Memória, trajetória e consciência negras
Confira abaixo três conteúdos jornalísticos produzidos pela SEC relacionados ao Dia da Consciência Negra
A data, hoje símbolo nacional da luta do movimento negro, abre espaço para reflexões mais amplas sobre memória, direitos e os desafios contemporâneos, como o racismo institucional.

Milena Santos, as cicatrizes no percurso e o fim de um ciclo
Milena de Oliveira Santos acaba de encerrar o ciclo de graduação, mestrado e doutorado na Unicamp, apesar das “cicatrizes no percurso”. Aos 33 anos, a estudante do curso de Ciências Sociais da turma de 2011 no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) se tornou doutora com a tese “Trajetórias estudantis e desigualdade social: experiências a partir da Universidade Estadual de Campinas”, defendida no dia 30 de outubro, sob orientação da professora Joice Melo Vieira.
Primeira cotista da pós-graduação em Demografia da Unicamp, Santos foi motivada por suas próprias experiências e vivências em suas pesquisas. “Quando cheguei na Unicamp, em 2011, foi um processo solitário. Aquele espaço não parecia ser meu, eu me sentia desconfortável”, lembra. Chegou a pensar em desistir do curso, mas sua mãe, que começou a trabalhar como empregada doméstica e conseguiu se formar psicóloga, incentivou-a. “Ela foi minha força, meu empurrão, meu puxão de orelha.”
Santos, que voltou a morar em São José dos Campos, onde vive sua família, trabalha atualmente no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) no campus de Jacareí, onde integra também o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI) da instituição. Após defender a tese, desabafou: “Senti como se tivesse corrido esse tempo todo para dar conta de tudo que eu precisava superar, sinto que esse é o primeiro momento em que posso relaxar. Esse doutorado é metade meu, a outra metade é da minha mãe, das minhas tias, do Núcleo de Consciência Negra (NCN), da minha orientadora, das pessoas que compartilharam suas histórias para a investigação da tese e do NEABI-IFSP.”


Vieira elogia o trabalho da aluna, que acompanha desde o mestrado. “Foi realmente um prazer orientar Milena. Sempre foi inquieta, questionadora e muito autêntica. E, ao mesmo tempo, muito respeitosa e acolhedora com todas as pessoas do grupo de pesquisa. Entre as grandes contribuições do trabalho, foi sua percepção de que, para além da bolsa de estudos, há outros aspectos determinantes para que os estudantes de baixa renda, pretos e pardos tenham sucesso na universidade: oportunidade de se inserir em grupos de pesquisa e realizar iniciação científica; encontrar uma rede de apoio entre colegas com os quais possa compartilhar angústias e dúvidas; apoio da família ao longo do processo; e persistência, por exemplo”, afirma.
Para Vieira, a tese se insere em um campo relativamente novo. “O trabalho nos dá um certo contorno sobre nossas fortalezas e nossos limites enquanto instituição educacional, o que depende e o que não depende de nós. Uma das frentes promissoras da demografia da educação é o estudo das mudanças na composição populacional em instituições ou em um dado território e de como as relações entre as pessoas se alteram a partir delas”, completa.
Dores e lutas
No final da graduação, Santos estava com uma colega esperando o ônibus circular quando sofreu um assédio que foi muito impactante na sua luta por mudanças no ambiente universitário. “Um moço começou a mexer com a gente, eu e minha amiga, nós morávamos juntas, e ela é branca. Eu reagi e ele começou a me xingar, a falar do meu cabelo, disse que eu não devia estar ali. Por sorte, o ônibus passou”, relata. “Achei um absurdo, nunca soube quem era esse moço, mas a partir daquele momento procurei onde eu poderia denunciar o ocorrido dentro da universidade.”
Santos lembra que já tinha observado um grupo de estudantes negros que se reunia no campus às sextas-feiras e resolveu fazer contato. “Eles me acolheram, era o Núcleo de Consciência Negra. Logo depois, passei a fazer parte da articulação para a implementação das cotas. Passamos por muitos momentos difíceis, teve a greve de 2016, pichações racistas no IEL [Instituto de Estudos da Linguagem] e no IFCH, algumas vezes andávamos com medo, mas juntos. Em 2019, vieram os primeiros estudantes das cotas étnico-raciais, e eu me lembro do dia da matrícula. Vi uma família negra com o filho, fiquei emocionada. Depois, ele ingressou no Núcleo”, conta. “Naquela época, quando via uma pessoa negra no campus, trocava cumprimentos e sorrisos. A gente se reconhecia nessa luta de pessoas reais, tentando sobreviver e transformar a Universidade”, completa.

