“Ler é dividir”, anotou Hugo de São Vitor em seu Didascálicon (1127). Essa operação exige atenção, mas, graças a ela, o leitor descobre acessos a uma obra complexa. Certos textos, contudo, resistem a tal abordagem em virtude das insuficiências do escritor. Sua obscuridade resulta da distribuição confusa dos temas, da articulação precária das passagens, ou da ausência de um desenho argumentativo definido.
À época de Hugo, estavam difundidas, a partir da tradição monástica, imagens relativas a uma “arquitetura do pensamento”. Seu livro procede, ele próprio, por divisões e subdivisões. A estratégia, naturalizada nos manuais e tratados, foi consolidada com a chamada escolástica. O desenvolvimento desse método de pensamento coincide com o da arquitetura gótica e Erwin Panofsky identificou, nas grandes Summae universitárias, o “hábito mental” que presidiria às construções religiosas do século XIII. Arquitetos e autores observam as mesmas exigências de completude, ordenamento e clarificação. Para os escolásticos, cabia explicitar a estrutura lógica do processo argumentativo, o que permitiria retraçá-lo e recuperá-lo em uma visão sintética – em um sumário, por exemplo.
Panofsky fala de uma “lógica visual” que seria a manifestação do pensamento exposto nos tratados medievais. Na vertente humanista, são comuns as metáforas visuais para o discurso, e pintura e poesia eram reiteradamente aproximadas. Também o orador podia ser comparado ao pintor, pois lhe cabe representar eventos vívidos na mente do ouvinte; reciprocamente, a pintura será “eloquência muda”. Alguns estudiosos falam em uma eloquência arquitetural, a respeito, por exemplo, das obras promovidas por príncipes renascentistas nas cidades de que se tornaram governantes. Parece natural a metáfora correspondente da “construção do texto” – hoje muito usada para descrever documentos formulados coletivamente a partir de debates exaustivos, quase como um mutirão.
Pensemos em uma saída mais clássica, em que a visão de um autor único manifesta-se em um delineamento pré-definido. Considere-se a analogia entre os projetos, croquis e maquetes do arquiteto e os esboços do escritor. Na oratória clássica, a planificação é essencial. Descobertos os argumentos (inventio), cabia apresentá-los em uma ordem favorável à causa (dispositio), procedimento explicado por Cícero (Orator): “uma vez encontradas as idéias, o orador as distribuirá com grande diligência”. Após “atrair o ânimo dos ouvintes” em um exórdio que sirva de “acesso nobre à causa”, e apresentar brevemente o caso (narratio), ele “confirmará os argumentos favoráveis, enfraquecendo e rechaçando os contrários”. Na peroratio, repetirá o apelo direto ao público.
Mas, nessa tradição, em que se cultivam também discursos de aparato, a estruturação oratória extrapola a dimensão pragmática. Interfere aí um apelo imagético. O orador revisita, na pronunciação (actio), um inventário de representações depositadas na memória, onde ele as dispôs de forma espacial – nas partes de um edifício, por exemplo. A técnica é recomendada no Ad Herennium, atribuído a Cícero. Além de embasar essa memória artificial, constituída de lugares e imagens, a arquitetura fornece metáforas para descrever as partes do discurso. Assim, o exórdio, visualizado como um vestibulum – espaço construído junto à entrada de casas e templos -, se torna um dos componentes a serem manejados decorosamente a partir de modelos existentes.
A arquitetura renascentista sugere bons símiles para pensarmos nossos textos como artefatos para uma reflexão apta e elegante. Concebidas a partir do estudo do mundo antigo, certas construções convidam-nos a nos debruçar sobre seus princípios discursivos. Federico Zeri apresenta a incontornável figura de Brunelleschi (1377-1446) como formulador de um “espaço racionalizado lucidamente articulado nos elementos que o definem”. A concatenação de seus diversos componentes os mostra ligados entre si com tal coerência que, eliminado um só, todo o conjunto é transtornado. Cuidadosamente dosada, a iluminação participa da clareza com a qual o observador percebe, de um só golpe, “a regra mental que regeu o nascimento da construção”.
Conhecedor dos antigos e de Brunelleschi, Leon Battista Alberti (1404-1472) abordou, em seu De re aedificatoria, a arte da construção. Ela consistiria “no projeto e na estrutura”. A função do projeto seria “indicar para o edifício e todas suas partes um lugar apropriado, uma proporção exata, uma disposição conveniente e uma ordem harmoniosa”, de tal modo que sua forma esteja inteiramente implícita na concepção (I,1). Tal ideal, inspirado na noção ciceroniana de concinnitas, evoca a harmonia entre os membros de um edifício, “na unidade da qual fazem parte, fundada em uma lei precisa, de modo que nada pode ser acrescentado, removido ou alterado” (VI, 2). Tal lei compreenderia o número, a proporção e a disposição das partes (IX, 5).
Para Alberti, a ornamentação também deve ser cuidadosamente pensada, não sobrecarregando a obra com elementos muito evidentes, “não os amontoando, não os concentrando num só lugar, mas distribuindo-os tão adequadamente (…) que, quem os alterar, sinta que foi perturbada toda a agradável sensação de concinnitas” (IX, 9). Na escrita, a ornamentação também deve ser calculada; e, com figuras, equilibram-se a clareza e a obscuridade do texto, solicitando certo esforço do leitor. Enfim, a divisão das partes pelo autor (ou arquiteto) deve facilitar a identificação dos componentes, calibrando-os em suas dimensões e seus elementos decorativos, garantindo rigor, compreensibilidade, harmonia e variedade.
Essas analogias não nascem do mero fascínio com a pureza formal de projetos admiravelmente concebidos. Penso também nos ruídos entre plano e execução, na lida com a rudeza das circunstâncias. A construção, de textos e edifícios, é um processo tenso e custoso. “Escrever é difícil”, diz Robert Caro em Turn every page, documentário sobre sua colaboração com o editor Robert Gottlieb, que dá a impressão de um verdadeiro canteiro de obras. Como orientadores e avaliadores, revisamos, cortamos, recomendamos ajustes, de estilo e de estrutura. Refazemos planos argumentativos, corrigimos articulações, explicitamos transições, ou as deixamos mais amenas. O objetivo é tornar a leitura natural e proveitosa.
Ao final do tratado, Alberti aborda a correção dos defeitos das obras, citando certos vícios de espírito: “a seleção, a compartimentação, a distribuição, a delimitação desordenadas, dispersas e confusas” (X,1). Ele idealizou edifícios realizados depois por outros e não pôde impedir alterações comprometedoras. Alguns arquitetos, por outro lado, reconstruíram obras mal concebidas, tornando-as objetos duradouros. É o que também almeja um editor.