A beleza não salvará o mundo, mas ele será justificado, talvez, por alguns parágrafos bem construídos. Pleiteando ações urgentes da monarquia, em prédica na Capela Real de Lisboa, António Vieira apontava as omissões como “os mais perigosos de todos os pecados”:
“Por uma omissão perde-se uma maré, por uma maré perde-se uma viagem, por uma viagem perde-se uma armada, por uma armada perde-se um Estado: dai conta a Deus de uma Índia, dai conta a Deus de um Brasil, por uma omissão. (Sermão da Primeira Dominga do Advento, 1650).
Séculos depois, a urgência desses alertas desapareceu, o projeto imperial foi reinterpretado como catástrofe, mas aquela sequência ainda ressoa no espírito sensível ao ritmo e à dramaticidade da gradação. Deus, que até há pouco estava morto, revive em meio a essas palavras, e, em estado de irônica compunção, nos vemos examinando as consequências daquilo que deixamos de fazer, relapsos que somos. “Pelo que fizeram, se hão de condenar muitos, pelo que não fizeram, todos.”
Recuando um pouco mais diante da vibrante cadência da passagem, examinamos, com curiosidade, sua construção. Entramos em estado contemplativo, uma espécie de pausa nas responsabilidades da vida. Podemos encarar o sermão como a representação de um conflito interior. Com que rapidez vertiginosa a personagem desse drama passa, por descuido, da perda de uma ocasião para a iminente perda da alma! Essas pessoas sabiam jogar com as palavras, mas não brincavam com elas. Num salto ousado sobre o exórdio, a prédica começara pelo fim (“Abrasado finalmente o mundo e reduzido a um mar de cinzas…”), pois lhe cabia o registro apocalíptico. Esse também será o da peroração:
“Abriu-se a terra, caíram todos, tornou-se a cerrar para toda a eternidade. Eternidade! Eternidade! Eternidade!”
Que maestria no uso das figuras de repetição! Devolvida à sua historicidade, a época de Vieira permanece o que foi, indiferente a moralismos retroativos. Poderíamos absorver algo de sua verve oratória em nossos jogos verbais cotidianos? Nosso estoque de vocábulos aumenta, mas, reparemos: foi a supressão de alguns deles que tornou a passagem mais eloquente. Essa omissão virtuosa, ou elipse, não a incorporamos facilmente. Assim, vamos incorrendo no tedioso pecado do excesso verbal: Então a terra se abriu e caíram todos…
Escrevendo, todos caímos. Todos travamos uma luta vã com as palavras; mas luta inevitável, como disse Drummond. Por que não fazê-lo com alguma galhardia? Para isso colaboraria uma boa educação literária. Como ela se daria?
1 – Uma educação literária começa na escola — e é importante que comece bem —, mas não se esgota nela. A escola deve fornecer os rudimentos — como noções estilísticas de figuras de linguagem, mas também de clareza e brevidade — e desencadear nos alunos o interesse por sua autoformação de leitor e de autor: isto é, alguém capaz de produzir textos eficazes e relevantes em contextos reais, fora das tarefas artificiais da escola (consagradas pelas redações de Vestibular). O estudante deve saber identificar os princípios de composição mobilizados por autores canônicos ou não e entender o valor expressivo dos recursos envolvidos. Pois a atividade de qualquer profissional se beneficia de uma escrita bem elaborada em termos de precisão e elegância. A ligação entre utilidade e deleite, estabelecida na tradição clássica (hoje falaríamos em estética), poderia ser recuperada com proveito.
2 – Os rudimentos seriam mais eficazes se fosse mais rotineiramente explorada a articulação entre leitura e escrita. A mesma tradição clássica estabeleceu uma disciplina amparada nessa articulação — a Retórica. Próxima da Poética em muitos aspectos, e, como ela, pensada como “arte” (techné: conjunto de procedimentos que ensina a fazer algo com acerto), duas coisas lhe são essenciais — o convívio com autores modelares (poetas e oradores) e os exercícios estimulados pela emulação desses modelos, a partir da identificação das fontes de seu sucesso.
3 – As defesas da literatura (como a de Compagnon) frequentemente recorrem ao elogio da leitura como forma de conhecimento do mundo. Além da apreensão de experiências culturais distantes (no tempo, espaço e socialmente), a leitura literária nos despertaria para o problema de sua representação. O convívio contínuo e conceitualmente fundamentado com ela pode nos aproximar, assim, de aspectos específicos da forma (estilo, gêneros, convenções etc). Mas saber decodificar uma obra literária não é algo simples e meramente passivo. Para Bacon (“On Studies”, Essays), a leitura deve ser complementada pela discussão e a escrita. Reading maketh a full man; conference a ready man; and writing an exact man. Exercícios de escrita que transcendam os gêneros convencionais, assimilando formas como a narrativa autobiográfica, o diálogo, a carta e o ensaio, poderiam cumprir um papel formativo relevante.
4 – Arte de produzir discursos persuasivos, a Retórica fornece grande variedade de instrumentos úteis para desdobrar a “formação literária” (humanitas) em competências que extrapolam o otium reflexivo. Em certas tradições culturais (nos EUA, por exemplo), cursos de oratória e redação incorporam conceitos de Retórica clássica, encarados por seu valor prático. As editoras respondem a esse interesse com manuais para a fala e a escrita — acadêmica, corporativa ou literária. Nosso mercado editorial é comparativamente acanhado, mas, para navegar nesse universo, uma formação básica em tal domínio pode ser decisiva. Sua ausência se reflete negativamente na produção oral e escrita de nossos alunos, que desconhecem princípios básicos de clareza e concisão, por exemplo.
5 – Temos algumas poucas obras de apresentação da dita “tradição clássica”, mas há um conjunto maior de discussões literárias, não necessariamente técnicas ou acadêmicas, com interesse e utilidade. Entre elas, testemunhos e reflexões sobre a escrita por parte de autores consagrados. É também pertinente conhecer atividades que fazem parte da rotina do escritor, reafirmando a relevância do aspecto artesanal da produção textual e o valor de exercícios como a cópia, a reescrita, os diários de leitura, commonplace books etc.
“Tento ser conciso, torno-me obscuro (…). Procurando fugir do engano, caímos no erro, quando falta a arte”, dizia Horácio em uma famosa carta. De modo amistoso, ele orienta o interlocutor pelos meandros da composição literária. Nada nos impede de retomar essa conversa.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.