“No mestrado, pesquisei as leis de cotas e suas aplicações em diversas instituições federais. Para o doutorado, investiguei se as pessoas que entraram na graduação na Unicamp, com recorte de raça e sexo, permaneceram”, explica. A análise parte da construção de taxas de evasão, permanência e conclusão entre 2005 e 2019 e as hipóteses centrais sustentam que negros e pobres apresentam maiores taxas de evasão e menores taxas de conclusão; que a escolaridade da mãe, a renda familiar, a raça/cor e o sexo são variáveis fortemente relacionadas à conclusão dos cursos; que programas de apoio coletivo e políticas de permanência são decisivos para o sucesso acadêmico; e que o contexto institucional pode tanto favorecer quanto dificultar essas trajetórias.
Santos usou sua rede de contatos e grupos de redes sociais para encontrar estudantes e ex-estudantes da Unicamp para as entrevistas de seu trabalho. “A tese poderia ser feita de várias formas; consegui os dados da Comvest [Comissão Permanente Para os Vestibulares da Unicamp] e do Diretório Acadêmico (DAC), mas só os dados não revelavam a complexidade da questão da permanência.”
A pesquisadora inspirou-se na demógrafa Elza Berquó, criadora do Núcleo de Estudos da População (Nepo). “Há essa demografia que traz um movimento diferente, que vai além dos dados, que busca a voz das pessoas. Conversei com quem estava matriculado na Unicamp, quem permaneceu no curso e quem evadiu. O terceiro grupo foi o mais complicado, já que sair pode envolver uma dor, e o estudante não mantém necessariamente um vínculo com a Universidade.”
Em 2016, Santos lembra que, durante a campanha pelas cotas étnico-raciais na Unicamp, buscava apoiadores e foi a um evento no Nepo atrás de Berquó. “Eu tremia quando me aproximei da doutora Elza. Levava um papel impresso com a mensagem de apoio; a gente pedia para as pessoas tirarem fotos com o cartaz. Contei a ela o que estava acontecendo e se ela poderia posar para a foto. Ela concordou prontamente e ainda me falou que tinha sido pioneira na implementação de ações afirmativas”, relata. Na defesa da tese, Santos usou essa imagem para encerrar sua apresentação.

Dinâmicas e alertas
A tese destaca a contribuição da demografia como campo de estudo capaz de compreender as dinâmicas populacionais que afetam o ensino superior: composição etária, vínculos sociais e as pressões econômicas sobre os jovens. A autora propõe ainda que futuras investigações ampliem a discussão sobre o conceito de evasão, considerando reingressos e mudanças de curso. “A demografia da educação é uma área que está se fortalecendo na Unicamp e tem muito a contribuir”, afirma.
Santos ressalta que a Universidade precisa ficar alerta para as composições de família para superar desafios. “Quais são as políticas, por exemplo, para alunos que são pais, mães e responsáveis por crianças ou adolescentes ou para a chamada ‘geração sanduíche’, que cuida dos pais ou pessoas mais velhas e dos filhos ou pessoas mais novas, dentro do contexto educacional?”, questiona.
Para a autora, ainda há a questão de como a Universidade precisa se aproximar das escolas e, também, repensar seus próprios códigos. “O que eu entendi com a tese é que há quase um descolamento entra a ideia que os estudantes têm sobre o curso e como o curso realmente é”, afirma.
“Qual estudante a Unicamp espera?”, continua Santos. “Nos últimos anos, houve algumas iniciativas em disciplinas introdutórias que apontaram caminhos interessantes para acolher as pessoas. É óbvio que a Universidade não está preparada para tudo, mas, com a escuta, o estudante não precisaria passar por tantos sofrimentos; se a gente não se ouvir, as violências vão acontecendo, e o aluno é a ponta mais vulnerável dessa história.”
“Os estudantes reconhecem a importância e o tamanho das políticas de assistência e permanência na Unicamp, mas a luta não termina aí”, completa. Para Santos, 2025 foi um “ano tocante” já que, junto com alunos do Instituto Federal, voltou à Universidade, e o grupo passou pelo IFCH. “Lá tem um mural com fotos, e eles me reconheceram. Foi bonito ter feito parte dessa história e poder inspirar outras pessoas.”

Na semana da Consciência Negra, a primeira edição do Nexus-PPI, promovida pela Faculdade de Engenharia Mecânica e NEAB, foi uma vitrine de projetos que abrangem desde a humanização do cuidado com a saúde — como a criação de bulas de remédio acessíveis — até estudos sobre conexão ancestral, soroterapia e inclusão da Inteligência Artificial.
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