“Castigarei meu cachorro se ele morder o gato.”
“Castigarei meu cachorro somente se ele morder o gato.”
A diferença entre essas duas sentenças é o fato de, no segundo caso, eu excluir a possibilidade de o castigo de meu cachorro ocorrer por qualquer má conduta deste, exceto a de morder o gato.
Além disso, a segunda sentença não diz: se meu cachorro morder o gato, então castigarei meu cachorro. Se eu quisesse, adicionalmente, dizer isso, diria: “Castigarei meu cachorro ‘se e somente se’ ele morder o gato”.
As quatro linhas acima constituem a metade do primeiro curso de Matemática ministrado na Unicamp, cuja sigla é MS149.
Entretanto, a expressão “se e somente se” não é usada na linguagem cotidiana. Por essa razão, quando eu digo: “Castigarei meu cachorro somente se ele morder o gato”, a maioria das pessoas entende não apenas que não vou castigar meu cachorro exceto no caso de ele morder o gato, mas também que o cachorro será castigado se ele morder o gato.
Para evitar essa confusão, é prudente enunciar a segunda sentença na forma (matematicamente redundante): “Poderei castigar meu cachorro somente se ele morder o gato”.
Dessa forma, fica claro que somente estarei autorizado a castigar meu cachorro no caso de ele morder o gato. Entretanto, o verbo “poderei” indica que, mesmo mordendo o gato, o cachorro poderia não ser castigado. Fica mais claro que o cachorro poderia alegar circunstâncias atenuantes como, por exemplo, legítima defesa, já que gatos arranham.
A formulação com o verbo “poderei” enfatiza que a sentença defende o cachorro da possibilidade de receber castigo por faltas menores, que não incluam o enfrentamento doloso com o gato.
Diante dela, a Associação dos Cachorros deveria se sentir satisfeita. Por um lado, a menos que seja provado que o cachorro mordeu o gato, ele não poderá ser punido. Por outro lado, mesmo tendo mordido o gato, o cachorro terá chances de se defender. Sua situação é melhor que a preexistente, pois até o momento o cachorro poderia ser punido mesmo sem morder o gato.
Um Altíssimo Tribunal, formado por juízes que fazem uso refinado e preciso da lógica e da linguagem, emitiu uma declaração do tipo: “Os sujeitos ABC somente poderão ser punidos pela conduta XYZ se ocorrerem os seguintes fatos: DEF”.
Acredito que devem ter ficado surpreendidos quando não apenas as entidades representativas dos sujeitos ABC, mas também os amigos dessas, seus inimigos políticos e muitos dos seus amigos “leram” que, se acontece DEF, então os sujeitos ABC seriam inequivocamente punidos. Os mais desconfiados “leram” que não apenas os sujeitos ABC seriam punidos, mas também que outros sujeitos associados de alguma maneira aos sujeitos ABC seriam o verdadeiro alvo da iniquidade do Altíssimo Tribunal. Os mais afoitos enviaram o caso para ser analisado pela Organização dos Estados Universais, implicando a possibilidade de séria reprimenda para o País.
Os juízes devem ter se perguntado o porquê dessa mania de expressar ideias usando uma única proposição, em vez de esclarecer os conceitos com duas ou três frases adicionais. Até os matemáticos fazem isso! Porém, tendo acusado o golpe, anunciaram que os esclarecimentos aparecerão nos próximos dias, talvez antes da publicação do presente texto.
As pessoas não pensam como as computadoras. As frases escritas na linguagem cotidiana precisam ser massageadas, repetidas de maneiras diferentes. As possíveis confusões devem ser previstas, até nos textos científicos e até nos matemáticos. As interpretações de má-fé existem e devem ser antecipadas, na medida do possível. Mas também existem as más interpretações produtos de diferenças culturais ou de sentimentos sutilmente evocados por textos excessivamente econômicos.
De todos modos, o curso de MS149 deveria ser oferecido nas instituições do ensino médio e fundamental.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.