu livro “A guide for the perplexed”.
[6] Atitude imortalizada no personagem Bartleby do conto de mesmo nome de Herman Melville (autor de “Moby Dick”).
[7] https://www.unicamp.br/unicamp/index.php/ju/artigos/marcos-lopes/muito-barulho-por-nada
[8] Vós sois o sal da terra. Se o sal perde o sabor, com que lhe será restituído o sabor? Para nada mais serve senão para ser lançado fora e calcado pelos homens (Mt 5,13).
[9] https://www.solzhenitsyncenter.org/a-world-split-apart